Gabriel
Silva: O papel da ciência nas chacinas
Ao
acompanhar as notícias sobre o massacre da Penha no Rio de Janeiro é inevitável
ser tomado por um desespero, uma sensação de tremenda angústia e perplexidade
com a continuidade da normalidade do mundo à nossa volta. Li notícias falando
de 132 assassinatos, o governo do RJ afirma 119, a maior chacina da história
recente do país.
Nos
celulares viralizou a imagem dos 70 corpos enfileirados, estes encontrados na
mata pelos moradores da Penha durante a madrugada que se seguiu ao massacre.
Como isso pode acontecer? Como isso continua a acontecer? O que sustenta essa
normalidade de chacina? Como seguimos na normalidade sabendo que isso
aconteceu?
Escrevo
esse texto em um dia nublado, está chovendo em Barão Geraldo, bairro nobre de
Campinas onde fica a Unicamp, lugar em que faço pós-graduação. Óbvio dizer que
soa inimaginável uma operação militar como essa neste bairro, mas me pergunto
qual a relação dos meus vizinhos, ou mesmo dos professores e colegas da
universidade com essa operação?
Sabemos
que esse tipo de operação tem um caráter midiático e eleitoral, que o público
deste tipo de ação são pessoas como as que moram e trabalham neste bairro, que
votaram em maioria nas últimas eleições no grupo político que elegeu o atual
governador do Rio de Janeiro. No entanto, mais do que questionar a normalidade
da cachina para os meus vizinhos brancos de classe média, é fundamental
questionar o papel da universidade e dos nossos pares nesse processo.
Qual o
papel dos intelectuais, dos estudantes, dos professores e dos diferentes
profissionais especializados na continuidade dessa gestão racializada dos
territórios? Qual o papel das organizações de esquerda, sindicatos, coletivos,
movimentos negro e estudantil, o que fazemos diante disso? E o mais importante,
o que nós podemos fazer para que as pessoas dos territórios de onde viemos
parem de ser chacinadas?
A
política de cotas raciais faz com que haja um maior número de pessoas de
territórios racializados morando e estudando aqui, mais do que nunca antes. O
que significa a nossa presença nas universidades com as cotas, quando os
territórios das populações pretas, pardas e indígenas, seguem em gestão militar
e assassina? Qual nosso papel, como pessoas pretas, que acessamos esses
espaços, diante da continuidade da chacina?
Esses
questionamentos ecoam as indagações de Denise Ferreira da Silva e de Sylvia
Wynter, duas autoras que atravessam profundamente meu trabalho. A seguir irei
apresentar uma síntese da leitura dessas autoras de como a ciência participa da
produção de mortes que não geram crise ética. Quero com isso compartilhar esses
dilemas que acredito serem fundamentais, este texto destoa de outros textos de
intervenção que já escrevi, tem um caráter um pouco mais acadêmico, pois hoje é
também a este público que quero aqui de alguma forma interpelar.
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A analítica da racialidade
A obra
Homo Modernus: por uma ideia global da raça (Ferreira da Silva, 2022) é um dos
mais profundos trabalhos a investigar como as ciências construíram a
racialidade, um mapeamento abrangente dos instrumentos científicos usados para
gerir a diferença racial e cultural, o caminho tomado na obra vai na contramão
da linha hegemônica de crítica do racismo científico, que se dá acusando de
pseudociência as ciências raciais.
Caminho
cujo marco heróico pode ser rastreado na obra do haitiano Anténor Firmin, que
em sua obra Igualdade das Raças Humanas (Firmin, 2013 [1885]), contesta os
argumentos que sustentam o racismo na literatura antropológica fundante da
disciplina em sua época, destrinchando autores fundadores da eugenia como o
influente antropólogo francês Paul Broca e o diplomata Conde de Gobineau,
demonstrando a inconsistência do método científico da ciência racial nascente.
Ferreira
da Silva toma o caminho oposto ao de Anténor Firmin: identifica o problema não
na falta de cientificidade da ciência racial, mas em como os instrumentos da
racialidade estão nas bases da filosofia e das ciências modernas.
No
prefácio do livro Homo modernos, a autora traz uma reflexão sobre a violência
racial promovida pelo Estado a partir de um caso específico que ocorreu nos EUA
na época da defesa de sua tese em 1999, quando em 4 de fevereiro, um imigrante
africano da Guiné, chamado Amadou Diallo, foi assassinado, estando desarmado e
na frente de sua própria casa, com 41 tiros de quatro policiais do Departamento
de Polícia de Nova York, despertando revolta e protestos locais. Os quatro
policiais foram absolvidos das acusações com a alegação de autodefesa. A
reflexão da autora partindo deste caso coloca a questão central que a obra
afirma ter como objetivo responder: “Como o conhecimento científico social
justifica o assassinato de pessoas não brancas?” (Ferreira da Silva, 2022, p.
21).
A
resposta de Ferreira da Silva a essa questão é a analítica da racialidade, um
regime simbólico produtivo que estabelece a diferença humana como um efeito da
razão universal. Fazendo um mapeamento do contexto de emergência, das condições
de produção e dos efeitos de significação de um arsenal conceitual que produziu
o homem e seus “outros” relacionais.
No
artigo intitulado Ninguém: Direito, Racialidade e Violência, Ferreira da Silva
continua a desenvolver as mesmas problemáticas mas com outra abordagem, ela
analisa o discurso midiático e de autoridades públicas como o presidente Lula e
o então o governador do Rio, Sérgio Cabral, em diferentes casos de ocupações de
favelas no Rio de Janeiro pelas forças de segurança do Estado na década de
2000, analisando com instrumentos filosóficos a operatividade da racialidade no
contexto brasileiro.
O
artigo começa com os seguintes questionamentos: “Quando é que se tornou uma
trivialidade – mais do que uma evidência, mas ainda não uma ‘verdade’ óbvia – o
fato de que um número considerável (cuja dimensão talvez nunca seja conhecida)
de jovens do sexo masculino e do sexo feminino sucumbe como sujeitos da
violência infringida para preservação da lei?” (Ferreira da Silva, p 2014).
Este
questionamento nos lembra que a contagem de mortos anunciada pelo Estado na
atual chacina da Penha e Alemão, veio primeiro com um número muito subestimado
de mortos, que somente após a comunidade reunir os corpos houve uma mudança no
número oficial, que segue abaixo da conta que circula nas mídias populares.
Além disso, nos lembra do que as forças policiais fazem quando não são vistas,
da onde se sustentam as estáticas de desaparecidos que seguem assombrando
nossas comunidades.
As
questões que motivam Ferreira da Silva ecoam a carta de Sylvia Wynter (2021
[1994]) publicada cinco anos antes, onde toma como ensejo a revolta ocorrida
após policiais que foram absolvidos de responsabilização após as agressões
contra Rodney King, em Los Angeles, que foi brutalmente espancado por policiais
com cassetetes e arma de choque, as imagens gravadas do incidente tiveram
grande repercussão na época.
Sylvia
Wynter questiona no artigo a responsabilidade dos seus colegas, intelectuais,
pesquisadores e professores universitários. Recuperando o debate sobre a
educação pós Auschwitz, ela questiona o que há de errado em nossa educação para
que continue a formar como agentes do Estado, policiais, jornalistas,
operadores do direito e membros de júri, pessoas que perpetuam a violência
racial. Mais que isso, interpela os intelectuais como os gramáticos da cultura
de sua sociedade e das suas instituições, aqueles que produzem categorias como
a de “Nenhum homem envolvido” (“No Humans Involved”), que nomeia o artigo e é
sistematicamente usada em casos de violência e execução policial racista no
contexto jurídico estadunidense tratado em sua carta.
Sylvia
Wynter também questiona especialmente a nós, intelectuais negres, em um
questionamento que entendo que a obra de Ferreira da Silva pode ser
interpretada como uma robusta contribuição para a resposta: “O que fazer,
então, enquanto gramátiques cuja rigorosa elaboração das “categorias
prescritivas” de nossa atual ordem epistemológica – e, portanto, dos “olhos
interiores” da nossa “cultura local” –, aqueles comportamentos coletivos que
orientam e trazem à existência a atual ordem do Estado-nação estadunidense, tão
específica da realidade, agora que nos confrontamos com o preço pago por
arquitetar essa ordem da realidade, como no caso do espancamento de Rodney
King/a absolvição do júri/o levante em South Central Los Angeles? O que nós,
especificamente como intelectuais Negres, devemos fazer?” (Wynter, 2021 [1994])
Ferreira
da Silva, em sua investigação sobre a construção científica da racialidade,
sustenta que os textos histórico e científico instituíram a racialidade como um
ato produtivo da razão universal. Através da globalidade se instaura o contexto
ontológico moderno onde determinadas características corporais, configurações
sociais e regiões do globo, são mapeadas e produzidas como irredutíveis e
insuprassumíveis.
A
analítica da racialidade enquanto reescreve a Europa pós-Iluminista na
transparência (como o sujeito autônomo e autodeterminado), simultaneamente
situa sempre já os outros da Europa na afetabilidade (a condição de estar
sujeito a determinações externas, físicas e mentais).
A
racialidade é um arsenal científico que descreve a trajetória dos outros da
Europa em um movimento de engolfamento e obliteração, portanto, o racismo
moderno não é um preconceito ou um arcaísmo, mas um produto da ciência moderna,
que demanda o fim do mundo como o conhecemos para o seu desmonte. Os dois
principais significantes da analítica da racialidade são o racial e o cultural,
articulando os relatos sobre a diferença humana.
As
violências raciais, como o assassinato sistemático de jovens negros que ocorre
em diferentes países de formação colonial como os EUA e o Brasil sem que se
desperte nenhuma crise ética, são formas de injustiça racial que só são
possíveis devido a operação de significantes produzidos na analítica da
racialidade, o que ela entende como as diferentes instâncias da fabricação
científica da raça.
Esse
arsenal teórico foi desenvolvido pela filosofia moderna e por uma série de
enunciados científicos presentes desde o nascimento de campos como a biologia,
a antropologia e a sociologia das relações raciais. A tese da transparência, a
presunção ontoepistemológica que rege o pensamento pós iluminista, fundamenta o
arsenal da analítica da racialidade, cujas condições de emergência ela mapeia
nas teses da filosofia moderna presentes em autores como René Descartes, John
Locke, Gottfried Wilhelm Leibniz, Immanuel Kant e Johann Gottfried Herder.
Estes
filósofos reescrevem a peça da razão universal até a consolidação da tese da
transparência, o que ocorre a partir de G.W.F. Hegel, que ao reconstruir o
Sujeito moderno como Espírito, onde atualiza a autoconsciência como
autodeterminante, engolfando tudo o que se torna acessível como objeto pelo
sujeito, todo o existente se torna transparente, pois é concebido como um
momento da trajetória da própria autoconsciência que se constrói interiorizando
todo o mundo.
Dito de
outra forma, o mundo é subsumido como que em um espelho que reflete o
desenvolvimento histórico do próprio sujeito. Esta configuração do sujeito
moderno pós iluminista, que ela vai denominar como o Eu transparente, é uma
entidade cujo surgimento se localiza nos Estados imperiais da Europa
pós-iluminista. A tese da transparência institui as condições de emergência da
análitica da racialidade, o ferramental sociocientífico que opera nas relações
jurídicas pós iluministas, instituindo o Eu transparente como o sujeito
relacional produzido pelas alteridades do mundo que careceriam de
autodeterminação, o Eu afetável.
Importante
ressalvar que não se trata de uma atualização da dialética do senhor e do
escravo hegeliana, onde o senhor seria o eu transparente e o escravo o eu
afetável, em uma reescrita do conflito secular do espírito rumo à emancipação
universal. Essa dialética não se aplica as condições da escravidão e da
racialidade, pois estas operam com uma relação de violência e desigualdade, sem
abertura ao reconhecimento mútuo, onde não há possibilidade de suprassunção
(Aufhebung), criando uma oposição sem movimento de superação ou síntese. Na
dialética racial, o círculo lógico que se forma resolve a causa e o efeito da
subjugação racial como diferença racial.
Em
pioneiros da biologia, como Georges Cuvier e Charles Darwin, são destacados por
Ferreira da Silva enunciados inaugurais sobre a hierarquia das raças da
humanidade em texto científico. Tratando sobre as leis da vida e seleção
natural, iniciam relatos que viriam a operar as instituições nas condições
ontoepistemológicas pós-iluministas. Darwin ao conceber o nomos produtivo, a
lei da natureza que guiaria a evolução, situa o homem, o dito civilizado e
branco, como estando além dos meios da seleção natural, sendo autoprodutivo e
capaz de produzir autoperfeição (Ferreira da Silva, 2002, p. 235).
Ao
contrário, as raças inferiores estariam sujeitas às leis da seleção natural, de
modo que o eu transparente, está situado fora e sempre já vitorioso na luta
pela vida, assim como seus outros relacionais são sempre já derrotados na luta
pela sobrevivência, sendo compreendidos como fora da humanidade (civilizada e
caucasiana, nos termos de Darwin) em relação a narrativa da evolução das
espécies.
Os
cientistas do homem, expressão que Ferreira da Silva usa para tratar dos
antropólogos, do início do século XIX teriam sido responsáveis por dar
acabamento ao conceito científico de raça. Entre seus fundadores, ela analisa
obras de antropólogos como Paul Topinard, Daniel Brinton, Robert Knox, E.B.
Tylor e o anteriormente mencionado, Paul Broca.
O
manual deste último Instructions générales pour les recherches anthropologiques
à faire sur le vivant [Instruções gerais para a pesquisa antropológica a ser
feita em seres vivos] escrito para a Sociedade da Antropologia de Paris,
descreve as técnicas e estratégias da antropologia, com o objetivo de aumentar
a quantidade e a qualidade de dados sobre povos não europeus, com instruções
sobre como diferenciar as raças. Sua obra desenvolve a craniologia, que com
base em traços morfológicos, postula a diferença racial como conectada aos
traços corporais. Também teorizou sobre a eugenia reprodutiva em seus escritos
sobre a miscigenação.
A
antropologia e sociologia do século XX continuou a desenvolver a analítica da
racialidade, especialmente através do texto sobre a cultura. No Homo Modernos
são analisados autores como Émile Durkheim, Franz Boas, A.R. Radcliffe-Brown e
Claude Lévi-Strauss. No capítulo dez ela trata especificamente de autores
brasileiros como Raymundo Nina Rodrigues, considerado o fundador da
antropologia brasileira.
Nina
Rodrigues em As raças humanas e a responsabilidade penal, argumenta que a
miscigenação produz “corpos humanos que abrigam mentes patológicas” no Brasil,
exigindo diferentes níveis de responsabilidade penal com base nas diferenças da
composição racial (Ferreira da Silva, 2022, p. 398). Arthur Ramos, autor da
primeira geração de antropólogos culturais brasileiros, liderou o famoso
projeto da UNESCO sobre as relações raciais. Arthur Ramos via seu trabalho como
uma sequência do projeto de Nina Rodrigues, pesquisando o que nomeou como
origens tribais da personalidade cultural perdida do negro brasileiro.
E, por
fim, Gilberto Freyre que, segundo Ferreira da Silva, em Casa grande e senzala,
produziu a peça do engolfamento, na qual o patriarcado inscreve a marca da
diferença brasileira: a democracia racial. Fundando a narrativa dominante das
políticas raciais do Estado brasileiro no período. O engolfamento da diferença
racial no texto brasileiro, por meio da violenta miscigenação patriarcal, se
realiza na escrita da história brasileira como um processo temporal de
obliteração dos africanos e indígenas.
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Considerações finais
Nesse
texto, a partir de um resumo da obra de Denise Ferreira da Silva, procurei
mostrar como a ciência ajudou a construir um estado de coisas onde a chacina de
pessoas racializadas não gera crise, não quebra a normalidade, a despeito de
sua total ilegalidade e violência extrema.
Com
isso, não viso fortalecer uma postura anti-intelectual ou contra a
universidade, mas justamente trazer o questionamento a partir de dentro da
universidade, sobre como mudar este estado de coisas instaurado, que teve e tem
nos espaços de produção de conhecimento uma das suas fontes de poder e
legitimação.
Não
basta entrarmos na universidade, é necessário mudar as bases onto
epistemológicas que regem a produção de conhecimento, suas carreiras e sua
adesão implícita ou explícita as hierarquias raciais mantidas com sangue em
nossa sociedade.
Fonte:
A Terra é Redonda

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