quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

O que deveria acontecer com o mandato dos deputados "fugitivos"?

Mesmo no exterior, Alexandre Ramagem, Carla Zambelli e Eduardo Bolsonaro ainda têm acesso a verbas de gabinete e mantêm os mandatos. Para especialistas, leniência da Câmara com esses casos piora a imagem do Congresso.

A confirmação de que o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ) fugiu para os Estados Unidos numa suposta tentativa de escapar de uma condenação do Supremo Tribunal Federal (STF) fez dele o terceiro parlamentar bolsonarista a deixar o país durante o mandato.

O ex-chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) no governo de Jair Bolsonaro foi localizado em um condomínio de luxo em Miami, para onde fugiu em setembro. Ele foi condenado pelo STF a 16 anos de prisão pela tentativa de golpe de Estado , após a derrota na eleição de 2022, no mesmo processo do ex-presidente. Ele é considerado foragido.

A Ramagem se somam Carla Zambelli (PL-SP), presa emjulho na Itália após fugir do país e já condenada a 10 anos pelo STF por invasão ao sistema do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que se mudou para os Estados Unidos em fevereiro alegando "perseguição política". Neste mês, o filho de Bolsonaro tornou-se réu no Supremo por suposta tentativa de coagir a Justiça brasileira ao tentar influenciar autoridades americanas no processo que envolve o ex-presidente.

Filiados ao Partido Liberal (PL) e aliados de primeira hora de Jair Bolsonaro, preso preventivamente nesse sábado (22/11), os três deputados federais mantêm, apesar dos imbróglios com a Justiça, verbas e cargos na Câmara dos Deputados .

De acordo com especialistas consultados pela DW, além do impacto nas contas públicas, o caso dos deputados "fujões" colocaria em evidência a incapacidade do Congresso e do seu presidente, Hugo Motta (Republicanos-PB), de punir os próprios membros, e também revelaria uma busca dos bolsonaristas por uma narrativa de "perseguição" para supostamente encobrir os crimes cometidos.

<><> Imobilismo político

Eduardo Bolsonaro e Carla Zambelli tiveram os salários congelados pela Câmara desde que saíram do país. No entanto, continuam tendo acesso a verbas por meio dos gabinetes. De acordo com o site Metrópoles, o filho do ex-presidente já gastou mais de R$ 1 milhão para manter os nove servidores a que tem direito durante o mandato.

O gabinete Zambelli também tem mantido os gastos, apesar de a deputada estar presa na Itália. Em setembro, por exemplo, os gastos da estrutura parlamentar dela ultrapassaram os R$ 100 mil, segundo a CNN Brasil.

Já Ramagem, que se licenciou do cargo em setembro, antes de fugir do país por Roraima para os EUA, custou, desde então, mais de R$ 300 mil para os cofres públicos, incluindo salários. O levantamento é da revista Veja.

"Do ponto de vista jurídico, existem leis e regras para coibir crimes, mesmo que cometidos por parlamentares. Mas, do outro lado, existe um regimento da Câmara, que parece ser desenhado para proteger os deputados", afirma o cientista político Rodrigo Prando, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

De acordo com a legislação, um deputado, mesmo que condenado pela Justiça, precisa passar por um processo político para perder o mandato – o que requer tramitação em comissões da Câmara e votação em plenário, que precisa ser pautada pelo presidente da Casa. No caso de Zambelli, o processo de cassação foi aberto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) em julho, mas ainda não saiu do colegiado para o plenário.

"Provavelmente, no seu regimento, existe esse espaço para que o Hugo Motta, que tem demonstrado debilidades no exercício do poder, não tome uma decisão que ao punir vai desagradar a base bolsonarista", acrescenta Prando.

Ele lembra o caso da rebelião dos deputados bolsonaristas, que ocuparam em agosto a mesa-diretora da Câmara por 36 horas, impedindo os trabalhos parlamentares. A crise só foi contida por causa da atuação do presidente anterior, Arthur Lira (PP-AL). "Isso acabou deixando o Hugo Motta refém dessa bancada bolsonarista mais fanatizada", complementa o politólogo.

Os parlamentares "fujões" também podem perder o mandato por acúmulo de faltas no exercício do mandato. Segundo a Constituição, basta um terço de ausências em um ano legislativo para que isso aconteça. O critério já valeria para Eduardo Bolsonaro, que já faltou a 78% das sessões em 2025, e Zambelli, com 55% de ausências. Ramagem, por outro lado, esteve presente em todas as sessões – o ex-chefe da Abin ainda está de licença na Casa, mesmo foragido. Os dados são da Câmara.

"O Eduardo Bolsonaro talvez seja uma figura sem paralelos na Nova República, por atacar o país dos EUA, articulando tarifas contra o Brasil. Mesmo assim, o Hugo Motta não fez uma reunião para cassar o mandato dele por faltas. Enquanto isso, o regimento permite que uma presa na Itália [Zambelli], outro foragido nos EUA [Ramagem] e outro já réu e autoexilado sigam ganhando recursos públicos sem exercer o mandato", diz Prando. "O regimento da Casa permite. E se o STF toma uma decisão, os deputados falarão que é uma interferência dos Poderes."

O filho do ex-presidente, porém, foi incluído na Dívida Ativa da União, após a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) atender um pedido da própria Câmara por débitos de cerca de R$ 14 mil por não participar das votações no Congresso.

<><> Descrédito institucional

Já Lucas Pereira Rezende, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), vê no comportamento dos três deputados em questão uma tentativa de desacreditar ainda mais as instituições brasileiras.

Para ele, mesmo com a presença de parlamentares condenados pela Justiça em outros países, os impactos serão baixos nas relações internacionais. "É natural que, mesmo entre países parceiros, um processo de extradição possa demorar ou até mesmo ser negado, sem que isso abale as relações", diz ele. "A maior ameaça não é para fora. É para dentro", complementa Rezende.

Ele vê, no caso do "autoexílio" de Eduardo Bolsonaro, uma repetição da estratégia bolsonarista de tentar desmoralizar o Estado Democrático de Direito. "É claro que ele [Eduardo Bolsonaro] está brincando com as instituições, já que o desligamento de um deputado por faltas é algo extremamente raro no Brasil. São formas, dentro do instrumental jurídico e normativo da Câmara, de se brincar com as regras", explica o professor da UFMG.

Desde a redemocratização do país, apenas três deputados perderam o mandato por faltas: Chiquinho Brazão, acusado de ser o mandante do assassinato da vereadora Marielle Franco, em 2025; e Felipe Cheidde e Mário Bouchardet, ambos em 1989.

No caso de Eduardo, Zambelli e Ramagem, pontua Rezende, a falta de reação por parte da Câmara passa uma imagem para a sociedade de permissividade, o que desmoraliza ainda mais a instituição perante a opinião pública. "O que vai acontecer é reforçar perante a sociedade brasileira a falta de compromisso com as demandas que afetam a sociedade. Está bastante claro o uso dessas narrativas, que visam favorecer uma visão específica do bolsonarista e dessas figuras individualmente", finaliza o professor da UFMG.

•        A contemplação como forma política. Por Leon Dalaedovick

Vivemos tempos em que a política se converteu em espetáculo e a dor social, em abstração institucional. A esquerda institucional, ao invés de reconstruir a totalidade da vida social, se contenta em mediar burocraticamente as contradições. Em nome da diversidade, da inclusão e do respeito, ela se afasta da luta de classes e se acomoda na aparência da realidade.

É nesse contexto que se impõe a necessidade de uma crítica ontológica – uma crítica que vá além da denúncia moral e da gestão simbólica. Uma crítica que reconstrua a totalidade como horizonte e a práxis como travessia.

Contemplação, aqui, não é passividade. É forma política. É a maneira como a sociabilidade burguesa se expressa na esquerda que se diz progressista, mas que se limita à superfície. Trata-se de uma ação que não atravessa a mediação, que não reconstrói a essência, que não age sobre a estrutura contraditória da formação social.

Como afirma Giovanni Alves: “a ação política que se limita à crítica moral e à gestão institucional da diversidade – incapaz de agir sobre a estrutura contraditória da formação social capitalista”.

Essa forma de ação política abstrai o sujeito da totalidade, abstrai a identidade da exploração, abstrai a contradição da forma mercadoria. Em vez de transformar, contempla. Em vez de organizar, representa. Em vez de romper, acomoda.

A política identitária, quando incorporada pela esquerda institucional como forma de gestão simbólica, rompe com a mediação. Ela transforma a diferença em nicho, em privilégio, em espetáculo. Torna-se performance, não práxis. Torna-se mercadoria, não travessia. Mas a crítica à identidade não é negação da diferença. Ao contrário: é a recusa da abstração que transforma a diferença em forma isolada, descolada da totalidade contraditória da vida social. A identidade, quando não articulada à luta de classes, não emancipa – captura.

O terceiro mandato de Lula, iniciado em 2023, é a expressão mais acabada da contemplação como forma política. Em vez de reconstruir a totalidade, o governo optou por mediar institucionalmente as contradições sociais. Criou ministérios para as mulheres, para a igualdade racial, para os povos originários – mas não construiu nenhuma instância institucional voltada à organização da classe trabalhadora como sujeito político.

Promoveu editais, grupos de trabalho, conselhos consultivos – mas não tensionou o capital, não mobilizou os trabalhadores, não construiu força social. Entre 2023 e 2025, destacam-se ações como grupos de trabalho sobre igualdade salarial, violência política e cuidados – sem qualquer articulação com a crítica à forma capitalista de trabalho.

Editais de formação para mulheres em espaços de poder – voltados à inclusão institucional, não à organização popular. Leis que criam datas comemorativas e conselhos consultivos – que reconhecem, mas não transformam. A política identitária, nesse modelo, não é forma de ruptura – é forma de reprodução. Ela não rompe com a sociabilidade burguesa – apenas a gestiona.

Essa lógica se repete no legislativo. Entre 2019 e 2024, foram apresentados mais de mil projetos de lei relacionados à população LGBTQIAPN+ em câmaras municipais, assembleias legislativas e no Congresso Nacional. A maioria trata de regulação de linguagem neutra, criação de datas comemorativas, cotas em concursos públicos, conselhos de diversidade, contra a discriminação no uso de banheiros.

Nenhum desses projetos articula enfrentamento à exploração, à forma mercadoria ou à subsunção da subjetividade. São abstrações políticas – não mediações revolucionárias. São expressões da contemplação – não da práxis.

A contemplação se revela com ainda mais nitidez quando observamos a omissão diante da violência concreta. Em 2024 e 2025, povos indígenas como os Guarani Kaiowá (MS) e os Pataxó (BA) sofreram ataques armados, expulsões violentas e omissão policial. E o que fez o Ministério dos Povos Indígenas? Participou de fóruns internacionais, publicou metas genéricas, mas não mobilizou ação emergencial, não enfrentou o latifúndio, não protegeu os sujeitos concretos da contradição.

A contemplação institucional não se limita ao Ministério dos Povos Indígenas. O Ministério dos Direitos Humanos, das Mulheres e da Igualdade Racial também operam como gestores simbólicos da dor social. Diante de ataques armados a indígenas, feminicídios em comunidades periféricas e repressão policial em territórios negros, a resposta tem sido limitada a notas públicas, campanhas educativas e acordos protocolares. Não há enfrentamento direto à estrutura de extermínio – apenas mediação burocrática da contradição. A contemplação, aqui, é forma política da omissão.

A emancipação exige mais do que reconhecimento. Exige reconstrução da totalidade. E isso se faz através dos fragmentos – mas contra a fragmentação. Cada luta específica deve ser porta de entrada para a crítica da forma mercadoria, da subsunção subjetiva, da expropriação ontológica. A identidade não pode ser ponto de chegada – tem que ser superada como forma de dominação subjetiva. A práxis exige ruptura ontológica com o capital — não inclusão simbólica em sua lógica.

E é por isso que a crítica revolucionária não é denúncia – é síntese. Não é moralismo – é ontologia.

Síntese, aqui, é o movimento dialético que supera a fragmentação da aparência e reconstrói a essência como totalidade concreta. É a crítica que não se limita à superfície dos fenômenos, mas que atravessa a mediação e revela a lógica estrutural da sociabilidade burguesa. É a recusa da contemplação como forma política e a afirmação da práxis como reconstrução da vida social. É o salto entre o reconhecimento e a ruptura. É o momento em que o sujeito deixa de ser objeto da dor e se torna agente da história.

 

Fonte: DW Brasil/A Terra é Redonda

 

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