Como
conviver com Semiárido virou política pública e pauta internacional
O
Semiárido brasileiro, território de mais de 1,6 milhão de km² no Nordeste do
país e lar de cerca de 39 milhões de pessoas, deixou de ser território de
vulnerabilidades para se tornar um laboratório de políticas públicas e saberes
sociais com potencial replicável mundialmente. Essa é a leitura que emerge dos
depoimentos reunidos na COP30, quando representantes da sociedade civil,
técnicos do governo e parceiros internacionais traçaram um panorama das
estratégias que vêm transformando água escassa em segurança hídrica, produção
alimentar e redes de cooperação entre territórios semiáridos.
O
Painel “Semiáridos do Planeta: Água de Chuva, Convivência com os Biomas e
Resiliência Climática. Contribuições dos povos dos Semiáridos do Brasil, Chaco,
Corredor Seco e Sahel” foi conduzido pelo representante da Agricultura Familiar
na COP30, Paulo Petersen, diretor executivo da AS-PTA.
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Da cisterna à agroecologia
O maior
sinal tangível dessa mudança é o Programa Cisternas: “o maior programa de
captação e reserva de água de agricultores e agricultoras familiares do mundo”,
ressalta Lílian Rahal, secretária de segurança alimentar e Nutricional do
Ministério do Desenvolvimento Social com longa atuação em políticas sociais.
Hoje,
são mais de 1,3 milhão de cisternas instaladas no Semiárido, resultado de
décadas de articulação entre Estado e sociedade. Rahal ressalta que aquele
território que há 25 anos era sinônimo de fome e pobreza comporta hoje “um
território de bem-viver”, fruto da incorporação, pelo Estado, de tecnologias
sociais e práticas comunitárias construídas pela Articulação do Semiárido
Brasileiro (ASA).
Antonio
Barbosa, coordenador de programas e projetos da ASA, sintetiza a mudança de
paradigma: não mais “combater a seca”, mas conviver com ela. A partir da
descentralização do acesso à água, primeiro com cisternas de primeira água e
depois com sistemas de “segunda água” para produção, as famílias conquistaram
autonomia. “Quando olhamos para a experiência do Semiárido brasileiro, é isso
que conseguimos ver”, disse Barbosa, sublinhando que a convivência se apoia na
multiplicação de soluções locais e na troca entre redes comunitárias.
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Restauração produtiva
No
âmbito federal, o Ministério do Meio Ambiente tem buscado traduzir essas
experiências em metas de restauração com recorte produtivo. Alexandre Pires,
diretor do Departamento de Combate à Desertificação (DCDE/MMA), afirmou que “a
resposta está com as comunidades” e que as políticas precisam reconhecer as
especificidades territoriais. Em diálogo com a sociedade civil, o ministério
vem estruturando o programa Recaatingar, cuja meta é restaurar 10 milhões de
hectares degradados da Caatinga, bioma exclusivamente brasileiro e o mais
suscetível à desertificação.
Pires
alerta que a restauração deve ser também produtiva: “restaurar assegurando a
capacidade de produzir alimentos, restaurar assegurando a capacidade de
produzir serviços ecossistêmicos, sobretudo retorno de água para esse
ambiente”. Em outras palavras, não se trata apenas de plantar árvores, mas de
recompor paisagens capazes de sustentar vidas, culturas e sistemas alimentares
locais.
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Cooperação Sul–Sul
A
experiência brasileira ganha força quando conectada a outras regiões
semiáridas. Barbosa lembra que a ASA trabalha, desde 2017, em diálogos com o
corredor seco da América Central, com o Chaco sul-americano e outras redes,
“cooperação entre povos” que vai além da diplomacia oficial. Para ele, a COP30
é oportunidade de mostrar que financiamento isolado não resolve sem o
reconhecimento e o apoio às práticas locais que realmente transformam
realidades.
Júlio
Worman, analista de Programas na Divisão de Engajamento Global, Parcerias e
Mobilização de Recursos do Fundo Internacional do Desenvolvimento Agrícola
(Fida), reforça a aposta na cooperação e em arquiteturas financeiras que levem
políticas do papel à prática. O projeto Sertão Vivo, financiado pelo Fida,
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), é um exemplo de
iniciativa multilateral com foco em Agroecologia, sementes crioulas e
fortalecimento social. Worman chama a atenção para o caráter duradouro desses
projetos: “essa iniciativa tem uma arquitetura financeira diferenciada. Vai ter
duração de aproximadamente oito anos e abranger vários estados do Nordeste”.
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Agroecologia protagonismo local
O
vínculo entre água e produção aparece com clareza: os dispositivos de
armazenagem permitiram que famílias ampliassem a produção agroecológica com
base em práticas tradicionais e conhecimentos locais. Worman cita iniciativas
como o Raízes Agroecológicas, que articula Brasil, Argentina e Bolívia para
proteger sementes crioulas e formar produtores; para ele, a Agroecologia é
parte central da resiliência no Semiárido.
Pires
também destaca que o Semiárido concentra comunidades quilombolas, 54 etnias
indígenas e milhões de pequenos estabelecimentos familiares, territórios onde
as práticas de manejo têm, comprovadamente, fortes efeitos conservacionistas
sobre solo e biodiversidade. Por isso, políticas climáticas eficazes precisam
priorizar esses atores.
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Financiamento e participação social
Os
representantes do governo e de organismos multilaterais concordam que o desafio
não é apenas mobilizar recursos, mas fazê-los chegar com metodologias que
incluam comunidades no planejamento e execução. Worman sublinha a importância
de tirar do papel políticas já desenhadas; Barbosa reforça: “não basta só ter
financiamento, precisamos olhar para as experiências”. A governança
participativa, com fóruns de agricultores, instâncias de diálogo indígena e
mecanismos de co-design, surge como condição para que os investimentos gerem
resultados reais.
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Evitar a mercantilização do território
Entre
os riscos apontados está a visão reducionista do Semiárido como mera fonte de
recursos renováveis (vento, sol, carbono). Barbosa alerta para a necessidade de
“olhar o território para além da economia verde”: energia renovável deve
beneficiar as comunidades locais e não aprofundar injustiças. A proposta
defendida por representantes da sociedade civil e do governo é que a transição
para renováveis seja acompanhada de arranjos institucionais que devolvam valor
às populações que compartilham seus territórios.
<><> Lições do Semiárido para políticas climáticas
Do
conjunto de declarações emerge um roteiro claro: reconhecer e escutar os
saberes locais; transformar tecnologias sociais em políticas públicas
universais (como ocorreu com as cisternas); alinhar restauração ecológica à
produção; articular cooperação Sul–Sul e arquiteturas financeiras de longo
prazo; e garantir que investimentos retornem em benefícios sociais e econômicos
para as comunidades.
Alexandre
Pires resume a ambição: enfrentar desertificação e mudanças climáticas com
políticas que recuperem solos, assegurem água e mantenham a vida no território.
Para isso, diz ele, é preciso “sinergia entre as convenções do Rio”, clima,
biodiversidade e desertificação, e o protagonismo das comunidades como centro
das soluções.
Se o
Semiárido brasileiro tem hoje uma lição a oferecer é esta: soluções climáticas
eficazes nascem da convivência com o lugar, da combinação de ciência e
tradição, e de políticas que respeitem os ritmos e os atores locais. Investir
nisso não é apenas financiar projetos — é apostar na perenidade da vida em
lugares onde a resiliência se constrói, gota a gota, nas casas e nos quintais.
O
painel contou também com a apresentação da Plataforma Semiáridos, pela
representante da sociedade civil argentina Veronica Luna.
As
jornalistas Maristela Crispim e Isabelli Fernandes viajaram a Belém para a
cobertura da COP30 com apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS) e estão
hospedadas na Casa do Jornalismo Socioambiental, uma iniciativa que reúne
profissionais e veículos brasileiros especialistas de todo o País para ampliar
abordagens e vozes sobre a Amazônia, clima e meio ambiente.
• Mineração em Terras Indígenas viola
direitos indígenas e agrava crise climática, aponta relatório
Lançada
na segunda-feira (17/11), na Geodésica da Aldeia COP, em Belém-PA, a publicação
“Minando Direitos: Impactos da Mineração sobre os Povos Indígenas e o Clima” é
um relatório produzido pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI) em parceria
com a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO). O documento é
baseado em um ano de pesquisas de campo e análise de dados que disseca três
casos de conflitos envolvendo mineração na Amazônia e conclui que a atividade,
longe de ser regulada, avança sobre territórios tradicionais com graves
violações de direitos dos indígenas.
A
solenidade contou com a presença de autoridades como Ceiça Pitaguary,
secretária nacional de Gestão Ambiental e Territorial Indígena do MPI; Elis do
Nascimento Silva, diretora do Departamento de Justiça Climática do MPI, e com a
participação de Rita Gomes do Nascimento, diretora da Flacso; e de Ana Carolina
Alfinito, consultora MPI/Flacso e pós-doutoranda na UFPA.
“Neste
contexto nacional e internacional da COP 30 no Brasil e na Amazônia, em que
estamos discutindo sobre a transição energética justa, mitigação dos efeitos da
crise climática e alcance das metas globais propostas no Acordo de Paris e
Convenções, esta publicação reforça e evidencia a urgência de repensarmos os
modelos de desenvolvimento econômico e exploração predatória dos recursos
naturais que tanto vêm impactando negativamente a vida de povos, comunidades e
territórios não só no Brasil mas em todo mundo”, avaliou Elis do Nascimento.
O
relatório mostra que a mineração em Terras Indígenas não é uma questão de falta
de lei, mas de descumprimento sistemático das normas vigentes. A Constituição
Federal de 1988 e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT) já garantem, respectivamente, a proteção desses territórios e o direito
dos povos à consulta livre, prévia e informada. No entanto, muitas vezes,
empresas e órgãos licenciadores ignoram esses dispositivos.
O
estudo destaca que os impactos da mineração vão muito além da degradação
ambiental. Antes mesmo da instalação dos projetos, comunidades indígenas já
enfrentam conflitos internos, cooptação de lideranças, ameaças e o aumento da
violência local, especialmente contra mulheres e crianças. A contaminação de
rios e solos por substâncias como cianeto, arsênio e rejeitos salinos também é
frequente.
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Casos emblemáticos na Amazônia
A
publicação detalha três situações críticas:
• Projeto Potássio Autazes (AM) – Povo
Mura: A empresa Potássio do Brasil, de capital canadense, pretende explorar
potássio para fertilizantes em área sobreposta à Terra Indígena
Soares/Urucurituba. A mineradora nega a existência do povo Mura, referindo-se a
eles como “comunidades locais”, e promoveu suposta consulta prévia fraudulenta,
excluindo comunidades diretamente impactadas.
• Projeto Volta Grande (PA) – Povos
Juruna, Xipaia e Curuaia: A Belo Sun Mining Corp., também canadense, planeja
instalar a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil em região já afetada pela
Usina de Belo Monte. O licenciamento ignorou o direito de consulta de diversas
comunidades com base em uma portaria federal que limita a 10 km a área de
influência do empreendimento, critério considerado inconstitucional pelo
estudo. A comunidade Aldeia São Francisco, a apenas 500 metros da barragem de
rejeitos, corre risco de remoção forçada.
• Mineração de diamantes – Povo Cinta
Larga (RO/MT): Donos de uma das maiores jazidas de diamante do mundo, os Cinta
Larga travam uma disputa judicial há mais de 20 anos. Enquanto há consenso
contra a mineração no entorno de suas terras, parte do grupo defende a
exploração controlada pela própria comunidade, desde que assegurados seus
direitos. O caso aguarda posicionamento do STF.
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Conclusões e recomendações centrais
A
publicação conclui que a mineração, como praticada atualmente, não é positiva
para os povos indígenas e gera um ciclo de violações. Para enfrentar essa
realidade, são propostas recomendações, como:
• Garantir a Consulta Livre, Prévia e
Informada (CLPI) de forma ampla, anterior a qualquer ato administrativo,
incluindo o direito de veto das comunidades.
• Federalizar o licenciamento de projetos
que impactam TIs e excluir da política de minerais estratégicos empreendimentos
com histórico de violação de direitos.
• Apoiar a autodeterminação por meio de
políticas de etnodesenvolvimento e da construção de Protocolos Autônomos de
Consulta pelos povos indígenas.
• Fortalecer a proteção territorial,
acelerando a demarcação de terras indígenas como condição fundamental para a
defesa de seus direitos.
A
publicação defende que não é possível uma transição energética justa nem
justiça climática sem o pleno respeito aos direitos territoriais, políticos e
ambientais dos povos indígenas, os principais guardiões das florestas.
Segundo
a consultora Ana Carolina Alfinito, o estudo buscou se distanciar das promessas
do setor minerário sobre como a mineração irá proporcionar desenvolvimento e
bem-estar às populações indígenas no Brasil. Além disso, o estudo mostra que
antes de abrir novas fronteiras de mineração, especialmente antes de liberar a
mineração em Terras Indígenas, é preciso reparar os danos profundos causados
pelo setor mineral aos povos indígenas, restaurar os territórios
desestruturados pela mineração, e desenvolver um arcabouço regulatório que
contemple adequadamente a amplitude, a temporalidade e a multidimensionalidade
dos impactos da mineração sobre os direitos indígenas.
“No
lugar da futurologia especulativa e impulsionada por interesses econômicos,
optamos por uma pesquisa empírica rigorosa, alicerçada na observação de como os
interesses minerários já impactam as comunidades indígenas na Amazônia
brasileira. Muito antes da mineração começar, os interesses minerários já
causam graves danos e impactos nos territórios. Eles violam os direitos
territoriais e políticos dos povos indígenas, distorcem e manipulam a consulta
prévia, enfraquecem as associações e movimentos indígenas, dividem comunidades
e criam barreiras para a demarcação de terras tradicionais.”
Fonte:
Por Maristela Crispim, da Agência Eco Nordeste, no MZC/MPI

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