Guilherme
Arruda: “O principal desafio do SUS é político”
Apesar
da importância de ações técnicas que melhorem o atendimento no Sistema Único de
Saúde (SUS), o caminho para enfrentar decisivamente os desafios mais amplos da
Saúde no Brasil passa pela política e não por medidas administrativas. Foi o
que defendeu Jairnilson Paim, sanitarista e professor da Universidade Federal
da Bahia (UFBA), no primeiro Grande Debate do 14º Congresso Brasileiro de Saúde
Coletiva.
Na
visão do veterano da Reforma Sanitária, as crescentes ameaças ao direito à
saúde se entrelaçam à contradição cada vez mais aguda entre capitalismo e
democracia, visível em todas as partes do mundo. Afinal, o setor não escapa dos
processos mais gerais que ocorrem no sistema econômico: a financeirização e a
concentração de capital se expressam de forma aguda também na Saúde.
Por
isso, em meio à crise, os defensores de um sistema público e universal de saúde
não podem se restringir à defesa de melhorias pontuais nos serviços. “Todos nós
que queremos que o SUS funcione devemos apoiar mudanças importantes na
estrutura tributária brasileira”, exemplifica. O sanitarista também alerta:
historicamente, políticas econômicas de ajuste fiscal serviram de antessala à
ascensão do fascismo.
A
intervenção de Paim fez parte da mesa “A Saúde e os Desafios do Século 21”,
realizada no domingo (30), de que também participaram o representante da OPAS
Christian Morales e o atual ministro da Saúde, Alexandre Padilha. Mais
conhecido como Abrascão, o maior dos congressos promovidos pela Associação
Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) segue até o dia 3 de dezembro, em
Brasília (DF).
Em sua
fala, o professor da UFBA destacou que 2026 será um ano importante “para o SUS,
mas também para o destino do Brasil, e precisamos nos preparar desde já para
encarar esse desafio para a saúde e à sociedade brasileira”. Essa preparação
envolve aprofundar compreensões teóricas. Entender, por exemplo, os mecanismos
que tornam a Saúde, cada vez mais, um “locus de acumulação de capital” – que se
dá via financeirização, penetração do setor privado na infraestrutura e
produção, entre outras dinâmicas. Mas também é preciso definir tarefas
concretas de ação.
O
enfrentamento às desigualdades, aponta o sanitarista, deve ser um dos eixos
dessa luta política. O Brasil, lembra, é um país de “desigualdades enormes”,
com grande concentração de “riqueza, poder político e privilégios”. Ao
concentrar poder político, o grande capital promove uma “desdemocratização” da
sociedade e da saúde, contrapondo-se a um princípio basilar do SUS e da Reforma
Sanitária Brasileira.
Para
Jairnilson, “no mundo inteiro, as democracias se encontram em crise, sobretudo
devido a políticas econômicas que a fragilizam”. Como demonstrou recentemente a
economista Clara Mattei em seu livro A Ordem do Capital, citado pelo professor
da UFBA, é uma tendência histórica centenária que a austeridade abra caminho
para o fascismo, ao bloquear o atendimento às necessidades e aspirações
populares. A dinâmica é claramente perceptível na Saúde: o ajuste fiscal
aprofunda o subfinanciamento do SUS, precarizando a oferta de serviços à
população e a garantia de uma saúde integral.
O
Brasil não fica de fora da tendência. “Nós temos ainda um Arcabouço Fiscal”,
lembra Paim, e a reforma tributária recém-aprovada é tímida. Para o
sanitarista, a realização de uma Reforma Tributária verdadeiramente profunda é
uma das tarefas políticas que devem estar na ordem do dia – tanto para
confrontar as desigualdades quanto para minar o poder desdemocratizante do
grande capital. Hoje, dados apresentados pelo pesquisador revelam que o 1% mais
rico da população brasileira possui 36,2 vezes mais rendimentos que os 40% mais
pobres. Além disso, nos últimos anos, os ultrarricos que recebem mais de 320
salários mínimos conseguiram até mesmo reduzir a taxa de impostos que pagam.
Sem
enfrentar essa concentração de poder e dinheiro, será difícil reverter a
desdemocratização capitalista, inimiga do financiamento robusto da saúde. Os
embates sociais, inclusive, se expressam em diferentes projetos para o SUS: que
pode apresentar uma face mercantilizada, racionalizadora de recursos ou
realmente expressar a visão de sociedade da Reforma Sanitária, democrática e
socializante. Também não bastaria recuperar os programas descontinuados nos
recentes anos de retrocesso político – “o que existia antes ainda não era o
suficiente”, ele reforça.
Nesse
cenário, cabe aos defensores do sistema público dedicar-se não apenas à
proposição de melhorias no SUS, mas também à luta e ao convencimento dos
“indecisos e cautelosos” na sociedade para um programa de mudanças. Estes
segmentos serão decisivos para a construção das transformações históricas que
vão garantir o direito à saúde, e mais amplamente, o cumprimento do princípio
da dignidade da pessoa humana, defendeu Paim.
“O SUS
é muito importante, mas não vai resolver sozinho os problemas mais retrógrados
da sociedade brasileira. É preciso ir muito além do SUS”, concluiu o
sanitarista.
<><>
Por uma nova política econômica
O
segundo Grande Debate do dia contou com importantes reflexões no mesmo sentido.
No painel “A democracia em transe: debatendo as crises dos regimes democráticos
no Ocidente”, a cientista política e pesquisadora da Fiocruz Sonia Fleury
afirmou: “As ameaças à democracia são ameaças à saúde, a luta não é setorial.
As perdas nos direitos sociais estão ligadas às transformações no padrão de
reprodução do capital”.
A
tentativa do andar de cima de resolver a crise econômica capitalista cortando
gastos está gerando consequências como o aumento das desigualdades, o
aprofundamento da crise climática e a reorganização do tecido produtivo, ela
alerta. Este processo anda lado a lado com os processos de autocratização e
desdemocratização nos países, ao gerar um “caldo de cultura de ressentimento”
na população, explica Fleury: em meio ao desmonte de políticas sociais, o
Brasil segue pagando R$1 trilhão por ano de juros da dívida pública.
Fazendo
um balanço da “onda rosa” que atravessou a América Latina nas primeiras décadas
do século XXI, a cientista política avaliou que os governos progressistas
limitaram suas ações à transferência imediata de renda para os segmentos mais
vulneráveis, sem construir um novo modelo político e econômico de
soberania. “Em vez de industrializar-se,
os países se reprimarizaram”, ela nota. A opção teve consequências: “Enquanto
ficamos construindo instituições, deixamos de fazer um movimento
político-ideológico que disputasse significados de liberdade, família” e outros
conceitos caros à população, hoje instrumentalizados pela extrema-direita em
ascensão.
Mudar o
exercício da política, construindo uma “política que transforma” e um Estado
pedagógico que convoca a sociedade à mobilização, é um passo para enfrentar as
ameaças à democracia na sociedade e na saúde, avalia. Na visão de Sonia Fleury,
o cuidado deve ser um eixo central da busca por uma política que gera vida
digna, por pressupor a alteridade e se concretizar no espaço dos territórios.
Para
ela, que também participou da Reforma Sanitária, três pontos são essenciais
para concretizar a mudança de rota. Um deles, o balanço de que a política de
alianças de 2022 serviu para eleger Lula, mas não para governar e cumprir com
um programa de mudanças. Outro, a composição de um futuro novo governo com
quadros comprometidos com essas transformações sociais urgentes, e não com as
alianças fisiológicas. E, principalmente, “uma nova política econômica, que não
seja o Arcabouço Fiscal”, completou.
Fonte:
Outra Saúde

Nenhum comentário:
Postar um comentário