PARQUES
EÓLICOS: Ventos para a vida, não para a morte
Chega a
noite e Maria, antes de ir para a cama, repete o ritual que a tem acompanhado
nos últimos dez anos: confere se as portas estão devidamente fechadas, toma os
três medicamentos que talvez lhe ajudem a dormir e pergunta a si mesma se
aquela vida, que tinha antes da chegada das torres, um dia irá voltar. Apesar
dos questionamentos que se faz, ela mesma já sabe a resposta, sabe que o mal
que atingiu a ela, sua família e praticamente toda a sua comunidade provocou
sequelas irreversíveis.
Na
comunidade rural de Sobradinho, em Caetés (PE), um estudo da Universidade de
Pernambuco (UPE) e da Fundação Oswaldo Cruz constatou que 70% da população usa
medicação contínua e 64% tomam remédios para dormir, devido aos distúrbios
provocados pelos aerogeradores. Os moradores desenvolveram sintomas das
chamadas Síndrome da Turbina Eólica e da Doença Vibroacústica, causadas pela
exposição aos ruídos e infrassons por tempo prolongado da rotação das hélices.
Maria
percebe, então, que aquelas doenças que chegaram junto com o parque eólico irão
os acompanhar para onde forem. “Só fica o barulho delas dentro do meu ouvido.
Posso ir para onde eu for, que o barulho fica no meu ouvido. Não sai, não sai”,
relatou uma moradora. Aquelas pessoas que foram embora por não mais suportar o
sofrimento, não irão voltar. Na verdade, a própria comunidade logo não
existirá. O mesmo estudo da FioCruz e UPE afirma que 57% dos moradores
entrevistados da comunidade de Sobradinho têm interesse de deixar o território.
A parte que ainda não foi embora coleciona um cardápio de doenças e terá de
escolher entre a expulsão e a morte – se é que a expulsão já não é uma morte de
olhos abertos.
Por
esses sertões, os parques eólicos se multiplicam feito peste e tem deixado
rastros de dor. Quem diria que aquelas pessoas que o latifúndio não tinha
conseguido expulsar, que os efeitos da indústria da seca não tinham feito
desistir, um dia teriam suas vidas sacrificadas em nome de uma mentira que é a
transição energética. O Brasil tem, desde muito tempo, uma das matrizes
energéticas mais limpas do mundo. As hidrelétricas têm muitos problemas, mas
não o de emitir gases de efeito estufa.
Aqui,
ao contrário da maioria dos países, os gases que provocam o efeito estufa não
são emitidos pela queima de combustíveis fósseis para a gerar eletricidade. A
nossa contribuição para aquecer o mundo vem do insistente destrutor
agronegócio. É o desmatamento, as queimadas, a criação extensiva de bois e o
uso de agrotóxicos que emitem a maior parte dos gases de efeito estufa nesse
lugar que veio a ser chamado de Brasil. Pensar uma transição energética de uma
forma honesta e coerente, é pensar a mudança de nosso modelo agrário, fazer o
que nunca nenhum governo fez: priorizar o povo camponês e deixar de sustentar o
agronegócio.
O
potencial de violência contra os territórios que os parques eólicos possuem, a
capacidade de destruir experiências comunitárias em lugares tão diferentes e
tão amplos é algo nunca visto no semiárido. Quase todos os parques eólicos
estão no Sertão e são uma maneira de enriquecer ainda mais os que já são muito
ricos. Em consequência, são também um jeito de fazer sofrer ainda mais aqueles
grupos que já carregam na história de seu povo o sofrimento, que é de que o
capitalismo se alimenta.
É
profundamente revoltante perceber que o dinheiro para poucos e o sofrimento
para muitos é algo normalizado, que acontece sem escândalos. Tem comunidade
sendo destruída na beira do mar, tem comunidade desaparecendo nos altos das
serras, tem território indígena adoecendo em um lugar, tem comunidade
quilombola sendo ameaçada em outro. Os parques eólicos são, ao mesmo tempo, um
projeto econômico e uma tecnologia de guerra.
Maria,
sua família e sua comunidade são as moedas de troca que o governo tem para
oferecer. Se já existem mais de mil parques eólicos instalados no Brasil, de
acordo com a Associação Brasileira de Energia Eólica, se apropriando de
milhares de hectares de territórios sertanejos, quantas Marias, suas famílias e
suas comunidades devem existir nesse mesmo sofrimento? O Estado brasileiro tem
sido criminoso com sua omissão diante de tantas evidências de que a transição
energética, que com orgulho propagandeia pelo mundo, é, na verdade, mais uma
modernização da violência colonial, a continuação do projeto até agora
bem-sucedido de nos matar em troca de dinheiro.
Há quem
chame isso de necropolítica. A situação fica mais vergonhosa quando a gente
percebe que, apesar de todo discurso, não há um projeto de abandono da
exploração de combustíveis fósseis. A insistência do governo brasileiro em
explorar petróleo na foz do Amazonas é um exemplo disso. Portanto, mesmo que a
gente precisasse de uma substituição, não é o que está acontecendo. O que temos
é uma adição, uma soma de fontes energéticas, uma tentativa de explorar a
natureza com todas as possibilidades que a tecnologia oferece.
Porém,
seria uma ilusão achar que o capitalismo não iria se apropriar do discurso
ambientalista e que os povos do campo teriam suas vidas respeitadas em um
projeto político idealizado e executado pelos poderosos do mundo. O que cabe a
nós é insistir na vida, no projeto de mundo que acreditamos e sabemos que
apenas virá de nós mesmos, dos de baixo. Aqui, em Pernambuco, temos produzido e
vivenciado uma experiência muito bonita, que chamamos de “Escola dos Ventos”.
A
Escola dos Ventos passou a ser mais conhecida quando, em fevereiro deste ano,
vários jornais noticiavam que um grupo de camponeses e indígenas teriam ocupado
um prédio público em Recife, exigindo do governo do estado de Pernambuco a
paralisação de dois parques eólicos na região agreste e o compromisso de que
não concederia nenhuma licença que facilitasse a instalação de empreendimentos
energéticos no território do povo indígena Kapinawá. A ocupação foi resultado
de um longo processo de formação, reflexão e articulação em torno da Escola dos
Ventos. Ao final da ocupação, retornamos para nossos territórios com a licença
de funcionamento do Parque Eólico São Clemente cassada e com a primeira
paralisação de um parque eólico garantida através da luta popular. Para nós,
foi uma prova de que apenas com a insistência e compromisso podemos tocar uma
luta que corre o risco de ser vitoriosa.
Desde a
ocupação, muita coisa aconteceu, desde outras lutas vitoriosas, até uma decisão
judicial que tem permitido que o parque eólico São Clemente funcione sem
licença ambiental. A aliança entre famílias impactadas por parques eólicos, a
Comissão Pastoral da Terra e grupos de pesquisa ligados à universidade – que é
a composição da Escola dos ventos – tem nos dado coragem e esperança. Na
Escola, temos aprendido que o Estado faz e fará de tudo para proteger os
interesses econômicos das empresas. E que a nós cabe insistir na solidariedade
entre os que sofrem, na teimosia rebelde e na crença de que só a luta nos
salvará das hélices da morte e outros projetos que promovem o Ecogenocídio[3]
dos povos da terra e seus territórios.
Fonte:
Por João do Vale, no Le Monde

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