Petróleo
no chão: A proposta que precifica a preservação e desafia a lógica do ouro
negro
Na
primeira parte deste texto, A farsa do ouro negro, postado no site A Terra é
Redonda, demonstramos que o petróleo pode ser nosso, mas o lucro é bem
selecionado e nunca distribuído, nem mesmo sob a forma de políticas públicas, e
que sequer o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das regiões produtoras é
alterado. As grandes empresas beneficiam-se economicamente com o petróleo, ao
povo resta a socialização do dano ambiental causado. Aqui, enfrentaremos um dos
temas mais urgentes no contexto do papel estratégico do petróleo no Brasil, e
esperamos que apreciem nossa proposição alternativa ao modelo que perdura, a
despeito de tantos tropeços.
A
Margem Equatorial brasileira – faixa offshore que se estende do Amapá ao Rio
Grande do Norte e inclui a Foz do Rio Amazonas – está no centro de um impasse:
diante de enormes reservas identificadas, a Petrobras e outras petroleiras
querem perfurar, o IBAMA resiste no licenciamento e a sociedade civil alerta
para os riscos climáticos de uma nova fronteira petrolífera. Mas e se a maior
riqueza da Margem Equatorial viesse, paradoxalmente, de sua não-extração?
Num
mundo correndo contra o relógio climático, manter as reservas no subsolo pode
valer mais do que qualquer leilão de outorga: preservar a atmosfera global da
sobrecarga de gases de efeito estufa, proteger a biodiversidade local de
desastres, abrir portas a fundos e acordos internacionais e liberar, de
imediato, os investimentos para uma transição energética popular e justa. Ao
contrário de sacrificar o desenvolvimento, imagine substituí-lo por um modelo
mais inteligente, estável e distributivo. Mostraremos por que essa escolha é
economicamente sólida e pode reposicionar o Brasil na liderança global em
transição verde.
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Lições do Yasuní
A ideia
começou em 2007, quando o Equador propôs ao mundo um pacto histórico: deixar
846 milhões de barris de petróleo intocados sob o emblemático Parque Yasuní, em
troca de contribuições internacionais equivalentes à metade da receita que a
extração geraria.
O
petróleo dos lotes ITT valia então 7,2 bilhões de dólares, 19% das reservas
comprovadas de petróleo do Equador. O potencial calculado de emissão de dióxido
de carbono na atmosfera era de 407 milhões de toneladas, o que agravaria ainda
mais a crise climática. A região do Parque Yasuní abrange uma extensão de
982.000 hectares, suas florestas concentram espécies de quatro grupos
taxonômicos (anfíbios, aves, mamíferos e plantas vasculares), sendo umas das
mais preciosas da Amazônia.
Para
além da biodiversidade, a região é habitada pela nação indígena Huaorani e
alguns grupos não contatados como os Tagaeri e Taromenane, e está protegida
pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada
pela ONU como referência vinculante sobre os direitos coletivos de povos
indígenas e tribais.
Até
2005, cerca de 60% do Parque Nacional Yasuni haviam sido concedidos a empresas
petroleiras transnacionais, em blocos de 200.000 hectares, provocando diversos
conflitos com a população indígena, aumento da violência, alcoolismo, assédio
sexual às mulheres, prostituição, decomposição familiar, insegurança, problemas
trabalhistas, conflitos pelo pagamento de indenizações a pessoas atingidas e
repressão por parte das companhias petroleiras para assujeitar as comunidades.
A
primeira condição do governo do Equador para renunciar à exploração era que um
total de 3,6 bilhões de dólares fosse pago através do Programa para o
Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD), composto por 118 governos
contribuintes, ao longo de dez anos. Esses recursos seriam aplicados em
projetos de energias renováveis e programas socioeconômicos. No entanto, em
agosto de 2013, o então Presidente Rafael Correa anunciou o fim da iniciativa,
pois as contribuições da comunidade internacional não passaram de US$13
milhões, muito aquém da meta esperada.
Com
modelo semelhante ao PNUD, o Green Climate Fund (GCF) foi criado em 2010 como
financiador global para transição e mitigação climática nos países em
desenvolvimento, supostamente a partir de contribuições voluntárias dos países
ricos da ordem de U$100 bilhões/ano; no entanto, o GCF arrecadou meramente um
total de US$28 bilhões até o momento. Isso reforça a hipótese de que o fracasso
de captação da iniciativa equatoriana se deva mais à insuficiência estrutural
de mecanismos não-vinculantes, decorrente da falta de seriedade dos países
industrializados frente ao tema, do que propriamente a qualquer demérito
inerente ao conceito de Petróleo no Chão.
Um
primeiro plebiscito em 2018, convocado pelo governo, tinha como objetivo
reduzir a área de exploração de petróleo dentro do parque no Campo de Ishpingo
– que faz parte da zona intangível – não eliminá-la por completo. A pergunta
específica era: “Você concorda em aumentar a zona intangível em pelo menos
50.000 hectares e reduzir a área de exploração de petróleo autorizada no Parque
Nacional Yasuní de 1.030 para 300 hectares?”
O
resultado foi uma sonora vitória do “sim”, com 67,45% dos votos, acarretando
uma redução significativa da área de exploração no Bloco 43 (ITT). Embora fosse
um passo positivo para a proteção ambiental, a exploração continuou em uma área
menor. Nesses termos, o governo do Equador deu prosseguimento à exploração de
petróleo na área.
Em
setembro de 2022, o Tribunal Constitucional do Equador determinou a realização
de novo referendo nacional (6-22-CP/23) para decidir sobre a exploração em
Yasuní indefinidamente, reconhecendo um direito adquirido pelos Yasunidos,
grupo ambiental que reuniu 757 mil assinaturas e venceu uma batalha judicial de
uma década contra os órgãos eleitorais do Equador. O referendo ocorreu em
agosto de 2023 e a população novamente elegeu manter o petróleo no chão, com
60% dos votos.
Após
nova vitória popular, um relatório da organização Latinoamérica Sustentable
intitulado “China en el Yasuní ITT”, de julho de 2023, pediu ao governo chinês
que suas empresas estatais “se retirem de forma ordenada e progressiva” do
Bloco 43 – em concordância com o veredito de manter o petróleo no chão em
perpetuidade e a retirada dos equipamentos das petroleiras dentro de um ano.
Atualmente,
intelectuais equatorianos, como a ex-ministra da fazenda Wilma Salgado, renovam
o debate sobre medidas que poderiam mitigar a renúncia de exploração, tais
como: (i) Eliminar as isenções fiscais aos 10% mais ricos do país, aportando ao
Tesouro US$ 598 milhões por ano. Isso é quatro vezes a renúncia estimada
deixando o petróleo do Yasuní no chão;
(ii)
Cobrar as dívidas dos 500 maiores devedores tributários do Estado equatoriano,
em valores da ordem de US$2 bilhões, sem a necessidade de colocar em risco o
Yasuní e o Planeta.
Some-se
a essas alternativas o custo da obrigação de descomissionamento (Asset
Retirement Obligation), ou seja: o valor presente do custo implícito de
fechamento dos poços ao final da extração, o que requer investimento financeiro
e tecnológico em si, e raramente é incluído na conta de externalidades da
exploração. No caso de Yasuní, sequer fomos capazes de encontrar tal estimativa
publicamente disponível.
O
interesse das grandes petroleiras em manter a extração de petróleo é
insaciável, diante da necessidade estrutural de manter sua taxa de lucros e
poder geopolítico. Como exemplo da contradição entre exploração petrolífera e
soberania dos povos, mesmo a despeito de supostos alinhamentos ideológicos
nominais, o chamado Bloco 43, do qual fazem parte os campos Ishpingo,
Tambococha e Tiputini (conhecidos pela sigla ITT) no Parque Yasuní, só não foi
explorado devido à força popular, que por duas vezes afirmou seu interesse de
manter o petróleo no chão.
Por
contraste, os relatórios do IBAMA apontando os prejuízos ecológicos na margem
equatorial são invalidados no atual governo brasileiro, alegadamente de
centro-esquerda, pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, e pelo
próprio Presidente da República.
A farsa
de que o ouro negro seria uma alavanca incontornável de financiamento do Estado
torna-se refutável diante dessas considerações e certamente nos serve de
exemplo. Apesar do insucesso parcial, o experimento equatoriano legou três
lições centrais:
(a)
teoricamente, é possível precificar o valor climático de manter reservas
fósseis no subsolo;
(b) a
proposta mobiliza a opinião pública global e pode atrair governos dispostos a
pagar por reduções de oferta de petróleo;
(c)
medidas fiscais que mirem a riqueza concentrada nas mãos de uma pequena elite
nacional, capaz de barganhar isenções tributárias, superam potencialmente em
muito a expectativa de receita líquida com a exploração petrolífera, portanto
constituem um custo de oportunidade relevante em tal decisão.
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Quanto vale o petróleo da Margem Equatorial brasileira?
A
Margem Equatorial brasileira, especialmente a bacia da Foz do Rio Amazonas, tem
sido considerada a principal aposta da Petrobras para repor suas reservas de
petróleo, que de outra forma começariam a diminuir a partir da década de 2030.
Com
base em mapeamento sísmico e interpretação geológica, estima-se que a região
offshore contenha grandes depósitos, a exemplo dos encontrados na vizinha
Guiana. Estudos da Petrobras indicam reservas de 5,6 bilhões de barris,
enquanto a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) estima 6,2 bilhões de óleo
equivalente recuperável; as receitas previstas variam entre US$770 bilhões e
US$2,3 trilhões.
A
começarem já os investimentos, o início da produção é esperado para o ano 2030.
Por conta própria, tomando a cotação atual do barril Brent, podemos estimar a
receita de 6,2 bilhões de barris em US$ 409,9 bilhões, cuja queima geraria
aproximadamente 2,72 bilhões de toneladas de dióxido de carbono na atmosfera, o
que corresponde a 590 milhões de carros rodando por um ano.
Por
outro lado, segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC)
da ONU, será preciso reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 43% até
2030, e em 60% até 2035, para zerar as emissões líquidas em 2050. Nesse marco,
nenhuma nova grande frente de exploração de combustíveis fósseis deve ser
aberta. Para provavelmente limitar o aumento da temperatura global entre 1,5°C
e 2°C, frente aos níveis pré-industriais, a quantidade de dióxido de carbono
(CO₂) que ainda poderia ser liberada na atmosfera é chamada orçamento de
carbono remanescente.
As
estimativas mais atuais desse estoque, conforme a probabilidade de aquecimento
global, são as seguintes: (i) Para a meta de 1,5°C: A estimativa central do
orçamento de carbono é de 130 bilhões de toneladas de dióxido de carbono
(GtCO₂) a partir do início de 2025. No ritmo atual de emissões, isso se
esgotará em apenas três anos; (ii) para a meta de 2°C: Para limitar o
aquecimento a 2°C, com 50% de probabilidade, o orçamento de carbono é de 1.350
GtCO₂.
Por se
tratar de uma área sensível e de grande biodiversidade, portanto apenas com
base na precaução local contra possíveis vazamentos, o IBAMA negou à Petrobras
uma licença para perfurar na costa do estado do Amapá em maio de 2023. A
empresa petrolífera recorreu prontamente, mas o processo se arrasta até hoje e
relatórios produzidos por especialistas do IBAMA já recomendaram a rejeição do
pedido da Petrobras duas vezes.
No
entanto, a crescente pressão política pela aprovação – incluindo a do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que acusou publicamente a agência de
trabalhar contra o governo – levou o chefe do IBAMA, Rodrigo Agostinho, a
aprovar em maio de 2024 o plano de emergência da Petrobras para proteger a
fauna em caso de derramamento de óleo.
Em
junho de 2025, foi realizado um leilão de outorgas na Foz do Amazonas, que
ofertou um total de 47 blocos na Bacia da Foz do Amazonas, na faixa entre o
Pará e o Amapá – e ainda outros blocos em diferentes bacias do país. Esse
resultou na arrematação de 19 blocos pela Petrobras e também por empresas
estrangeiras como Exxon Mobil, Chevron e CNPC. O leilão ocorreu sem a Avaliação
Ambiental de Área Sedimentar (AAAS) e sem consulta prévia, livre e informada
aos povos indígenas e comunidades tradicionais, o que gerou críticas.
Não há
como avaliar os lucros obtidos pelas empresas estrangeiras na exploração de
petróleo no Brasil, já que em geral não divulgam os resultados financeiros
detalhados por país. Estima-se que representem 20% da produção brasileira de
petróleo.
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As alternativas de retorno econômico mantendo o petróleo no chão
No
sistema capitalista, que prioriza o lucro acima de qualquer vida, não basta
apenas a comunidade científica produzir relatórios, a exemplo do IPCC,
alertando sobre a catástrofe climática: é preciso precificar os prejuízos e os
possíveis ganhos.
Uma
oportunidade econômica ainda pouco debatida é a criação de escassez, ou seja, a
recusa de injetar novos barris num mercado já próximo de 105 Mbbl/d (milhões de
barris por dia). Dessa forma, o Brasil tenderia a elevar marginalmente o preço
internacional do petróleo e poderia negociar compensações diretas de outros
produtores interessados nessa elevação – algo análogo às “contribuições pela
estabilidade” que a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) faz
circular nos bastidores.
Recordemos
que a OPEP é um cartel que influencia oferta e preço do petróleo, fundado em
1960 por Arábia Saudita, Irã, Iraque, Kuwait e Venezuela – e mais tarde em 2013
agregando Emirados Árabes Unidos e sete países da África: Nigéria, Gabão, Guiné
Equatorial, Líbia, República do Congo e Argélia. Por sinal, o Brasil entrou em
2025 como observador na OPEP+.
Analogamente,
a venda de títulos de renúncia de exploração poderia ser o mecanismo vinculante
em que o Brasil é diretamente remunerado pelo valor presente do ganho marginal
dos demais produtores com nossa redução da oferta global futura. Em outras
palavras, o Brasil recebe um prêmio dos países e empresas produtoras por fazer
subir o preço do petróleo deles no futuro, descontado o valor presente.
Outro
ponto a ser considerado, em que pesem diversas ressalvas teóricas aos mercados
de carbono, seriam os green royalties, que remuneram diretamente a manutenção
de estoques fósseis. Um artigo na revista Perspectives in Ecology and
Conservation calcula que preservar a Margem Equatorial poderia render ao Brasil
de US$7 a 10 por barril não extraído, se cada tonelada de CO2 fosse precificada
a valores de mercado. Esse estudo corrobora o entendimento de que os royalties
de petróleo e gás no Brasil têm sido, em grande parte, ineficazes no fomento ao
desenvolvimento municipal.
A
proposta do estudo, contudo, é criar um fundo fiduciário para uma distribuição
equivalente de green royalties que precisaria de um capital inicial de US$19
bilhões. Esse valor é viável, pois é comparável a fundos fiduciários
existentes, como o FONAFIFO e o Fundo Permanente do Alasca (APF). O capital
semente para o fundo fiduciário viria do Tesouro Nacional como um sinal do
compromisso do Brasil com o mecanismo. Recursos complementares viriam de outras
fontes, incluindo cooperação internacional e doadores voluntários.
Outros
meios sensatos de compensarmos o petróleo no chão seriam a taxação dos super
ricos no Brasil e o corte de isenções fiscais de grandes empresas. O potencial
de receita depende dos critérios adotados, como o valor da alíquota; a base de
cálculo e quais isenções seriam de fato revogadas. No entanto, é possível
reunir dados e projeções de diferentes estudos para ter uma ideia de sua
magnitude.
As
estimativas de arrecadação variam significativamente:
(a)
R$260 bilhões por ano: segundo estudo da Tax Justice Network, o Brasil poderia
arrecadar esse montante com a implementação de uma taxação progressiva sobre os
super-ricos, com alíquotas entre 1,7% e 3,5%; a projeção baseia-se na
eliminação de algumas isenções existentes;
(b)
R$44,8 bilhões por ano: uma estimativa da Warren Investimentos aponta este
potencial em um cenário de taxação de 12% sobre a renda de brasileiros com
ganhos anuais acima de R$1 milhão;
(c)
arrecadação internacional: Em uma proposta apresentada no G20, o governo
brasileiro defendeu a taxação de super-ricos globalmente, com um potencial de
arrecadação de até US$250 bilhões por ano em nível mundial.
Fonte:
Por Ana Carolina Trindade Guilhen e Henrique N. Sá Earp, em A Terra é Redonda

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