quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Luís Nassif: Como o bolsonarismo judaico instrumentalizou o antissemitismo

A CONIB (Confederação Israelita do Brasil) deu demonstração maiúscula de seu poder político e de seu alinhamento com o autoritarismo bolsonarista – com o qual tem afinidades. Conseguiu a demissão de Jamil Chade, principal colunista da UOL, e Juca Kfouri, colunista de esportes da Folha, por tratar como genocídio o genocídio de Gaza.

É curiosa essa atuação. A base do antissemitismo sempre foi a influência de comunidades judaicas, aliando poder econômico à influência política e expondo-se a teorias conspiratórias que atravessaram os séculos.

<><> Peça 1 – As teorias conspiratórias antissemitas

Na adolescência, chegaram às minhas mãos dois livros conspiratórios, os “Protocolos dos Sábios de Sião”, e “Brasil, República de Banqueiros”, de Gustavo Barroso.

Eram livros profundamente antissemitas, colocando os judeus no centro de uma conspiração global. Não batia com seu Abraham Setzman, judeu de Ribeirão Preto amigo da família, nem com as senhorinhas da Casa Bela, de Poços de Caldas.

Com o amadurecimento intelectual, as teorias conspiratórias baseadas no preconceito vão perdendo espaço. Mas é pedagógico compará-las com as teorias conspiratórias da ultradireita.

As principais teorias conspiratórias dos “Protocolos” eram as seguintes:

>>> 1. Conspiração Global para Dominação Mundial

Judeus reunidos em um “conselho secreto” planejariam assumir o controle político global, destruir governos, manipular crises e submeter todos os povos.

>>> 2. Controle da Imprensa e da Comunicação

Os “sábios de Sião” supostamente controlariam jornais, editoras, jornais comunitários, rádios e (no delírio atualizado) redes sociais.

>> 3. Controle do Sistema Financeiro Internacional

O documento inventa um suposto projeto judaico de dominar bancos, manipular moedas, controlar reservas internacionais, provocar crises e pânicos financeiros.

>>> 4. Promoção do Liberalismo Moral para “Enfraquecer a Sociedade”

Os Protocolos afirmam que judeus incentivariam secularização, emancipação feminina, educação universal, liberdade de expressão, movimentos sociais, para “corromper” instituições tradicionais.

>>> 5. Implantação de Um Governo Mundial Único

Ponto máximo do delírio: um “rei judeu” governaria o planeta após o suposto colapso dos estados nacionais. Bate com as teorias conspiratórias atuais sobre a globalização.

Menciono essas pirações conspiratórias para mostrar as semelhanças com as teses conspiratórias da ultradireita bolsonarista. O que alimentava a fantasia eram as demonstrações de poder dos Rothschild, dos Sulzberger, que tornaram o The New York Times o jornal mais influente do mundo, William Paley, da CBS, David Sarnoff, da TCA/NBC, a família Warner, da Warner Bros, William Paley da CBS e assim por diante.

No Brasil, o bolsonarismo judaico passou a se valer do antissemitismo para montar uma frente, mostrando poderio econômico para uma grande ofensiva em favor da direita bolsonarista.

<><> Peça 2 – as teorias conspiratórias da ultradireita

De uns anos para cá, ocorreu o fenômeno do uso da religião pela ultradireita, a volta ao Velho Testamento e a piração maior, Israel como cumprimento de profecia bíblica. Especialmente após a criação do Estado de Israel e da Guerra dos Seis Dias, ocorreu um fenômeno simultâneo, um avanço da ultradireita em dois níveis.

Em um nível, o novo evangelismo, baseado no Velho testamento, colocando Israel no centro da salvação universal. De outro, grupos sionistas, espalhados por vários países, engrossando a radicalização da ultradireita. É como se os sionistas reescrevessem os Protocolos dos Sábios de Sião, colocando fantasmas esquerdistas e terroristas mirins palestinos no lugar dos judeus.

Leia, a propósito, o excelente artigo “A direita conservadora dos EUA rompe com o sionismo cristão, por Mohammed Hadjab”, publicado no GGN.

Vamos a uma linha do tempo para entender essa travessia surreal:

>>> 1800–1880 — As Raízes: Sionismo Cristão Pré-Sionismo Judaico

Contexto: Movimentos protestantes reformados no Reino Unido e EUA começam a interpretar profecias bíblicas de forma literal.

É o início do que mais tarde será chamado sionismo cristão — antes mesmo de Theodor Herzl.

>>> 1880–1917 — Do Sionismo Judaico à Declaração Balfour

# Eventos centrais:

•        1897: Congresso Sionista de Herzl.

•        Pastores protestantes britânicos pressionam politicamente o governo.

•        1917: Declaração Balfour, que apoia um “lar nacional judeu”.

# Evangélicos pensavam:

•        Retorno judaico = cumprimento profético.

•        A criação futura de Israel era vista como parte da restauração escatológica.

>>> 1917–1948 — De Mandato Britânico ao Estado de Israel

# O que muda:

•        Crescem movimentos dispensacionalistas nos EUA (como os seguidores da Bíblia de Scofield).

•        Proliferam interpretações apocalípticas ligadas a Israel.

# Crenças marcantes:

•        Israel seria restaurado antes da Segunda Vinda.

•        Judeus teriam papel central no “fim dos tempos”.

•        Pastores começam a enviar recursos e missões para Jerusalém.

>>> 1948 — Criação do Estado de Israel

# Marco absoluto para os evangélicos.

Reações:

•        1948 é interpretado como profecia cumprida.

•        O apoio a Israel se torna doutrina para uma parte grande do evangelicalismo.

•        Surgem organizações “cristãs sionistas”.

>>> 1967 — Guerra dos Seis Dias

# Efeito nos evangélicos: transformador.

Por quê?

•        Jerusalém é reunificada sob controle israelense.

•        Muitos interpretam como “o relógio profético acelerando”.

# Narrativa dominante:

•        Israel teria papel decisivo na Batalha do Armagedom.

•        Multiplicam-se livros, pregações e congressos proféticos.

>>> 1970–1990 — Ascensão da Direita Cristã nos EUA

# Fenômenos marcantes:

•        Tele-evangelistas ganham alcance global.

•        Pastores influenciam política externa americana.

•        Formam-se grupos como Christians United for Israel (CUFI).

# Crenças comuns nesse período:

•        Israel como “nação escolhida”.

•        Judeus retornando à Terra como sinal da “Última Geração”.

•        Apoio incondicional ao Estado de Israel como mandamento bíblico.

>>> 1995–2010 — Era de Filmes, Livros e Cultura Pop Apocalíptica

Impacto massivo de:

•        “Left Behind” (Deixados para Trás) — livros e filmes escatológicos.

•        Hal Lindsey (“The Late Great Planet Earth”).

•        Avanço de megaigrejas e pregadores globais.

Esses conteúdos tornam o apoio a Israel:

•        parte da identidade evangélica transnacional;

•        associado ao arrebatamento, à Grande Tribulação e à intervenção divina.

>>> 2010–2020 — Evangélicos e Política Internacional

# Mudanças marcantes:

•        A influência evangélica cresce no Brasil, África e América Latina.

• Israel se torna bandeira política de grupos conservadores.

<><> Peça 3 – Conib e federações: instrumentos políticos do bolsonarismo

E como tudo isso se reflete na comunidade judaica brasileira?

Benjamin Seroussi, diretor artístico da Casa do Povo e integrante do grupo Judeus Pela Democracia, tem sido uma voz crítica dentro da comunidade judaica brasileira. Ele questiona organizações como a CONIB (Confederação Israelita do Brasil), argumentando que frequentemente representam os interesses de uma elite econômica, não a diversidade da comunidade judaica. Segundo Seroussi, essas entidades se alinham politicamente à direita, posicionamento que não reflete a totalidade dos judeus brasileiros — embora sejam, inegavelmente, o grupo hegemônico, a nova cara da comunidade judaica no país.

Um de seus alertas centrais diz respeito à banalização do termo “antissemitismo” e ao perigo de utilizá-lo para silenciar críticas legítimas ao governo de Israel ou ao sionismo. Seroussi defende que é possível criticar ações do Estado israelense sem ser antissemita, e adverte contra o uso político do trauma histórico judaico.

Entretanto, consolidou-se na comunidade judaica brasileira um grupo de ultradireita bolsonarista que passou a empregar indistintamente a acusação de antissemitismo como arma retórica contra qualquer crítico da guerra em Gaza — sejam judeus ou gentios. São defensores incondicionais de Netanyahu que justificam o genocídio em Gaza com base em narrativas que rivalizariam com o gabinete do ódio de Bolsonaro em desinformação: a culpa pela morte de crianças palestinas seria dos terroristas que se esconderam atrás delas; a interrupção de ajuda humanitária a Gaza ocorreria porque o Hamas rouba os mantimentos; quem critica as ações em Gaza é antissemita porque não critica outros conflitos em andamento.

O patrulhamento não poupa ninguém. Na missa dos 50 anos da morte de Vladimir Herzog, o acaso me fez sentar ao lado de Cláudio Lottenberg, presidente da CONIB. Foi um encontro civilizado, em que chegamos a trocar contatos de WhatsApp. Quando comentei o episódio em um grupo, o empresário Sérgio Ezenberg imediatamente correu para “denunciar” o ocorrido à própria CONIB — uma comprovação do radicalismo irracional que tomou conta de setores da comunidade.

Famílias tradicionais da colônia que não apoiaram o genocídio em Gaza passaram a ser mal vistas. Judeus progressistas relatam o desconforto de serem criticados pela própria família, que julga suas posições contrárias aos interesses da comunidade judaica.

É esse radicalismo cego que levou a CONIB a exigir censura de professores na USP e na PUC-SP, a pressionar o UOL para demitir Jamil Chade, seu colunista mais relevante, e a Folha para demitir o jornalista esportivo Juca Kfouri.

No fundo, trata-se da instrumentalização do antissemitismo em favor de uma causa menor: o apoio incondicional ao bolsonarismo e aos governadores de direita. Esse talvez seja o maior crime que o bolsonarismo judaico está cometendo contra a própria causa do judaísmo.

 

Fonte: Jornal GGN

 

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