quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Quem tem medo de abrir o cânone?

À luz da recente entrevista dada pela professora Aurora Bernardini (USP) à Folha de São Paulo – em que afirma que as obras de Itamar Vieira Jr., Annie Ernaux e Elena Ferrante são interessantes, “mas não são literatura” – e à luz do artigo “Murro em ponta de faca”, publicado por José Falero na edição de novembro da Revista Piauí, gostaria de fazer uma reflexão sobre o famigerado cânone literário, suposto nesse debate.

Meu alvo, no entanto, são as considerações de Harold Bloom, que, a meu ver, ecoam o desconforto atual diante da chamada “abertura do cânone”.

Em 1790, Immanuel Kant escrevia sobre o fundamento universal de nossos juízos de gosto. Para ele, quando alguém afirma que “esta obra é bela”, não pretende que ela seja bela só para ele, mas supõe que há algo nesse juízo que remete à universalidade do julgamento estético. Se leio o texto de Shakespeare e nele vejo beleza, se digo aos demais “o quão bela é esta passagem do Rei Lear”, mesmo que a origem desse enunciado seja subjetiva, mesmo que seja um juízo singular, ainda assim ele aspira a uma tal universalidade que não pode ser reduzida ao adágio segundo o qual “cada um tem o seu gosto”.

Para Kant, na apreensão sensível daquela obra, a minha imaginação e o meu entendimento ingressam em um “livre jogo”, animam-se reciprocamente de um modo que resulta em um sentimento aprazível. É esse sentimento que funda o predicado da beleza. E alguns – como Shakespeare –, teriam o talento, dado pela própria natureza, de unir a imaginação (a faculdade sensível), o entendimento (a faculdade conceitual) e o espírito (a força do ânimo) de tal maneira a construir uma obra que parecesse, ela mesma, produto da natureza.

A esses Kant chamou “gênios”. Para o filósofo alemão, gênio não é aquele que segue as regras já estabelecidas (por exemplo, nas poéticas prescritivas), mas aquele que, pela sua originalidade, cria as regras: os produtos de sua ação se tornam “ao mesmo tempo modelos, isto é, (…) exemplares; (…) portanto, mesmo não tendo surgido eles mesmos da imitação, têm de servir a outros como tal, isto é, como padrão de medida ou regra de julgamento” (Kant, 2016 [1790], p. 205-6).

Com efeito, o gênio é justamente aquele que, capaz de produzir obras exemplares e modelares, padrões de regras de julgamento, é capaz de produzir uma peça do cânone universal: uma obra que agrega “critérios severamente artísticos”, como na expressão de Harold Bloom (2010, p. 29).

Quero chamar a atenção para o fato de que os critérios kantianos de determinação de uma obra de arte exemplar – a obra de gênio – reagem aos critérios que o antecederam. Quando Kant remete os critérios à dinâmica das faculdades da mente humana e à originalidade enquanto criação de um exemplar, choca-se frontalmente com a concepção de que o valor de uma obra deva ser dado pelo modo como ela imita a tradição, pelo modo como retoma e realiza o que a tradição lhe prescreveu.

Não será no tratado de Batteux nem nos livros de Lessing (cf. Kant, 2016 [1790], p. 182) que vou encontrar as razões pelas quais é bela uma obra de arte. Aliás, não será propriamente a composição da obra que me evidenciará a sua beleza, a não ser naquilo que essa composição remeter à originalidade — soma do talento, da imaginação, do entendimento e do espírito (cf. §49 da Crítica da faculdade de julgar). Com isso, pouco importa que Shakespeare tenha sido criticado por não respeitar as unidades aristotélicas (cf. Durão, 2014, p. 618): se a sua obra criou regras e tornou-se padrão de julgamento, se Shakespeare mostrou-se original no sentido kantiano, criou uma obra de gênio, capaz de ser canônica.

Note que ainda estamos discutindo critérios de avaliação estética munidos do obscuro conceito de “beleza”: beleza ora como uma adequação à determinada concepção composicional, o acordo com determinadas regras de construção; beleza ora como a própria experiência estética de estar diante de uma obra original, cuja universalidade se baseia numa dinâmica subjetiva das faculdades humanas.

Mas o julgamento estético nem sempre dependeu, ao longo da história, do conceito de beleza. A certa altura, não é propriamente a beleza de uma obra que será avaliada, mas o próprio conceito de arte que a ela subjaz, se pensarmos nas experiências artísticas do século XX.

Levo em consideração, nesse aspecto, o trabalho de Thierry de Duve, Kant depois de Duchamp, em que o crítico belga mostra como a antinomia kantiana da beleza dá lugar à antinomia duchampiana do que é a própria arte: “O fato de ‘isto é arte’ ainda significar ‘isto é belo’ ou algo similar é irrelevante, dependendo em grande parte (…) de o julgamento se situar em convenções de arte já aceitos ou ainda em questão (…). De fato, toda obra-prima da arte moderna (…) foi a princípio recebida com indignação; ‘isto não é arte!’” (Duve, 1998, p. 135).

O que esse excurso histórico nos ensina é que os padrões mudam com o tempo. A depender da época, pode-se assumir o valor de uma obra através da adequação às poéticas prescritivas de base aristotélica (determinantes para a compreensão do classicismo), através de critérios subjetivos kantianos (determinantes para a compreensão do romantismo) ou através da própria capacidade de a obra reinventar o conceito de arte (determinante para a compreensão do modernismo).

Com efeito, o conceito de cânone se vincula diretamente com os critérios segundo os quais uma obra pode ser candidata a pertencer à lista canônica. O próprio Harold Bloom, que escreve a favor de certo cânone ocidental contra o “vale-tudo” do que ele chamou de “Escola do Ressentimento”, tem consciência – ainda que não a explore como deveria – do caráter histórico dos critérios estéticos: “o ‘valor estético’ é às vezes visto mais como uma sugestão de Immanuel Kant do que como uma realidade, mas não tem sido essa minha experiência em toda uma vida de leitura” (Bloom, 2010, p. 11).

E, no entanto, Harold Bloom elabora um conceito de cânone que, a despeito da aproximação que encerra com o conceito kantiano, não parte, por um lado, da justificação subjetiva e universalizante do filósofo alemão e, por outro lado (o que é pior), não me parece esforçar-se por elaborar uma justificativa convincente.

Tal como Kant, Harold Bloom afirma que o traço distintivo da obra canônica é a originalidade, mas atribui essa originalidade a uma “estranheza que jamais assimilamos inteiramente, ou que se torna um tal fato que nos deixa cegos para suas idiossincrasias” (Bloom, 2010, p. 14).

O crítico não apresenta, todavia, as notas características dessa estranheza, e nem demonstra por que deveriam ser tais notas e não outras. Os caracteres da originalidade remeteriam à composição da obra? À forma como a obra se organiza? Dizem respeito ao efeito que a obra produz no leitor? Se sim, o que caracteriza esse efeito de um ponto de vista subjetivo? Ele faz parte de um efeito coletivo na subjetividade dos leitores? Não me parece evidente uma resposta para essas questões no texto de Harold Bloom.

Há uma passagem, no entanto, em que o crítico aparentemente alude a características particulares que a obra deve possuir para ser candidata a participar do cânone: ela deve possuir uma “força poética”, que é composta por: “domínio de linguagem figurativa”, “originalidade”, “poder cognitivo”, “conhecimento” e “dicção exuberante” (Bloom, 2010, p. 36).

Ora, em primeiro lugar, todas essas qualificações são vagas. “Domínio da linguagem figurativa”? Houve grandes críticos, como Italo Calvino (1991), que reuniram obras de grande domínio da linguagem figurativa (como a Odisseia, de Homero, e a Metamorfose, de Kafka) na mesma lista canônica de obras de “baixa taxa figurativa” (como a História natural, de Plínio Segundo, e o Discurso do método, de Descartes). Não quero dizer, com isso, que o domínio da linguagem figurativa não possa ser um critério de canonização, mas é preciso justificar essa escolha.

“Dicção exuberante” é uma expressão ainda mais vaga que “domínio da linguagem figurativa”. E por que, afinal, distinguir “poder cognitivo” de “conhecimento”? E a que conhecimento Bloom se refere? É aquele que aprendemos ao ler a coletânea da Comédia humana, de Balzac, ou aquele que aprendemos ao ler todos os volumes da História natural, de Plínio? “Originalidade”, sim: mas, em que aspectos e em que sentido? É um criador de regras, modelos, um ponto fora da curva na tradição?

Com relação à força da tradição, entretanto, estou plenamente de acordo com Harold Bloom: o cânone, seja ele qual for, faz parte de um processo de influência literária – está dentro de um “sistema” formado por denominadores comuns, para usar o conceito de Antonio Candido (2000, p. 23). Também concordo que, mais que componentes psicológicos, espirituais e sociais, o maior componente dessa influência é o elemento estético: Machado de Assis, por exemplo, reelabora motivos e estruturas supostamente mitigadas em José de Alencar. Mas, como eu disse, o valor do elemento estético é suscetível às contingências da passagem do tempo: é diante de Machado que Alencar é recolocado.

Essas contingências dependem do caráter contingente da própria leitura e releitura. Na esteira de Reis (1992), considero que o texto literário seja um vazio cuja semantização depende da leitura, historicamente determinada (cf. Reis, 1992, p. 2), a despeito das determinações históricas que o texto internaliza e engendra na sua própria composição formal, cuja autonomia se preserva.

Ora, o elemento histórico internalizado no texto e o caráter histórico da leitura são sugeridos pelo próprio Harold Bloom, como na seguinte passagem: “Em cada era, alguns gêneros são encarados como mais canônicos que outros” (Bloom, 2010, p. 28). Shakespeare não se tornou canônico da noite para o dia: a sua canonização também dependeu das leituras e releituras – dele e sobre ele. E ao “arrasar” e “subordinar” a tradição, Shakespeare também se manifestou enquanto contingência: para a tradição ser relida, aconteceu de Shakespeare ter aparecido para relê-la – e essa já é, aliás, uma releitura…

E é em razão dessa contingência que o cânone pode ser aberto: não é que ele devaser aberto, mas é o simples fato de que, pelas contingências a que é submetido, o cânone não é hermético, mas permeável. E, bem entendido, não sou apenas eu quem defende essa ideia. Ela é defendida por esse mesmo autor que afirma ter escolhido uma lista canônica pela “sublimidade” das obras que a compõem: “Entre nós hoje existem Gabriel García Márquez, Pynchon, Ashberry e outros prováveis de tornar-se igualmente canônicos, como Borges e Beckett entre os recém-falecidos” (Bloom, 2010, p. 46).

Com isso, não me parecem convincentes os argumentos de Harold Bloom para justificar quais são as características distintivas daquilo que se constitui como o cânone. Sustentar-se nas características da estranheza e da originalidade não deixa de ser uma operação arbitrária. Harold Bloom parece não se dar conta de que tem os pés em duas canoas: ou bem assume a contingência das releituras (amiúde violentas e demolidoras), os processos inevitáveis de influência (quase sempre conflituosos) e o caráter histórico dos critérios estéticos, ou bem assume, como um platônico, que a noção de originalidade e a de estranheza são unívocas e imutáveis, habitantes de um mundo das ideias estéticas independente da contaminação pela empiria histórica — tese, a meu ver, difícil de defender.

Não me importam, entretanto, as razões pelas quais ocorrem essas contingências, as causas da mudança dos critérios e o motivo pelo qual se manifestam determinadas releituras, e não outras. Tomando esse cuidado, quero ressaltar que não me parece nada óbvio que o cânone seja o simples resultado de um poder opressor, e que não esteja sobretudo vinculado à recolocação criativa de novos critérios estéticos ao longo do tempo.

Nesse sentido, discordo de Reis, quando o autor reduz o cânone a um reduplicador das “relações injustas que compartimentam a sociedade” (Reis, 1992, p. 6), e me junto a Durão (2014), quando ele mostra que o cânone literário pode perfeitamente existir às margens do poder – frequentemente ignorado, aliás, pelas elites intelectualmente tacanhas, porquanto o cânone se difunde, a duras penas, em um mundo no qual cada vez se dá menos valor para a literatura. É de se perguntar: nesse mundo, que poder o cânone ecoa e que relações injustas ele reduplica?

Com isso, é possível defender a autonomia estética e aceitar, ao mesmo tempo, que os nossos critérios estéticos mudam. O cânone existe, mas ele não é imune à reinterpretação. Não quero propor, com isso, um “vale-tudo estético”, à maneira dos pós-modernos, mas quero ressaltar que a história, seja ela qual for, é uma escritura dependente da consciência do presente. Shakespeare, por razões históricas, tornou-se um centro de influência, de que resultou uma contínua apropriação e reelaboração histórica dos critérios estéticos que inaugurou.

Por essa razão, o bardo certamente não sairá tão cedo do cânone. No entanto, pela própria historicidade dos critérios estéticos – assumida por Harold Bloom –, nem a Shakespeare cabe um noli me tangere canônico nem o cânone é impermeável às obras do passado, do presente e do futuro.

 

Fonte: Por Eliakim Ferreira Oliveira, em A Terra é Redonda

 

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