Clima
no Congresso dá a entender de que partidos preferem prejudicar um ao outro do
que defender seus pontos de vista
A
política brasileira anda pegando fogo e o relacionamento entre a situação e a
oposição tem se tornado tão tenso que dá a impressão de que os parlamentares já
não se orientam mais pela Constituição nem pelos Regimentos das Casas do
Congresso. Eles se guiam pela terceira Lei de Newton, aquela que diz que “cada
ação gera uma reação contrária e de igual intensidade”. Ninguém parece se
preocupar com o impacto das decisões que toma sobre a vida do país. Tudo o que
parece importar é o dano que um lado pode infligir ao outro lado e a capacidade
de se defender do golpe que certamente virá de volta.
Acompanhe,
por exemplo, os movimentos do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União/AC).
Magoado com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ele não tem medido esforços
para pirraçar o governo. Seu movimento mais ostensivo de reação a Lula, até
aqui, foi o de usar a prerrogativa do cargo de definir a pauta de votação do
Senado e do Congresso para agendar a votação de uma série de projetos que, uma
vez aprovados, ajudarão a aumentar o buraco pelo qual escoam bilhões e bilhões
de reais em dinheiro público. Apenas quatro projetos da lista de Alcolumbre
podem aumentar as despesas da União, já no ano que vem, em pelo menos R$ 100
bilhões.
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Esse é
o tipo de atitude pela qual se mede a estatura dos homens públicos. Para o anão
político Alcolumbre, o aumento das despesas públicas é um ato que se destina
apenas a criar embaraços para o governo — que terá dificuldades redobradas para
fechar as contas. Ele não se mostra nem um pouco preocupado com o impacto das
medidas que está colocando em votação sobre o aumento do déficit público. Nem
com a pressão do déficit sobre a dívida pública, a inflação, os juros gerais e
a taxa básica indecente, a Selic, que o Banco Central manterá em 15% enquanto a
situação durar.
Ou
seja, em nome de criar aborrecimentos para o governo, o senador usa seu poder
para deixar toda sociedade em situação difícil. Essa atitude infantil se traduz
em projetos que a imprensa chama de “pautas-bomba”, mas que, no dia que
explodir, ferirá não apenas o governo, mas todo mundo que estiver por perto. É
o caso, por exemplo, da aposentadoria especial para os agentes de saúde, já
aprovada pelo Senado.
Também estão na alça de mira o projeto que aumenta os limites para empresas
dentro do regime Simples e do programa dos Microempreendedores Individuais —
MEI. Há, ainda, a concessão de um adicional de insalubridade para professores
(isso mesmo! Suas Excelências consideram o ato de ensinar, no Brasil, uma
atividade insalubre!). E, também, a ampliação dos critérios para adesão ao
Benefício de Prestação Continuada — BPC.
QUESTÃO
DE HONRA
Se
estivesse mesmo disposto a criar dificuldades para o governo, o senador bem que
poderia, ao invés de escancarar a porteira, propor medidas para conter a
gastança desenfreada de dinheiro público que tem sido a tônica das
administrações petistas. Poderia propor medidas moralizadoras que levassem a
uma prestação de contas mais rigorosa das despesas federais — o que
dificultaria a estratégia do Planalto de aumentar os programas populistas
criados com os olhos voltados não para o bem-estar da população, mas para seus
efeitos na disputa eleitoral do próximo ano.
A
pergunta é: como foi que Alcolumbre, que sempre pareceu incapaz de um único
gesto que contrariasse o Planalto, tornou-se um poço tão profundo de
ressentimentos? A razão alegada para as pirraças de Alcolumbre foi a decisão do
presidente Lula de indicar o Advogado Geral da União, o pernambucano Jorge
Messias, para a vaga aberta pela aposentadoria prematura do ministro Luís
Roberto Barroso no Supremo Tribunal Federal. A preferência de Lula, que tem a
prerrogativa de indicar o candidato, pelo nome de Messias nunca foi segredo.
Mais do que isso: no círculo mais próximo do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, a aprovação pelo Senado do nome de seu indicado tem sido tratada como
uma questão de honra.
Só que,
do outro lado, Alcolumbre resolveu se insurgir. Também não é segredo que ele
preferia ver a toga de ministro do STF sobre os ombros do também senador
Rodrigo Pacheco (PSD/MG), seu antecessor na presidência da Casa. A despeito da
insistência de Alcolumbre, Lula preteriu Pacheco e apoiou Messias. Alcolumbre,
ao que parece, se sentiu diminuído no papel que ele mesmo se atribuiu de
“grande articulador” e de “político capaz de influenciar o Planalto”.
Começou,
então, a lançar mão de artifícios regimentais que, no final das contas, poderão
dificultar a aprovação do nome de Messias pelo plenário. O mais evidente desses
artifícios foi o agendamento da data de apreciação da indicação de Messias pela
Comissão de Constituição e Justiça e pelo plenário. Ao invés de retardar a
sabatina, como tudo indicava que faria, ele antecipou a sessão marcada para
essa finalidade para o próximo dia 10 de dezembro. Ou seja, quarta-feira da
próxima semana. Com isso, o governo terá menos tempo para “trabalhar” o nome de
Messias junto aos senadores.
Por
“trabalhar”, nesse caso, entenda-se o esforço para colocar em movimento todo
arsenal de troca de favores e de liberação de emendas que, pelo visto,
tornou-se condição indispensável para aprovação de qualquer matéria pelo
Congresso. No balcão de negócios em que se transformou o Congresso, pelo que se
comenta em Brasília, ninguém está disposto a prestar o serviço agora e receber
o pagamento depois. Nada disso: o pagamento tem que vir primeiro.
Em meio
a tudo isso, a maioria das pessoas parece ignorar aquilo que realmente
interessa nesse enredo: ao invés de ficar citando os benefícios que, uma vez
empossado, o indicado poderá proporcionar ao padrinho de sua escolha, o mais
correto seria discutir as credenciais de Messias e de Pacheco para o exercício
das funções de ministro do Supremo Tribunal Federal. A ausência desse debate,
porém, apenas revela a verdadeira dimensão do problema.
E essa
dimensão é a seguinte: no ambiente polarizado da política brasileira, as
atribuições técnicas dos indicados por qualquer cargo acabam relegadas a
segundo ou terceiro plano. Não se trata, evidentemente, de cometer a
ingenuidade de imaginar que seria possível, nos dias de hoje, escolher um
ministro do STF com base em critérios meramente técnicos e jurídicos. Mas
apenas de considerar que a escolha de um nome para um cargo importante como
esse não pode se guiar apenas por simpatias pessoais e afinidades políticas.
Também
não é o caso de sonhar com a possibilidade de recomendar para o posto alguém
como os dos ministros de perfil político que chegavam ao STF em momentos
anteriores da história do Brasil. No passado, o Supremo era uma casa de
juristas notáveis e de experiência testada na academia, em tribunais anteriores
ou até mesmo no parlamento. Mas, mesmo quando se tratava de indicar nomes com
preferências partidárias evidentes — como foram os casos do baiano Aliomar
Baleeiro, ligado ao velho PSD, e do mineiro Adauto Lúcio Cardoso, da antiga UDN
—, escolhiam-se nomes mais destacados por seu trabalho como juristas do que por
sua atuação como políticos.
FIDELIDADE
RECOMPENSADA
Hoje, a
situação é outra e a lógica das indicações para o Supremo parece ter se
investido em relação ao que era no passado. As pessoas que chegam ao Supremo
são escolhidas mais com base em suas conexões políticas do que na bagagem
jurídica que acumularam ao longo da vida profissional. A impressão que se tem é
a de que as pessoas que alcançam o posto mais elevado da carreira jurídica
nacional precisam ter, mais do que ligações políticas, uma extensa lista de
serviços prestados a quem as indicou. Só que, uma vez no cargo, os laços com o
passado podem se romper e as ligações antigas não servem de garantia para a
fidelidade futura.
Pelo
plenário do STF já passaram dezenas de casos de juízes que, na hora da verdade,
votaram contra quem os indicou. Uma história conhecida envolve o ex-ministro
Celso de Mello, que chegou ao STF por indicação do presidente José Sarney —
tendo sido apadrinhado pelo então ministro da Justiça, Saulo Ramos. Já fora do
governo, Sarney quis transferir seu domicílio eleitoral do Maranhão e se
candidatar ao Senado pelo Amapá. A decisão foi contestada, foi parar na Justiça
e a causa acabou julgada pelo STF. A despeito da vitória do ex-presidente,
Mello votou contra.
No dia
seguinte, Mello telefonou a Ramos para explicar seu voto. Disse que fez o que
fez para desmentir a imprensa, que havia cravado como certo seu voto favorável
a Sarney. Como foi o último a votar e os ministros anteriores já tinham dado a
vitória ao ex-presidente, Mello não viu problemas em demonstrar independência e
votar contra. E, então, concluiu a explicação com uma pergunta: “O senhor
entendeu?”. Neste momento, conforme o velho advogado relatou em seu livro de
memórias, Ramos demonstrou toda sua irritação e, segundo seu próprio relato,
desabafou: “Entendi. Entendi que você é um juiz de merda!”.
O
certo, porém, é que, cada vez mais, os indicados chegam ao Supremo apoiados
exclusivamente em suas ligações políticas. E não no tal “notório saber
jurídico”, que ao lado da “reputação ilibada” e da idade superior a 35 anos,
compõe a trinca de atributos exigidos pelo artigo 101 da Constituição dos
indicados ao STF. Diante de tais considerações, e ainda que elas desagradem
pessoas que avaliam a indicação para o STF apenas com base em suas próprias
preferências políticas, é inegável que Messias reúne credenciais muito mais
sólidas do que as de Pacheco para ocupar o posto.
Isso
mesmo. Mesmo tendo sido, a essa altura, completamente excluído da disputa, é
bom recordar a trajetória de Pacheco para dar sentido ao que foi dito acima. O
senador mineiro é advogado de carreira e, antes de ingressar na política, era
titular de uma bem-sucedida banca de advocacia em Belo Horizonte. Nesse ponto,
há centenas como ele no Brasil. Tem também sua atuação política. Sua carreira
se resume à vitória nas eleições para deputado federal em 2014 e para senador,
em 2018. Naquele pleito, enfrentou o PT e derrotou a candidata do partido, a
ex-presidente Dilma Rousseff. No posto, se aproximou de Bolsonaro e assumiu a
presidência da casa em 2021.
Com o
passar do tempo, e na medida em que crescia a possibilidade de vitória de Lula
no pleito de 2022, ele iniciou um movimento inicialmente discreto em direção à
esquerda, até que passou a fazer o L com a maior desenvoltura. Reconduzido à
presidência do Senado em 2023, jamais criou um único embaraço ao presidente nos
dois primeiros anos do mandato. Pacheco chegou a ser apontado como o nome
preferido de Lula para a disputa do governo de Minas Gerais em 2026. Mas nunca
escondeu que sua vontade era ter a fidelidade recompensada pela indicação para
o STF.
O
principal argumento de Alcolumbre para a indicação de Pacheco é que seu nome
tem bom trânsito entre os senadores e enfrentaria menos resistência do que o de
Messias na aprovação pelo plenário. Isso, no entanto, não parece suficiente
para considerá-lo um candidato com mais credenciais do que Messias na disputa
pela vaga de ministro.
ELEITORADO
EVANGÉLICO
As
maiores críticas que Messias recebe da oposição se devem justamente aos
atributos que parecem tornar sua presença no STF essencial para o presidente da
República: a fidelidade incontestável a Lula e ao PT. Por ser frequentador
assíduo da Igreja Batista Cristã, em Brasília, a indicação de Messias tem sido
vista, também, como um aceno capaz de reduzir a resistência até aqui
intransponível que a candidatura do presidente Lula enfrenta diante do
eleitorado evangélico. Mas não é na fidelidade nem na sua fé religiosa que
estão as principais credenciais do advogado para o STF.
Messias
já foi o titular da importantíssima Subchefia de Assuntos Jurídicos da Casa
Civil (que, no atual governo, passou a se chamar Secretaria Especial para
Assuntos Jurídicos). Para se ter uma ideia da importância desse posto, nenhum
documento — e quando se diz nenhum é nenhum mesmo! — chega à mesa do presidente
da República para assinatura antes passar pela leitura e pela revisão
criteriosa do ocupante do posto. Em tempo: o ministro Gilmar Mendes passou por
esse cargo no governo de Fernando Henrique Cardoso — que, depois, o promoveu
para Advogado Geral da União.
No
governo Dilma, Messias ganhou fama nacional — e o apelido de “Bessias” — no
episódio rumoroso da tentativa feita por Dilma para nomear o então
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a chefia da Casa Civil — no calor
dos processos da Operação Lava Jato. A articulação não deu certo e o desfecho é
conhecido. Nos governos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro retornou à
Procuradoria da Fazenda Nacional, onde é efetivo desde 2007. É, também, mestre
e doutor em Direito pela UnB.
A AGU,
onde trabalha atualmente, tem sido uma provedora de ministros para o STF. Dos
dez atuais integrantes da Suprema Corte, três passaram por lá antes de vestir a
toga. Gilmar Mendes, como já foi dito, chefiou a AGU no governo de FHC. Dias
Toffoli, ocupou o posto nas administrações passadas de Lula. André Mendonça
esteve lá no governo de Jair Bolsonaro. Messias, que pleiteia a 11ª vaga no
plenário, pode ser o quarto.
A
despeito das credenciais que o recomendam para o cargo, porém, a indicação para
o posto foi reduzida a uma peça da disputa permanente que acontece em Brasília,
sob os efeitos da Lei da Ação e Reação mencionada no primeiro parágrafo. Muitos
senadores da oposição, certamente, negarão o voto a Messias devido a suas
ligações com o PT. Outros rejeitarão o voto por restrições ao currículo do
candidato. Outros, certamente, serão movidos apenas pela intenção de
constranger Lula — o que é próprio do jogo político.
O certo
é que a correlação de forças no Senado, que sempre foi mais favorável a Lula do
que na Câmara, já não anda tão confortável assim e um sinal claro nesse sentido
foi o placar da votação que, dias atrás, reconduziu o indicado de Lula, Paulo
Gonet, ao posto de Procurador Geral da República. Gonet teve 45 votos a favor e
26 contrários. Ou seja, teve apenas 4 votos a mais do que o mínimo de 41
necessários para confirmar a indicação. Na primeira indicação, em 2023, o nome
do procurador foi aprovado por 65 votos a 11.
A
questão é que a tensão que já havia no dia 13 de novembro, quando o nome de
Gonet foi levado ao plenário, aumentou ao longo do restante de novembro. E o
rompimento de Alcolumbre com Lula, caso resista a mais uma semana, pode gerar
uma situação praticamente inédita: a rejeição pelo Senado de um indicado pelo
presidente.
Os
únicos casos conhecidos se deram em 1894, quando o marechal Floriano Peixoto
tentou entregar a toga do STF a um médico, dois generais e um amigo que ele
mesmo havia nomeado para o então Supremo Tribunal Militar. Ouviu um sonoro não
do Senado. O argumento dos condestáveis da época foi o de que os nomes
indicados não preenchiam os requisitos jurídicos necessários para o posto.
Quanto
a Messias, ele é parte de uma disputa política e sabe muito bem de suas
possibilidades e dos riscos que está correndo. Se for rejeitado pelo Senado,
Messias permanecerá na Advocacia Geral da União e seguirá a vida. Uma rejeição
por razões políticas num ambiente conflagrado como o da política brasileira não
pode, de forma alguma, ser visto como um demérito. E, sim, como uma
consequência natural de um ambiente político que precisa ser apaziguado o mais
cedo possível.
Se for
aprovado, com existem chances enormes de que aconteça, terá uma longa carreira
e uma trajetória que se estenderá pelas próximas três décadas. Com 45 anos,
ficará no posto até os 75. Se isso acontecer, o país espera que ele não caia na
tentação de usar a caneta como arma a serviço de quem o pôs no cargo. Tudo que
o país não precisa é ter no STF mais um ministro acusado de abusar do lawfare e
de colocar seus interesses políticos à frente da Constituição. Tomara que não
seja esse o caso de Messias.
Fonte:
Nuno Vasconcellos, em O Dia

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