quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Larissa Ramina: Por que a prisão de Jair Bolsonaro é um imperativo democrático

A tragédia nacional vivida durante o governo Jair Bolsonaro não se limita à tentativa de golpe de Estado que culminou no 08 de janeiro, embora esta represente o ápice simbólico de um projeto político que sempre flertou com a ruptura institucional.

O que se viveu entre 2018 e 2022 foi um processo sistemático de corrosão das bases materiais e imateriais da democracia e da soberania, um ataque deliberado ao tecido social, aos direitos fundamentais, à ciência, à cultura, às instituições e aos bens ambientais que compõem o patrimônio comum do Estado brasileiro. E não nos esqueçamos que foi a Operação Lava Jato, desastrosamente conduzida, que pavimentou o caminho para a ascensão de um governo de extrema-direita, com discurso autoritário e revisionista, que logo seria taxado de genocida por líderes internacionais diante do colapso sanitário e civilizatório imposto ao país.

A destruição ambiental, adotada como agenda de governo, não foi apenas consequência do negacionismo negligente — foi resultado de um conjunto de atos deliberados: desmonte dos órgãos de fiscalização, perseguição a servidores, estímulo aos garimpeiros ilegais, deslegitimação de tratados internacionais ambientais, flexibilização de normas que protegiam biomas inteiros.

A Amazônia ardeu, literalmente, diante da cumplicidade estatal. Povos originários foram abandonados à própria sorte, expostos ao avanço da mineração, da contaminação e das doenças. A omissão criminosa que resultou na morte de centenas de Yanomami é apenas um dos exemplos mais brutais de um governo que atacou a própria ideia de humanidade.

A violência contra a população negra se intensificou em meio a políticas de segurança baseadas na lógica do extermínio, enquanto discursos racistas e discriminatórios foram normalizados. Mulheres, comunidades LGBTI e populações vulneráveis foram alvos preferenciais de um governo que tratava direitos fundamentais como obstáculos ideológicos. O feminicídio disparou; a misoginia deixou de ser vício privado e tornou-se retórica de Estado.

Na educação, o ataque foi igualmente profundo: universidades públicas foram demonizadas, pesquisadores humilhados, bolsas cortadas, instituições científicas sucateadas. Gerações de futuros médicos, engenheiros, professores e cientistas tiveram suas trajetórias interrompidas. O apagão intelectual — planejado e celebrado por figuras do governo — comprometeu a produção de conhecimento e restringiu a autonomia nacional nas áreas de tecnologia, inovação e política científica.

Na saúde, o desmonte foi ainda mais dramático. A expulsão dos médicos cubanos deixou centenas de municípios sem atendimento básico, sobretudo comunidades indígenas e ribeirinhas. O SUS, patrimônio civilizatório brasileiro, foi atacado em seu financiamento e em sua capacidade operacional. E então veio a pandemia: uma gestão marcada pela sabotagem cotidiana das medidas sanitárias, pelo negacionismo, pelas campanhas contra a vacinação e pela recusa deliberada em adquirir imunizantes no momento adequado. Centenas de milhares de vidas foram sacrificadas à ideologia, à incompetência e ao cálculo político.

A cultura sofreu com censura velada e explícita: eliminação do Ministério da Cultura, editais barrados, artistas perseguidos, bibliotecas destruídas, museus abandonados. A produção audiovisual entrou em colapso diante da asfixia promovida pela máquina estatal.

Como quantificar tamanha destruição? Quanto valem as árvores derrubadas, as vidas perdidas, os filmes que não foram produzidos, os cursos que não se concretizaram, os talentos desperdiçados? Quanto vale a honra nacional manchada por um presidente subserviente a interesses estrangeiros, que sabotou o Itamaraty, alinhou-se ao que há de mais autoritário no cenário global e expôs o Brasil ao ridículo perante a comunidade internacional? Quanto vale uma soberania entregue voluntariamente diante de outras potências, inclusive por meio da submissão a agendas extraterritoriais?

Os danos do governo Bolsonaro são profundos, multidimensionais e de longa duração. Afetam o meio ambiente, a saúde, a educação, a cultura, a economia, o prestígio internacional, a democracia e a própria ideia de pertencimento coletivo. A tentativa de golpe de Estado foi apenas o ponto culminante de um projeto autoritário que vinha sendo construído dia após dia.

Por isso, quando se decretou a prisão preventiva, tecnicamente fundamentada pela cautela penal frente à provável tentativa de fuga, não se tratou de um ato de perseguição política, mas de um gesto necessário para restaurar a legalidade e reafirmar que nenhum líder está acima das instituições.

A responsabilização de Jair Bolsonaro como líder da trama golpista, muito em breve fundamento de sua prisão, não reparará as florestas destruídas, não devolverá as vidas perdidas para a COVID-19 ou para a violência, não reverterá integralmente o desmonte da educação e da ciência. Representa, antes, um marco simbólico e prova de funcionamento das instituições de justiça a favor da democracia, da soberania e do futuro do país.

Fazer justiça, neste caso, é mais que punir um indivíduo: é restaurar a confiança na ordem constitucional e reafirmar a dignidade de um país inteiro que sofreu profundamente. A prisão – ainda que preventiva – de Jair Bolsonaro inaugura não apenas um novo capítulo político, mas um compromisso com a memória, a verdade e a responsabilidade — condições essenciais para que o Brasil volte a caminhar de pé, com coragem e soberania.

•        A justiça é implacável com aqueles que antes se julgavam vencedores. Por  Paola Jochimsen

Nós, brasileiros, sentimos um alívio quase físico com a prisão de Bolsonaro. Depois de anos convivendo com um político medíocre, que destilou ódio sobre praticamente todas as esferas da sociedade brasileira, violando sem pudor o espírito do Código Penal, é impossível não respirar um pouco melhor.

Meu primeiro contato direto com essa figura política execrável foi na votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Entre tantos votos patéticos naquele dia, o que mais me chocou e que nunca esqueci foram as palavras dedicadas “à memória do coronel Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff ”, um torturador elogiado em rede nacional por um deputado. Chorei de ódio. Aquilo, por si só, já dizia tudo: o Brasil iria enfrentar anos tenebrosos pela frente.

A partir daí, Bolsonaro virou presença constante nos meios de comunicação, com participações grotescas em programas de auditório, onde despejava “opiniões” tão rasas quanto violentas. O que parecia um personagem folclórico e irrelevante acabou se transformando em candidato competitivo, até ocupar o cargo de presidente da República, embalado por uma mistura tóxica de ódio, fake news, Lava Jato e a prisão injusta de um ex-presidente. A narrativa “anticorrupção” abriu a estrada para o pior projeto político que o Brasil já viu em tempos recentes. A facada em Juiz de Fora, transformada em capital político, alimentou a pose de vítima e de “escolhido”, explorada até o limite.

Sua gestão desastrosa atingiu o auge durante a pandemia, quando mais de 700 mil pessoas perderam a vida enquanto o chefe de Estado zombava da ciência e das vítimas. “Vai ficar chorando até quando?”, disse ele sobre as mortes, como se fosse apenas um coveiro cansado de luto alheio. Foram milhares de sonhos e famílias destruídas, uma dor imensurável em meio ao caos. Não parecia haver solução. Mas depois de 580 dias de uma prisão injusta, Lula foi inocentado e a esperança voltou a brotar no coração de todos.

Na tentativa de se reeleger, veio mais uma campanha baseada em ódio, mentiras e ataques, inclusive tentando dificultar o voto de nordestinos. Mas, desta vez, não havia facada, nem clima de comoção nacional, nem o álibi de um “acidente” para blindá-lo de debates e confrontos públicos. Restou só o que ele sempre teve para oferecer: ressentimento, desinformação e violência política. Bolsonaro entrou para a história como o primeiro presidente da redemocratização a não conseguir se reeleger. Em seguida, assistimos à sua fuga acovardada, disfarçada de “férias” nos Estados Unidos e, depois, à tentativa de golpe de 8 de janeiro, seguida de mais ódio despejado sobre a população brasileira.

Muitos brasileiros duvidavam que ele um dia fosse realmente preso. Infelizmente a nossa história costuma ser generosa com poderosos. Não desta vez. A prisão domiciliar acendeu uma centelha de esperança. Claro, como sempre em torno dessa família, tentou-se transformar tudo em circo: vigília na porta, clima de espetáculo, ensaio de uma fuga fracassada. O enredo acabou de um jeito bem menos heroico: uma prisão preventiva não pelos inúmeros crimes do passado, mas pela tentativa patética de violar a tornozeleira eletrônica. A biografia de Bolsonaro se resume bem nisso: irresponsabilidade, covardia e vergonha para o Brasil. Vivemos um período de delírio coletivo. Mesmo que passasse o resto da vida preso, não conseguiria compensar o que fez com o povo brasileiro. Ainda assim, há um sentido de justiça histórica em ver esse desfecho, mesmo que seja só uma pequena fração da justiça que ele merece.

Volto ao fatídico ano de 2016. No seu primeiro discurso após o impeachment, Dilma Rousseff disse: “Não gostaria de estar no lugar dos que se julgam vencedores. A história será implacável com eles.” Sim, querida presidenta. Esperei quase dez anos para ver essa profecia começar a se cumprir. E ela começou. O Brasil viu Dilma, derrubada por um impeachment ilegítimo, ocupar um lugar de respeito no cenário internacional. Novamente presidenta, não do Brasil, mas do banco BRICS. Viu Lula provar sua inocência, recuperar seus direitos políticos e voltar à Presidência da República pelo voto popular. E agora o Brasil vê um dos seus mais ferrenhos algozes enfrentar a cadeia, com lugar reservado ao ostracismo nas páginas da história.

A história não apaga o golpe do impeachment, a prisão injusta, nem as mortes na pandemia. Mas, pela primeira vez em muito tempo, há um fio de esperança à vista: a ideia de que ódio, mentira e violência política podem, sim, ter consequências. E de que ninguém, por mais que se ache vencedor, está acima da justiça.

•        A prisão que expõe a doença da sociedade brasileira

A prisão de Jair Bolsonaro tem um peso simbólico profundo para o país. Depois de anos tensionando as instituições, atacando a democracia e insuflando pautas golpistas, sua detenção representa um alívio — um silêncio necessário para frear a articulação da extrema-direita.

Na Avenida Paulista, a comemoração veio em forma de roda de samba organizada pela União Nacional dos Estudantes (UNE), reunindo cerca de 500 pessoas. Do outro lado, alguns apoiadores do ex-presidente também estiveram presentes, mas sem força expressiva. E manifestações ocorreram também em outros estados, mostrando um ambiente nacional atento e dividido.

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O ponto central, no entanto, continua sendo a grande questão sem resposta: como é possível que um personagem tão desqualificado tenha chegado a liderar a extrema-direita brasileira — e, pior, ainda mantenha influência sobre setores da sociedade? Bolsonaro é a expressão de uma elite deformada, um tipo de lumpen-elite, lumpen-aristocracia, uma lumpen-burguesia capaz de produzir e sustentar uma figura inculta, violenta, misógina e racista. O fato de ter ocupado a Presidência da República e ainda conservar seguidores é, por si só, um escândalo histórico e social.

A permanência desse tipo de liderança revela uma ferida antiga e sempre aberta: a incapacidade das classes dominantes brasileiras de produzir um projeto nacional inclusivo, moderno e comprometido com a dignidade humana. Em vez disso, reproduzem um pensamento atrasado, dependente e profundamente autoritário, que identifica no brutalizado uma espécie de espelho — alguém capaz de expressar, sem filtro, o ressentimento, o ódio e o medo que essa elite jamais assume publicamente.

Essa elite fragmentada, esse agrupamento que pode ser descrito com precisão como uma lumpen-burguesia, nunca construiu valores republicanos sólidos. Não acredita na democracia, não confia na soberania popular e teme qualquer avanço civilizatório que amplie direitos. Por isso, adere com tanta facilidade a figuras grotescas que encarnam uma política do ressentimento. A liderança de Bolsonaro, nesse sentido, não é uma aberração isolada, mas o sintoma de uma doença social mais profunda.

Há também um elemento de abandono social que alimenta essa contradição. Décadas de políticas neoliberais deixaram parcelas imensas da população entregues ao desalento, ao desemprego, à insegurança material e existencial. Esse terreno fértil permitiu que discursos simplistas, violentos e mentirosos se enraizassem. Bolsonaro prosperou nesse vazio, oferecendo não soluções, mas inimigos e fantasmas. O fato de isso ainda ressoar mostra que a reconstrução do país exige muito mais do que punir indivíduos — exige enfrentar as bases que tornam possíveis esses falsos líderes.

 

Fonte: Brasil 247/Diálogos do Sul Global

 

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