Luís
Nassif: Como o bolsonarismo judaico instrumentalizou o antissemitismo
A CONIB
(Confederação Israelita do Brasil) deu demonstração maiúscula de seu poder
político e de seu alinhamento com o autoritarismo bolsonarista – com o qual tem
afinidades. Conseguiu a demissão de Jamil Chade, principal colunista da UOL, e
Juca Kfouri, colunista de esportes da Folha, por tratar como genocídio o
genocídio de Gaza.
É
curiosa essa atuação. A base do antissemitismo sempre foi a influência de
comunidades judaicas, aliando poder econômico à influência política e
expondo-se a teorias conspiratórias que atravessaram os séculos.
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Peça 1 – As teorias conspiratórias antissemitas
Na
adolescência, chegaram às minhas mãos dois livros conspiratórios, os
“Protocolos dos Sábios de Sião”, e “Brasil, República de Banqueiros”, de
Gustavo Barroso.
Eram
livros profundamente antissemitas, colocando os judeus no centro de uma
conspiração global. Não batia com seu Abraham Setzman, judeu de Ribeirão Preto
amigo da família, nem com as senhorinhas da Casa Bela, de Poços de Caldas.
Com o
amadurecimento intelectual, as teorias conspiratórias baseadas no preconceito
vão perdendo espaço. Mas é pedagógico compará-las com as teorias conspiratórias
da ultradireita.
As
principais teorias conspiratórias dos “Protocolos” eram as seguintes:
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1. Conspiração Global para Dominação Mundial
Judeus
reunidos em um “conselho secreto” planejariam assumir o controle político
global, destruir governos, manipular crises e submeter todos os povos.
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2. Controle da Imprensa e da Comunicação
Os
“sábios de Sião” supostamente controlariam jornais, editoras, jornais
comunitários, rádios e (no delírio atualizado) redes sociais.
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3. Controle do Sistema Financeiro Internacional
O
documento inventa um suposto projeto judaico de dominar bancos, manipular
moedas, controlar reservas internacionais, provocar crises e pânicos
financeiros.
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4. Promoção do Liberalismo Moral para “Enfraquecer a Sociedade”
Os
Protocolos afirmam que judeus incentivariam secularização, emancipação
feminina, educação universal, liberdade de expressão, movimentos sociais, para
“corromper” instituições tradicionais.
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5. Implantação de Um Governo Mundial Único
Ponto
máximo do delírio: um “rei judeu” governaria o planeta após o suposto colapso
dos estados nacionais. Bate com as teorias conspiratórias atuais sobre a
globalização.
Menciono
essas pirações conspiratórias para mostrar as semelhanças com as teses
conspiratórias da ultradireita bolsonarista. O que alimentava a fantasia eram
as demonstrações de poder dos Rothschild, dos Sulzberger, que tornaram o The
New York Times o jornal mais influente do mundo, William Paley, da CBS, David
Sarnoff, da TCA/NBC, a família Warner, da Warner Bros, William Paley da CBS e
assim por diante.
No
Brasil, o bolsonarismo judaico passou a se valer do antissemitismo para montar
uma frente, mostrando poderio econômico para uma grande ofensiva em favor da
direita bolsonarista.
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Peça 2 – as teorias conspiratórias da ultradireita
De uns
anos para cá, ocorreu o fenômeno do uso da religião pela ultradireita, a volta
ao Velho Testamento e a piração maior, Israel como cumprimento de profecia
bíblica. Especialmente após a criação do Estado de Israel e da Guerra dos Seis
Dias, ocorreu um fenômeno simultâneo, um avanço da ultradireita em dois níveis.
Em um
nível, o novo evangelismo, baseado no Velho testamento, colocando Israel no
centro da salvação universal. De outro, grupos sionistas, espalhados por vários
países, engrossando a radicalização da ultradireita. É como se os sionistas
reescrevessem os Protocolos dos Sábios de Sião, colocando fantasmas
esquerdistas e terroristas mirins palestinos no lugar dos judeus.
Leia, a
propósito, o excelente artigo “A direita conservadora dos EUA rompe com o
sionismo cristão, por Mohammed Hadjab”, publicado no GGN.
Vamos a
uma linha do tempo para entender essa travessia surreal:
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1800–1880 — As Raízes: Sionismo Cristão Pré-Sionismo Judaico
Contexto:
Movimentos protestantes reformados no Reino Unido e EUA começam a interpretar
profecias bíblicas de forma literal.
É o
início do que mais tarde será chamado sionismo cristão — antes mesmo de Theodor
Herzl.
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1880–1917 — Do Sionismo Judaico à Declaração Balfour
#
Eventos centrais:
• 1897: Congresso Sionista de Herzl.
• Pastores protestantes britânicos
pressionam politicamente o governo.
• 1917: Declaração Balfour, que apoia um
“lar nacional judeu”.
#
Evangélicos pensavam:
• Retorno judaico = cumprimento profético.
• A criação futura de Israel era vista
como parte da restauração escatológica.
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1917–1948 — De Mandato Britânico ao Estado de Israel
# O que
muda:
• Crescem movimentos dispensacionalistas
nos EUA (como os seguidores da Bíblia de Scofield).
• Proliferam interpretações apocalípticas
ligadas a Israel.
#
Crenças marcantes:
• Israel seria restaurado antes da Segunda
Vinda.
• Judeus teriam papel central no “fim dos
tempos”.
• Pastores começam a enviar recursos e
missões para Jerusalém.
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1948 — Criação do Estado de Israel
# Marco
absoluto para os evangélicos.
Reações:
• 1948 é interpretado como profecia
cumprida.
• O apoio a Israel se torna doutrina para
uma parte grande do evangelicalismo.
• Surgem organizações “cristãs sionistas”.
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1967 — Guerra dos Seis Dias
#
Efeito nos evangélicos: transformador.
Por
quê?
• Jerusalém é reunificada sob controle
israelense.
• Muitos interpretam como “o relógio
profético acelerando”.
#
Narrativa dominante:
• Israel teria papel decisivo na Batalha
do Armagedom.
• Multiplicam-se livros, pregações e
congressos proféticos.
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1970–1990 — Ascensão da Direita Cristã nos EUA
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Fenômenos marcantes:
• Tele-evangelistas ganham alcance global.
• Pastores influenciam política externa
americana.
• Formam-se grupos como Christians United
for Israel (CUFI).
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Crenças comuns nesse período:
• Israel como “nação escolhida”.
• Judeus retornando à Terra como sinal da
“Última Geração”.
• Apoio incondicional ao Estado de Israel
como mandamento bíblico.
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1995–2010 — Era de Filmes, Livros e Cultura Pop Apocalíptica
Impacto
massivo de:
• “Left Behind” (Deixados para Trás) —
livros e filmes escatológicos.
• Hal
Lindsey (“The Late Great Planet Earth”).
• Avanço de megaigrejas e pregadores
globais.
Esses
conteúdos tornam o apoio a Israel:
• parte da identidade evangélica
transnacional;
• associado ao arrebatamento, à Grande
Tribulação e à intervenção divina.
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2010–2020 — Evangélicos e Política Internacional
#
Mudanças marcantes:
• A influência evangélica cresce no
Brasil, África e América Latina.
•
Israel se torna bandeira política de grupos conservadores.
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Peça 3 – Conib e federações: instrumentos políticos do bolsonarismo
E como
tudo isso se reflete na comunidade judaica brasileira?
Benjamin
Seroussi, diretor artístico da Casa do Povo e integrante do grupo Judeus Pela
Democracia, tem sido uma voz crítica dentro da comunidade judaica brasileira.
Ele questiona organizações como a CONIB (Confederação Israelita do Brasil),
argumentando que frequentemente representam os interesses de uma elite
econômica, não a diversidade da comunidade judaica. Segundo Seroussi, essas
entidades se alinham politicamente à direita, posicionamento que não reflete a
totalidade dos judeus brasileiros — embora sejam, inegavelmente, o grupo
hegemônico, a nova cara da comunidade judaica no país.
Um de
seus alertas centrais diz respeito à banalização do termo “antissemitismo” e ao
perigo de utilizá-lo para silenciar críticas legítimas ao governo de Israel ou
ao sionismo. Seroussi defende que é possível criticar ações do Estado
israelense sem ser antissemita, e adverte contra o uso político do trauma
histórico judaico.
Entretanto,
consolidou-se na comunidade judaica brasileira um grupo de ultradireita
bolsonarista que passou a empregar indistintamente a acusação de antissemitismo
como arma retórica contra qualquer crítico da guerra em Gaza — sejam judeus ou
gentios. São defensores incondicionais de Netanyahu que justificam o genocídio
em Gaza com base em narrativas que rivalizariam com o gabinete do ódio de
Bolsonaro em desinformação: a culpa pela morte de crianças palestinas seria dos
terroristas que se esconderam atrás delas; a interrupção de ajuda humanitária a
Gaza ocorreria porque o Hamas rouba os mantimentos; quem critica as ações em
Gaza é antissemita porque não critica outros conflitos em andamento.
O
patrulhamento não poupa ninguém. Na missa dos 50 anos da morte de Vladimir
Herzog, o acaso me fez sentar ao lado de Cláudio Lottenberg, presidente da
CONIB. Foi um encontro civilizado, em que chegamos a trocar contatos de
WhatsApp. Quando comentei o episódio em um grupo, o empresário Sérgio Ezenberg
imediatamente correu para “denunciar” o ocorrido à própria CONIB — uma
comprovação do radicalismo irracional que tomou conta de setores da comunidade.
Famílias
tradicionais da colônia que não apoiaram o genocídio em Gaza passaram a ser mal
vistas. Judeus progressistas relatam o desconforto de serem criticados pela
própria família, que julga suas posições contrárias aos interesses da
comunidade judaica.
É esse
radicalismo cego que levou a CONIB a exigir censura de professores na USP e na
PUC-SP, a pressionar o UOL para demitir Jamil Chade, seu colunista mais
relevante, e a Folha para demitir o jornalista esportivo Juca Kfouri.
No
fundo, trata-se da instrumentalização do antissemitismo em favor de uma causa
menor: o apoio incondicional ao bolsonarismo e aos governadores de direita.
Esse talvez seja o maior crime que o bolsonarismo judaico está cometendo contra
a própria causa do judaísmo.
Fonte:
Jornal GGN

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