RISCO
À DEMOCRACIA BRASILEIRA: A cruz, a cerca e o fuzil
Durante
décadas, a análise política brasileira acostumou-se a separar os grupos de
pressão em Brasília. Falava-se da bancada ruralista que defendia os interesses
do agronegócio, da bancada evangélica que defendia uma moral religiosa e da
bancada da bala que pleiteava o endurecimento penal. Eram vizinhos de corredor
no Congresso, trocando favores ocasionais. Contudo, quem observa o Brasil
contemporâneo com as lentes do passado corre o risco de não enxergar o monstro
que se formou na sala. Aquelas fronteiras desapareceram e o que se assiste hoje
não é mais uma coligação de interesses, mas a fusão de identidades em um
projeto de poder totalizante: a Teocracia Agropastoril Miliciana.
Este
conceito, embora soe distópico, é a descrição mais precisa para um fenômeno
onde o fundamentalismo religioso fornece o “software” ideológico, o agronegócio
predatório provê o “hardware” financeiro e territorial, e o ambiente miliciano
(que contaminou parte das polícias, tanto estaduais quanto federais) oferece o
braço armado. O objetivo? A refundação do Estado brasileiro, não mais como uma
república laica e democrática, mas como um domínio sagrado, vigiado e armado,
onde a dissidência e o protesto são tratados não como oposição política ou luta
por direitos, mas como adversários em uma “guerra espiritual”.
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O fim da “Bancada BBB” e o nascimento do “Exército do Bem”
A
gênese desse fenômeno remonta à consolidação da chamada “Bancada BBB” (Boi,
Bala e Bíblia). O termo, cunhado ironicamente pela deputada Erika Kokay em
2015, descrevia uma articulação conservadora que começava a mostrar suas garras
em pautas como a redução da maioridade penal e o Estatuto da Família. No
entanto, a ironia do apelido envelheceu mal e o que era uma aliança tática
eventual tornou-se muito mais orgânica.
Parlamentares
como o Capitão Augusto (PR-SP) já rejeitam a nomenclatura fragmentada. Para
eles, não há distinção entre o policial que atira, o pastor que prega e o
fazendeiro que desmata; eles se autodenominam a “Bancada da Vida” ou do “Bem”.
Essa mudança semântica parece simples, mas na verdade é crucial já que na
política democrática, adversários debatem ideias, enquanto na teocracia
miliciana, o “Bem” combate o “Mal”. E contra o mal absoluto, qualquer violência
é permitida, qualquer lei humana é secundária e qualquer supressão de direitos
é, na verdade, um ato de saneamento moral.
A
tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 foi o cartão de visitas explícito
dessa nova ordem, ali, a fusão se materializou: a “massa crítica” para a
abolição do Estado de Direito foi financiada por empresários do agronegócio,
inflamada por uma retórica religiosa de fim dos tempos e facilitada por uma
omissão cúmplice das forças de segurança. Mas para entender como chegamos a
esse ponto de ruptura, precisamos dissecar a anatomia dessa quimera, começando
por sua alma.
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O pilar teológico: do púlpito ao trono
Esqueça
a velha Teologia da Prosperidade, focada apenas em fazer o indivíduo enriquecer
através do dízimo, a força motriz da Teocracia Agropastoril Miliciana é a
Teologia do Domínio. Importada do reconstrucionismo cristão norte-americano e
adaptada ao neopentecostalismo brasileiro, essa doutrina postula que os
cristãos têm um mandato divino para “ocupar” e governar as estruturas da
sociedade antes que Cristo possa voltar.
A
estratégia, conhecida como o “Mandato dos Sete Montes”, orienta os fiéis a
tomarem o controle de sete áreas-chave: religião, família, educação, governo,
mídia, artes e negócios. Sob essa ótica, um pastor eleito deputado não está lá
apenas para representar seus fiéis, mas para submeter as leis dos homens à “Lei
de Deus”. A laicidade do Estado é vista como um erro histórico a ser corrigido,
uma brecha por onde o “inimigo” (a esquerda, os movimentos sociais, as
religiões de matriz africana) entrou.
Essa
visão de mundo cria o que pesquisadores chamam de Cristofascismo: um regime
onde o autoritarismo político é sacralizado.[6] A política deixa de ser o
espaço da negociação para se tornar o palco da “Guerra Espiritual”. Opositores
não são concidadãos com opiniões divergentes; são “filisteus”, “amalequitas”[7]
ou agentes demoníacos que precisam ser neutralizados para que a nação prospere.
É essa
teologia que permite a um líder religioso subir à tribuna do Congresso e
defender, com a Bíblia na mão, a retirada de direitos de minorias ou a posse de
fuzis, argumentando que está cumprindo a vontade divina contra as forças do
caos. A intolerância deixa de ser um preconceito pessoal e vira um projeto de
santificação do território nacional.
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O pilar econômico: quando a soja é santa
Se a
teologia fornece a justificativa moral, o agronegócio fornece o combustível
material, mas não estamos falando do
pequeno produtor rural. Falamos de um modelo de agronegócio financeirizado,
tecnológico e expansionista que também passou por uma “conversão” teológica. O
antigo slogan publicitário “Agro é Pop” foi subliminarmente substituído por
“Agro é Santo”.
Em
grandes feiras agrícolas no Centro-Oeste, a liturgia mudou e não é raro ver
pastores abençoando colheitadeiras gigantescas e drones de última geração em
cerimônias de ação de graças, onde a tecnologia de ponta é ungida como
instrumento da providência divina para “alimentar o mundo”. A prosperidade da
safra é vista como sinal da bênção de Deus; logo, qualquer entrave a essa
produção, seja a demarcação de terras indígenas, a fiscalização ambiental ou
leis trabalhistas, é uma afronta ao plano divino.
Essa
sacralização do lucro cria uma blindagem ética perfeita para a predação. O
desmatamento e a invasão de territórios tradicionais são ressignificados como a
“sujeição da terra” ordenada no Gênesis. E para garantir essa expansão, o
capital agrário não hesita em financiar a política radical. Investigações sobre
os atos antidemocráticos revelaram que pelo menos 142 empresários do setor,
concentrados em estados como Mato Grosso e Pará, financiaram a logística do
caos em Brasília.
No
campo, essa aliança se traduz nas Agromilícias. Grupos armados, muitas vezes
compostos por ex-policiais ou agentes de segurança privada, atuam como
exércitos particulares para “limpar” áreas de interesse, atacando indígenas e
sem-terra. A violência no campo bate recordes, alimentada pela certeza da
impunidade garantida por seus representantes no Congresso e pela bênção de seus
líderes espirituais. Em alguns casos, “missões evangélicas” funcionam como
ponta de lança, entrando em territórios indígenas para desestruturar a cultura
local sob o pretexto de evangelização, abrindo caminho para a exploração
econômica subsequente.
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O pilar coercitivo: a evangelização do gatilho
O
terceiro e mais perigoso vértice desse triângulo é a captura ideológica das
forças de segurança. A tese da Teocracia Agropastoril Miliciana alerta para um
fato alarmante: a polícia brasileira está sendo catequizada para servir a Deus
acima da Constituição.
O
principal vetor desse movimento é o programa UFP (Universal nas Forças
Policiais), da Igreja Universal do Reino de Deus. Sob o pretexto de oferecer
assistência espiritual e palestras sobre ética e depressão, a igreja penetrou
em batalhões e delegacias de todo o país. Em estados como São Paulo, a UFP
chegou a ter acesso irrestrito a todas as guarnições, distribuindo livros de
seus líderes e criando uma relação de dependência emocional com a tropa.
O
perigo reside na dupla lealdade. Um policial que vê sua autoridade como uma
concessão divina e seu pastor como um comandante espiritual tende a obedecer a
diretrizes religiosas em detrimento da lei civil. Denúncias no Ministério
Público apontam para a coação de policiais a frequentar cultos e a perigosa
mistura de símbolos estatais com a logomarca da igreja.
Enquanto
a polícia se “igrejifica”, a igreja se militariza. Projetos como os Gladiadores
do Altar introduziram uma estética fascista no culto: jovens uniformizados,
marchando em formação rígida, batendo continência e gritando palavras de ordem
no altar. Embora a igreja alegue ser uma metáfora para a “batalha espiritual”,
a semiótica é inequivocamente bélica. Prepara-se o imaginário do fiel para o
confronto.
A
consequência prática é a normalização do policial fardado no púlpito e do
discurso de extermínio como caridade cristã. A “Bancada da Bala” trabalha no
Congresso para legalizar o ativismo político de policiais, enquanto símbolos
como a bandeira de Israel começam a ser usados não como homenagem diplomática,
mas como insígnia de uma nação imaginária, guerreira e teocrática, que eles
acreditam defender nas favelas brasileiras.
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O laboratório do caos: o complexo de Israel
Se a
teoria parece abstrata, a realidade do Rio de Janeiro oferece um vislumbre
aterrorizante do futuro que este modelo propõe. No conjunto de favelas da Zona
Norte conhecido como Complexo de Israel, liderado pelo traficante Álvaro
Malaquias Santa Rosa, o “Peixão”, a teocracia miliciana já é realidade.
Ali, o
crime organizado adotou o fundamentalismo como método de governo. Estrelas de
Davi de néon brilham no topo dos morros, visíveis a quilômetros. A intolerância
religiosa é a lei: terreiros de Candomblé e Umbanda são depredados, incendiados
e seus sacerdotes expulsos sob a mira de fuzis. É o fenômeno do
Narco-Pentecostalismo , onde o traficante se vê como um “ungido”, citando
salmos enquanto executa rivais.
Embora
o termo seja controverso e debatido por acadêmicos que temem a estigmatização
dos evangélicos de periferia, a prática de domínio territorial baseada na
supressão da diversidade religiosa e na aliança com setores corruptos da
polícia (a faceta miliciana) é inegável. O Complexo de Israel é o microcosmo da
Teocracia Agropastoril Miliciana: um território onde o Estado laico morreu,
substituído por um regime de terror santificado, onde a Bíblia serve de escudo
para o fuzil e o lucro do crime.
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A engrenagem legislativa: onde o projeto vira lei
Enquanto
o terror se espalha nas pontas (no campo com as agromilícias e na favela com o
narco-pentecostalismo), o centro de comando opera em carpetes azuis, sob o
ar-condicionado de Brasília. A atuação da “Bancada da Vida” no Congresso
Nacional demonstra uma coordenação impressionante.
Os
dados mostram que os interesses se cruzam perfeitamente. A indústria de armas
até recentemente financiava tanto os líderes da bancada ruralista quanto os da
bancada da bala e evangélica. O dinheiro cria a fidelidade. Quando o assunto é
o Marco Temporal das terras indígenas, 88% da Frente Parlamentar Evangélica
votou contra os povos originários, alinhando-se automaticamente aos interesses
do agronegócio.
A
lógica é de troca mútua de proteção. O ruralista quer a terra e a arma; o
policial quer a excludente de ilicitude
para usar a arma que já tem; o fundamentalista quer a imposição moral e a
demonização do “outro”. Juntos, eles aprovam leis que enfraquecem o
licenciamento ambiental, facilitam o acesso a arsenais de guerra e tentam
criminalizar movimentos sociais, uma verdadeira institucionalização da
barbárie.
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Conclusão: o desafio da Democracia
O
conceito de Teocracia Agropastoril Miliciana não é um exagero retórico; é um
diagnóstico de urgência. O Brasil não está apenas “polarizado”, ele está sendo
disputado por um projeto de poder que visa subverter os princípios fundadores
da República.
Não se
trata de demonizar a fé evangélica, que é plural e muitas vezes serve como rede
de proteção social onde o Estado falha. Trata-se de denunciar o sequestro da fé
por um projeto político autoritário. Não se trata de atacar a agricultura,
vital para a economia, mas de expor a facção predatória que usa a religião para
lavar a grilagem e o sangue indígena. Não se trata de criticar a segurança
pública, mas de apontar a contaminação das forças policiais por ideologias que
transformam o cidadão em inimigo a ser abatido.
O
avanço desse modelo representa o maior risco à democracia brasileira desde a
redemocratização. Se a “cruz, a cerca e o fuzil” continuarem a avançar sem
resistência, o Brasil corre o risco de se tornar um imenso “Complexo de
Israel”: um país onde a liberdade é privilégio de quem reza para o deus certo,
vota no candidato armado e lucra com a terra arrasada. A teocracia não está
chegando; ela já está operando, votando e atirando. Resta saber se as
instituições democráticas terão força para reafirmar que o Brasil é um Estado
laico, de todos, e não uma propriedade privada de uma milícia santa.
Fonte:
Roberto Uchôa de Oliveira Santos

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