Transformações
da burocracia pública
O mundo
nunca foi monótono ou estático. Desde que éramos caçadores-coletores, há
milhares de anos, era preciso atenção em relação a eventos inesperados, como o
surgimento de predadores ou agrupamentos humanos rivais.
Com o
tempo, a velocidade das mudanças, a complexidade dos problemas, o aprimoramento
técnico-científico e a incerteza quanto ao futuro foram se expandindo
exponencialmente: ascensão e queda de civilizações e impérios, iluminismo,
formação dos estados modernos, grandes navegações, mercantilismo, revoluções
políticas, industriais e culturais, guerras mundiais, globalização, capitalismo
transnacional, terrorismo, conflitos internos ou regionais, economia digital,
crise climática, redes sociais, inteligência artificial.
O mundo
contemporâneo, resultado de todo esse legado, se tornou extremamente complexo.
Diversos modelos conceituais e teóricos tentam tornam a realidade atual
minimamente inteligível: fala-se, por exemplo, em mundo “VUCA” (volátil,
incerto, complexo e ambíguo), mundo “BANI” (frágil, ansioso, não-linear e
incompreensível) e mundo “RUPT” (rápido, imprevisível, paradoxal e emaranhado),
considerando os acrônimos em inglês.
Em
outras palavras: vivemos em um mundo em que tudo pode acontecer, a qualquer
momento, de qualquer forma, a qualquer um ou a todos. Vivemos em um mundo
incerto e em constante e rápida transformação.
O
Estado, tal como pensando pelos contratualistas do passado (Hobbes, Locke,
Rousseau), naturalmente precisou – e precisa – se adaptar constantemente a esse
novo contexto. O Estado, cuja função primária era a defesa do território, da
população e de sua soberania (não que essa função deixou de existir, como os
conflitos atuais evidenciam), passou a ter muitas outras atribuições, complexas
e inesperadas, como a atual discussão sobre regulamentação da inteligência
artificial.
A
burocracia pública, ou seja, a estrutura técnico-administrativa-operacional que
materializa a atuação do Estado, enquanto entidade abstrata, também precisou,
naturalmente, se adaptar. A classificação tradicional da gestão pública em
modelos conceituais delimitados (patrimonial, burocrático e gerencial), embora
seja útil para fins didáticos, parece não ser mais suficiente para explicar a
realidade atual.
Atualmente,
chega-se a discutir um modelo neoweberiano, que manteria a essência da
administração burocrática, corrigindo ou ajustando, no entanto, suas já
conhecidas disfunções. Seria uma espécie
de “reinvenção” do modelo burocrático, incorporando elementos como inovação,
equidade, governança resiliente, entre outros.
É nesse
contexto que começam a surgir modelos conceituais para tentar entender como o
Estado e a burocracia pública devem ser remodelados e qual caminho devem seguir
para enfrentarem os desafios contemporâneos. É bastante interessante, nesse
sentido, a ideia de “estabilidade-ágil”.
O
Estado – e entende-se sempre em conjunto seu aparelho burocrático – deve ser
capaz de manter alguma estabilidade, afinal de contas é essa a essência do
contrato social original: o indivíduo cede parte de sua liberdade e autonomia e
em troca recebe a possibilidade de viver minimamente em paz e segurança,
protegido de um ambiente caótico de “todos contra todos”.
Em
outras palavras, toda sociedade precisa de um nível de estabilidade: possuir
regras claras e conhecidas, um ambiente que permita a realização de interações
econômicas, políticas, culturais, que proporcionem a convivência pacífica e
benéfica entre seus membros. É o que enfatizou o modelo de administração
pública weberiano: regras, processos, ritos, protocolos, impessoalidade,
formalização, padronização, racionalidade legal.
Ocorre
que essa concepção de Estado é incapaz de lidar com a realidade contemporânea,
como descrita anteriormente. Os problemas públicos são novos, incertos,
complexos, multifacetados e, pior, estão em constante mutação. É como o combate
a um vírus: pode-se produzir uma vacina ou um medicamento antiviral, mas nada
garante que essa solução seja definitiva; o vírus pode se adaptar, sofrer
mutações e exigir outras formas de enfrentamento.
O
Estado, portanto, precisa ser ágil para lidar com os problemas públicos atuais,
precisa ser capaz de adequar sua estrutura e suas capacidades institucionais
conforme o problema a ser enfrentado, de modo tempestivo e efetivo. Exemplos
não faltam: pandemia de Covid-19; desastres climáticos extremos, como as
enchentes no Rio Grande do Sul, em 2024; ataques virtuais que afetam milhões de
pessoas; crises de segurança pública; instabilidade no cenário internacional;
crise humanitária de povos indígenas ou de imigrantes; necessidade de organizar
grandes eventos internacionais, a exemplo do G20 e da COP 30 etc.
O
desafio, portanto, é garantir um nível de estabilidade, de institucionalidade,
pois o Estado precisa entregar constantemente bens e serviços à população, de
modo perene e previsível, ao mesmo tempo em que seja capaz de atuar de modo
dinâmico, adaptando-se aos problemas emergentes. Por isso a necessidade de uma
lógica de “estabilidade-ágil”.
Como a
discussão conceitual sobre o tema ainda é recente, é legítimo questionar de
quais instrumentos o Estado poderia dispor para incorporar uma estrutura
estável e ágil. Na verdade, tudo o que foi exposto até aqui se tratou de uma
contextualização necessária para abordar um processo recente por que vem
passando a administração pública brasileira: a priorização de carreiras
transversais. Esse é um bom exemplo de instrumento estatal mais alinhado ao
modelo de estabilidade-ágil.
Carreiras
transversais, ou seja, que atuam em mais de um órgão ou entidade da
administração pública, não são novidade. A Carreira de Especialista em
Políticas Públicas e Gestão Governamental, por exemplo, foi criada pela Lei nº
7.834, de 6 de outubro de 1989, para atuação em diferentes organizações
públicas.
Além
disso, muitas outras carreiras foram criadas ao longo do tempo, com níveis
distintos de transversalidade: algumas, apesar de comporem a mesma carreira ou
o mesmo grupo de cargos, foram espalhadas em diversos órgãos e entidades, sem
uma supervisão centralizada e sem restrição quanto às organizações em que
atuariam; outras foram criadas para atuar em um grupo de organizações diverso,
mas limitado por lei; outras ainda podem ser consideradas transversais por
atuarem em diferentes organizações de uma mesma área, a exemplo das Carreiras
de Magistério Federal e do Plano de Carreira dos Cargos Técnico-Administrativos
em Educação – PCCTAE, que compõem os quadros de todas as Instituições Federais
de Educação; entre outros. Há, portanto, diferentes gradações de
transversalidade.
Mas por
que carreiras transversais estão alinhadas a um modelo de estabilidade-ágil de
administração pública? Porque elas conferem ao Estado maior dinamicidade e
maior capacidade de adaptação. Carreiras fechadas e limitadas a um determinado
órgão ou a uma entidade prejudicam, de certo modo, o melhor aproveitamento da
força de trabalho disponível.
Como
coexistem, no sistema de carreiras do Poder Executivo federal, arranjos de
carreiras diversos, criados em momentos diversos e a partir de modelos
conceituais distintos, há casos, talvez a maioria deles, em que determinado
cargo ou carreira só pode atuar na organização para a qual foi criado.
É um
modelo, que predomina há muito tempo e ainda enraizado em grande parte da
cultura burocrática brasileira, segundo o qual cada órgão ou entidade precisar
possuir uma carreira própria. Só assim sua atuação seria efetiva. Tal modelo,
no entanto, já se mostrou disfuncional, pela fragmentação excessiva de
carreiras, pela falta de isonomia gerada no processo e pela competição interna
entre carreiras no setor público por melhores remunerações, sempre
considerando, por óbvio, aqueles que possuem patamares remuneratórios mais
elevados.
Naturalmente,
há casos em que será inevitável que uma carreira tenha atuação limitada a um
órgão. A questão central, no entanto, é passar de uma concepção de carreiras
criadas por órgão para um modelo de carreiras criadas por políticas públicas. O
responsável pela execução dessas políticas pode mudar ao longo do tempo, ou, o
que é mais comum, podem ser várias instituições corresponsáveis. Um modelo de
carreira por órgão dificulta a atuação ágil e efetiva do Estado nesse caso.
Há,
além disso, a questão do perfil geracional, que merece uma menção, mas que,
como não é objeto do presente texto, pode ser aprofundada em outra
oportunidade: a geração que ingressa no mercado de trabalho atual, ao contrário
de gerações anteriores, não tem a expectativa de passar toda a vida na mesma
organização realizando o mesmo trabalho. A diversidade de experiências e a
dinamicidade de atuação são muito valorizadas, características inerentes ao
modelo de carreiras transversais.
Conceber
carreiras transversais como instrumento de estabilidade-ágil do Estado
significa manter um quadro de profissionais estáveis, qualificados e
experientes, estimulando, inclusive, a diversidade da força de trabalho, e, ao
mesmo tempo, garantindo a estabilidade das políticas públicas e da atuação do
Estado. Além de estabilidade, facilita-se a agilidade e a assertividade do
Poder Público, que pode gerir sua força de trabalho de modo estratégico, a
depender das prioridades, dos problemas, do contexto e de outros condicionantes
específicos de cada momento.
O
desafio, que cresce à medida que o modelo de carreiras transversais é
expandido, envolve a realização adequada governança dessa força de trabalho. O
modelo pressupõe que haja uma estrutura de governança capaz de usar a
transversalidade de modo estratégico, garantindo que os melhores perfis para
cada posição estejam devidamente alocados e que os processos de movimentação e
gestão desses servidores seja efetivo, capaz de mantê-los motivados e engajados
e, acima de tudo, considerando o interesse público e o fortalecimento das
capacidades estatais nas áreas críticas.
Apesar
de as carreiras transversais, como dito, não serem propriamente uma novidade, o
Governo Federal tem promovido, mais recentemente, um processo mais intenso de
transversalização de carreiras, o que talvez tenha sido possível em virtude da
criação de um Ministério específico dedicado à gestão pública.
Esse
processo tem se concretizado por meio de diversas ações. Alguns exemplos:
(i)
edição da Portaria MGI nº 5.127, de 13 de agosto de 2024, que estabelece
diretrizes para criação ou reestruturação de carreiras. A Portaria, além de
definir o que são planos, carreiras e cargos transversais (“aqueles que tenham
possibilidade de atuação em mais de um órgão e entidade da administração
pública federal”), estabeleceu, em diversos dispositivos, a “priorização de
planos, carreiras e cargos efetivos que possam atuar de modo transversal”;
(ii)
criação, em 2023, da Carreira de Tecnologia da Informação, com caráter
transversal e supervisionada pela Secretaria de Governo Digital do Ministério
da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos;
(iii)
centralização, no Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos –
MGI, da supervisão da Carreira de Desenvolvimento de Políticas Sociais, que
continuará atuando em organizações variadas, relacionadas à temática social,
mas agora com uma supervisão estruturada;
(iv)
criação de novas carreiras para a Fundação Nacional dos Povos Indígenas –
Funai, com caráter transversal, ou seja, cargos que podem atuar em qualquer
instituição pública que tenha interface com a política indigenista;
(v)
Criação de duas novas carreiras transversais (Desenvolvimento Socioeconômico e
Desenvolvimento das Políticas de Justiça e Defesa), supervisionadas pelo MGI,
para atuação em áreas de políticas públicas especificas, ou seja, carreiras
estruturadas a partir das políticas públicas e não a partir de um determinado
órgão ou entidade;
(vi)
supervisão, pelo MGI, de um conjunto de cargos idênticos espalhados por
diversas organizações públicas (art. 214 da Lei nº 15.141, de 2 de junho de
2025), o que permitirá uma governança mais estruturada desses cargos; e
(vii)
priorização de carreiras transversais nas autorizações de concursos públicos, o
que fica claro nas duas edições do Concurso Público Nacional Unificado – CPNU.
O MGI
já anunciou que pretende seguir nesse caminho e adotar outras medidas legais
que reforcem o modelo de carreiras transversais. Esse instrumento não é, por
óbvio, uma “bala de prata” que resolverá todos os problemas da administração
federal (como, aliás, sempre é bom ressaltar, não existe “bala de prata” nesse
sentido).
O
modelo poderá, inclusive, a depender de como for consolidado com o tempo, até
mesmo gerar outros problemas, como eventual resistência de órgãos e entidades
em contar com uma força de trabalho dinâmica, não necessariamente sob sua
inteira governança. A transversalização de carreiras parece constituir, no
entanto, um mecanismo estratégico bastante alinhado à concepção de
estabilidade-ágil e aos desafios públicos contemporâneos, com potencial de
produzir resultados expressivos.
Que
essa seja uma medida de Estado, e não apenas de Governo, amadurecida e
aprimorada ao longo do tempo, contribuindo para evidenciar, para quem ainda tem
dúvidas, o caráter estratégico da política de gestão de pessoas no setor
público.
Fonte:
Por Douglas Andrade da Silva, em A Terra é Redonda

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