O
que deveria acontecer com o mandato dos deputados "fugitivos"?
Mesmo
no exterior, Alexandre Ramagem, Carla Zambelli e Eduardo Bolsonaro ainda têm
acesso a verbas de gabinete e mantêm os mandatos. Para especialistas, leniência
da Câmara com esses casos piora a imagem do Congresso.
A
confirmação de que o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ) fugiu para os
Estados Unidos numa suposta tentativa de escapar de uma condenação do Supremo
Tribunal Federal (STF) fez dele o terceiro parlamentar bolsonarista a deixar o
país durante o mandato.
O
ex-chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) no governo de Jair
Bolsonaro foi localizado em um condomínio de luxo em Miami, para onde fugiu em
setembro. Ele foi condenado pelo STF a 16 anos de prisão pela tentativa de
golpe de Estado , após a derrota na eleição de 2022, no mesmo processo do
ex-presidente. Ele é considerado foragido.
A
Ramagem se somam Carla Zambelli (PL-SP), presa emjulho na Itália após fugir do
país e já condenada a 10 anos pelo STF por invasão ao sistema do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), e Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que se mudou para os
Estados Unidos em fevereiro alegando "perseguição política". Neste
mês, o filho de Bolsonaro tornou-se réu no Supremo por suposta tentativa de
coagir a Justiça brasileira ao tentar influenciar autoridades americanas no
processo que envolve o ex-presidente.
Filiados
ao Partido Liberal (PL) e aliados de primeira hora de Jair Bolsonaro, preso
preventivamente nesse sábado (22/11), os três deputados federais mantêm, apesar
dos imbróglios com a Justiça, verbas e cargos na Câmara dos Deputados .
De
acordo com especialistas consultados pela DW, além do impacto nas contas
públicas, o caso dos deputados "fujões" colocaria em evidência a
incapacidade do Congresso e do seu presidente, Hugo Motta (Republicanos-PB), de
punir os próprios membros, e também revelaria uma busca dos bolsonaristas por
uma narrativa de "perseguição" para supostamente encobrir os crimes
cometidos.
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Imobilismo político
Eduardo
Bolsonaro e Carla Zambelli tiveram os salários congelados pela Câmara desde que
saíram do país. No entanto, continuam tendo acesso a verbas por meio dos
gabinetes. De acordo com o site Metrópoles, o filho do ex-presidente já gastou
mais de R$ 1 milhão para manter os nove servidores a que tem direito durante o
mandato.
O
gabinete Zambelli também tem mantido os gastos, apesar de a deputada estar
presa na Itália. Em setembro, por exemplo, os gastos da estrutura parlamentar
dela ultrapassaram os R$ 100 mil, segundo a CNN Brasil.
Já
Ramagem, que se licenciou do cargo em setembro, antes de fugir do país por
Roraima para os EUA, custou, desde então, mais de R$ 300 mil para os cofres
públicos, incluindo salários. O levantamento é da revista Veja.
"Do
ponto de vista jurídico, existem leis e regras para coibir crimes, mesmo que
cometidos por parlamentares. Mas, do outro lado, existe um regimento da Câmara,
que parece ser desenhado para proteger os deputados", afirma o cientista
político Rodrigo Prando, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
De
acordo com a legislação, um deputado, mesmo que condenado pela Justiça, precisa
passar por um processo político para perder o mandato – o que requer tramitação
em comissões da Câmara e votação em plenário, que precisa ser pautada pelo
presidente da Casa. No caso de Zambelli, o processo de cassação foi aberto na
Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) em julho, mas ainda não saiu do
colegiado para o plenário.
"Provavelmente,
no seu regimento, existe esse espaço para que o Hugo Motta, que tem demonstrado
debilidades no exercício do poder, não tome uma decisão que ao punir vai
desagradar a base bolsonarista", acrescenta Prando.
Ele
lembra o caso da rebelião dos deputados bolsonaristas, que ocuparam em agosto a
mesa-diretora da Câmara por 36 horas, impedindo os trabalhos parlamentares. A
crise só foi contida por causa da atuação do presidente anterior, Arthur Lira
(PP-AL). "Isso acabou deixando o Hugo Motta refém dessa bancada
bolsonarista mais fanatizada", complementa o politólogo.
Os
parlamentares "fujões" também podem perder o mandato por acúmulo de
faltas no exercício do mandato. Segundo a Constituição, basta um terço de
ausências em um ano legislativo para que isso aconteça. O critério já valeria
para Eduardo Bolsonaro, que já faltou a 78% das sessões em 2025, e Zambelli,
com 55% de ausências. Ramagem, por outro lado, esteve presente em todas as
sessões – o ex-chefe da Abin ainda está de licença na Casa, mesmo foragido. Os
dados são da Câmara.
"O
Eduardo Bolsonaro talvez seja uma figura sem paralelos na Nova República, por
atacar o país dos EUA, articulando tarifas contra o Brasil. Mesmo assim, o Hugo
Motta não fez uma reunião para cassar o mandato dele por faltas. Enquanto isso,
o regimento permite que uma presa na Itália [Zambelli], outro foragido nos EUA
[Ramagem] e outro já réu e autoexilado sigam ganhando recursos públicos sem
exercer o mandato", diz Prando. "O regimento da Casa permite. E se o
STF toma uma decisão, os deputados falarão que é uma interferência dos
Poderes."
O filho
do ex-presidente, porém, foi incluído na Dívida Ativa da União, após a
Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) atender um pedido da própria
Câmara por débitos de cerca de R$ 14 mil por não participar das votações no
Congresso.
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Descrédito institucional
Já
Lucas Pereira Rezende, professor do Departamento de Ciência Política da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), vê no comportamento dos três
deputados em questão uma tentativa de desacreditar ainda mais as instituições
brasileiras.
Para
ele, mesmo com a presença de parlamentares condenados pela Justiça em outros
países, os impactos serão baixos nas relações internacionais. "É natural
que, mesmo entre países parceiros, um processo de extradição possa demorar ou
até mesmo ser negado, sem que isso abale as relações", diz ele. "A
maior ameaça não é para fora. É para dentro", complementa Rezende.
Ele vê,
no caso do "autoexílio" de Eduardo Bolsonaro, uma repetição da
estratégia bolsonarista de tentar desmoralizar o Estado Democrático de Direito.
"É claro que ele [Eduardo Bolsonaro] está brincando com as instituições,
já que o desligamento de um deputado por faltas é algo extremamente raro no
Brasil. São formas, dentro do instrumental jurídico e normativo da Câmara, de
se brincar com as regras", explica o professor da UFMG.
Desde a
redemocratização do país, apenas três deputados perderam o mandato por faltas:
Chiquinho Brazão, acusado de ser o mandante do assassinato da vereadora
Marielle Franco, em 2025; e Felipe Cheidde e Mário Bouchardet, ambos em 1989.
No caso
de Eduardo, Zambelli e Ramagem, pontua Rezende, a falta de reação por parte da
Câmara passa uma imagem para a sociedade de permissividade, o que desmoraliza
ainda mais a instituição perante a opinião pública. "O que vai acontecer é
reforçar perante a sociedade brasileira a falta de compromisso com as demandas
que afetam a sociedade. Está bastante claro o uso dessas narrativas, que visam
favorecer uma visão específica do bolsonarista e dessas figuras
individualmente", finaliza o professor da UFMG.
• A contemplação como forma política. Por
Leon Dalaedovick
Vivemos
tempos em que a política se converteu em espetáculo e a dor social, em
abstração institucional. A esquerda institucional, ao invés de reconstruir a
totalidade da vida social, se contenta em mediar burocraticamente as
contradições. Em nome da diversidade, da inclusão e do respeito, ela se afasta
da luta de classes e se acomoda na aparência da realidade.
É nesse
contexto que se impõe a necessidade de uma crítica ontológica – uma crítica que
vá além da denúncia moral e da gestão simbólica. Uma crítica que reconstrua a
totalidade como horizonte e a práxis como travessia.
Contemplação,
aqui, não é passividade. É forma política. É a maneira como a sociabilidade
burguesa se expressa na esquerda que se diz progressista, mas que se limita à
superfície. Trata-se de uma ação que não atravessa a mediação, que não
reconstrói a essência, que não age sobre a estrutura contraditória da formação
social.
Como
afirma Giovanni Alves: “a ação política que se limita à crítica moral e à
gestão institucional da diversidade – incapaz de agir sobre a estrutura
contraditória da formação social capitalista”.
Essa
forma de ação política abstrai o sujeito da totalidade, abstrai a identidade da
exploração, abstrai a contradição da forma mercadoria. Em vez de transformar,
contempla. Em vez de organizar, representa. Em vez de romper, acomoda.
A
política identitária, quando incorporada pela esquerda institucional como forma
de gestão simbólica, rompe com a mediação. Ela transforma a diferença em nicho,
em privilégio, em espetáculo. Torna-se performance, não práxis. Torna-se
mercadoria, não travessia. Mas a crítica à identidade não é negação da
diferença. Ao contrário: é a recusa da abstração que transforma a diferença em
forma isolada, descolada da totalidade contraditória da vida social. A
identidade, quando não articulada à luta de classes, não emancipa – captura.
O
terceiro mandato de Lula, iniciado em 2023, é a expressão mais acabada da
contemplação como forma política. Em vez de reconstruir a totalidade, o governo
optou por mediar institucionalmente as contradições sociais. Criou ministérios
para as mulheres, para a igualdade racial, para os povos originários – mas não
construiu nenhuma instância institucional voltada à organização da classe
trabalhadora como sujeito político.
Promoveu
editais, grupos de trabalho, conselhos consultivos – mas não tensionou o
capital, não mobilizou os trabalhadores, não construiu força social. Entre 2023
e 2025, destacam-se ações como grupos de trabalho sobre igualdade salarial,
violência política e cuidados – sem qualquer articulação com a crítica à forma
capitalista de trabalho.
Editais
de formação para mulheres em espaços de poder – voltados à inclusão
institucional, não à organização popular. Leis que criam datas comemorativas e
conselhos consultivos – que reconhecem, mas não transformam. A política
identitária, nesse modelo, não é forma de ruptura – é forma de reprodução. Ela
não rompe com a sociabilidade burguesa – apenas a gestiona.
Essa
lógica se repete no legislativo. Entre 2019 e 2024, foram apresentados mais de
mil projetos de lei relacionados à população LGBTQIAPN+ em câmaras municipais,
assembleias legislativas e no Congresso Nacional. A maioria trata de regulação
de linguagem neutra, criação de datas comemorativas, cotas em concursos
públicos, conselhos de diversidade, contra a discriminação no uso de banheiros.
Nenhum
desses projetos articula enfrentamento à exploração, à forma mercadoria ou à
subsunção da subjetividade. São abstrações políticas – não mediações
revolucionárias. São expressões da contemplação – não da práxis.
A
contemplação se revela com ainda mais nitidez quando observamos a omissão
diante da violência concreta. Em 2024 e 2025, povos indígenas como os Guarani
Kaiowá (MS) e os Pataxó (BA) sofreram ataques armados, expulsões violentas e
omissão policial. E o que fez o Ministério dos Povos Indígenas? Participou de
fóruns internacionais, publicou metas genéricas, mas não mobilizou ação
emergencial, não enfrentou o latifúndio, não protegeu os sujeitos concretos da
contradição.
A
contemplação institucional não se limita ao Ministério dos Povos Indígenas. O
Ministério dos Direitos Humanos, das Mulheres e da Igualdade Racial também
operam como gestores simbólicos da dor social. Diante de ataques armados a
indígenas, feminicídios em comunidades periféricas e repressão policial em
territórios negros, a resposta tem sido limitada a notas públicas, campanhas
educativas e acordos protocolares. Não há enfrentamento direto à estrutura de
extermínio – apenas mediação burocrática da contradição. A contemplação, aqui,
é forma política da omissão.
A
emancipação exige mais do que reconhecimento. Exige reconstrução da totalidade.
E isso se faz através dos fragmentos – mas contra a fragmentação. Cada luta
específica deve ser porta de entrada para a crítica da forma mercadoria, da
subsunção subjetiva, da expropriação ontológica. A identidade não pode ser
ponto de chegada – tem que ser superada como forma de dominação subjetiva. A
práxis exige ruptura ontológica com o capital — não inclusão simbólica em sua
lógica.
E é por
isso que a crítica revolucionária não é denúncia – é síntese. Não é moralismo –
é ontologia.
Síntese,
aqui, é o movimento dialético que supera a fragmentação da aparência e
reconstrói a essência como totalidade concreta. É a crítica que não se limita à
superfície dos fenômenos, mas que atravessa a mediação e revela a lógica
estrutural da sociabilidade burguesa. É a recusa da contemplação como forma
política e a afirmação da práxis como reconstrução da vida social. É o salto
entre o reconhecimento e a ruptura. É o momento em que o sujeito deixa de ser
objeto da dor e se torna agente da história.
Fonte:
DW Brasil/A Terra é Redonda

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