Abandono
de pessoas idosas é crime e aumenta no Brasil
Marta*
tinha 71 anos quando foi internada em um hospital de Osasco, na Grande São
Paulo. O marido a acompanhou por alguns dias, até que deixou de visitar a
esposa que não apresentava melhoras e continuava hospitalizada.
Após
algumas semanas, a agente social Meliana Emiliano ficou preocupada e, com apoio
legal, buscou o companheiro na moradia dos dois. "Ele estava lindo e
maravilhoso, vivendo muito bem com a aposentadoria da esposa, sem ir visitá-la;
quando pedimos à Justiça que a aposentadoria fosse destinada ao cuidado dela,
aí, ele voltou a frequentar o hospital", narra.
A
história de Marta* integra as mais recentes estatísticas do Ministério dos
Direitos Humanos e Cidadania, que registrou aumento no número de denúncias de
abandono de pessoas idosas nos últimos anos. Em 2024, de acordo com o painel de
dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do órgão, elas cresceram mais
de 26% em relação ao ano anterior: passaram para 62.688, ante 49.749 denúncias
em 2023. Até o fim de novembro de 2025, as denúncias de violação da integridade
física por meio de abandono somavam 60.271.
A curva
ascendente chama atenção num momento de alteração da pirâmide etária
brasileira: segundo dados do último Censo de 2022, a população com mais de 60
anos cresceu 56% em relação a 2010, ultrapassando 32,1 milhões – o equivalente
a quase 16% da população contabilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) naquele ano.
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O que configura abandono de uma pessoa idosa?
Para o
Secretário Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa, Alexandre da Silva, o
abandono não se limita à ausência total de amparo – e se manifesta, muitas
vezes, como negligência material e afetiva. "Como quando se oferece apenas
um mínimo de comida, não há troca de afeto, e compromete-se a qualidade de vida
digna", explica, em entrevista à DW.
Este
cenário pode ser agravado pela situação financeira de familiares. Mesmo sem
intenção, eles podem não conseguir suprir as necessidades dos idosos,
colocando-os em risco por não 'darem conta' das múltiplas demandas oriundas do
envelhecimento.
Silva
também aponta que a maior parte dos casos de abandono está ligada a desafios
socioeconômicos. Neste contexto, o abandono de idosos não é apenas familiar.
Ele acontece também pela comunidade e pelo Estado, quando este não é capaz de
dar a assistência adequada para manter os idosos em condições mínimas de
dignidade.
Outros
fatores também influenciam o cenário de abandono no âmbito nacional, segundo o
secretário: o aumento da expectativa de vida da população, a queda da
fecundidade , a redução da família como extensão de laços afetivos, com menos
integrantes para oferecer apoio; e a entrada das mulheres no mercado de
trabalho. Como a carga do cuidado ainda recai majoritariamente sobre elas , o
movimento tem como efeito a redução de pessoas disponíveis para cuidar dos
idosos em tempo integral.
Qualquer
pessoa – um vizinho, um amigo – pode denunciar anonimamente uma situação de
abandono. As denúncias podem ser feitas nos conselhos municipais e estaduais da
pessoa idosa ou pelo telefone do Disque Direitos Humanos: o número é 100.
Boa
parte das denúncias é apurada pelo Ministério Público (MP), responsável junto
ao serviço social e à Defensoria Pública por garantir a integridade desta
população quando o abandono se torna mais crítico.
"Deixar
o idoso à própria sorte, sem amparo, atenção e cuidado pode ser caracterizado
como crime; se uma pessoa idosa tem filhos e estes têm capacidade [de cuidar],
eles podem ser processados; e, se houver indícios de abandono mesmo,
negligência e [de] intencionalmente não contribuir, podem mesmo ser acionados
por abandono", explica Maria Alzira Alvarenga, promotora de Justiça de São
Paulo e coordenadora do centro de apoio à Pessoa Idosa do Ministério Público de
São Paulo (MPSP).
Ela
distingue que, embora se confundam, o "desamparo" pode ser decorrente
da falta de condições econômicas da família ou da cognição comprometida do
idoso, enquanto o "abandono total" é uma atitude dolosa e proposital
da família, que não quer saber do idoso.
Amanda
Lourenço dá outro exemplo. Ela é uma das agentes sociais responsáveis pelo
cuidado dos idosos que procuram o Creci (Centro de referência do Idoso) no
centro de São Paulo. Com programação de segunda a sexta-feira das 9 às 18h,
cerca de 550 idosos com mais de 60 anos procuram o centro quase diariamente em
busca de interação social e suporte. Um público que vem aumentando com o
envelhecimento da população e que expõe a sua vulnerabilidade.
"Temos
uma comunidade de idosos muito ativos , e por isso é raro o abandono físico,
daquele idoso mais debilitado; mas é em certo ponto comum [termos] os casos de
abandono afetivo, psicológico ou mesmo financeiro, com uso do dinheiro do idoso
sem sua permissão", exemplifica.
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Penas maiores
A lei
15.163, sancionada em julho deste ano, aumenta a pena de alguns crimes
praticados contra pessoa incapaz, idosa e com deficiência, entre outros
dispositivos. "No caso do idoso, ela aumenta as penas do crime de expor a
perigo a integridade, a saúde física ou psíquica da pessoa, e também aumenta as
penas previstas no Código Penal para crimes de abandono de incapaz e
maus-tratos", explica a promotora.
O Art.
99 do Estatuto da Pessoa Idosa (Lei 10.741/2003), por exemplo, teve as penas de
detenção alteradas para reclusão de dois a cinco anos. Antes, a pena era de
dois meses a um ano de reclusão por "expor a perigo a integridade e a
saúde, física ou psíquica, da pessoa idosa, submetendo-a a condições desumanas
ou degradantes ou privando-a de alimentos e cuidados indispensáveis, quando
obrigado a fazê-lo, ou sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado".
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Quais são os direitos da pessoa idosa?
O
Estatuto estabelece que "é obrigação da família, da comunidade, da
sociedade e do poder público assegurar à pessoa idosa (...) o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho,
à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e
comunitária".
O texto
completou 22 anos no começo de outubro. Entre seus 118 artigos, garante o
direito ao alimento por parte de familiares. Esse direito pode ser exigido por
lei.
Presidente
da Comissão dos Direitos da Pessoa Idosa da OAB-SP (Ordem dos Advogados do
Brasil), João Paulo Iotti explica que este dever é semelhante àquele em que os
pais têm de fornecer alimentos aos filhos. "Este é um tipo de abandono
material que pode incluir a negligência, e ela é perigosa porque em última
instância pode levar até mesmo à morte", alerta o advogado.
Ele
defende que as políticas públicas, além do amparo direto à população idosa, se
concentrem na maior educação quanto aos direitos e deveres de familiares,
idosos e comunidade, contando até mesmo com ensino em escolas sobre o
envelhecimento .
"Por
vezes, o idoso em abandono ou indigência não sabe sequer estar nesta condição
porque as violações ocorrem geralmente dentro do próprio nicho familiar, que
também não tem consciência, e aí [o crime] é agravado pela negligência ou
omissão do poder público", constata.
*Nome
fictício
Fonte:
DW Brasil

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