Larissa
Ramina: Por que a prisão de Jair Bolsonaro é um imperativo democrático
A
tragédia nacional vivida durante o governo Jair Bolsonaro não se limita à
tentativa de golpe de Estado que culminou no 08 de janeiro, embora esta
represente o ápice simbólico de um projeto político que sempre flertou com a
ruptura institucional.
O que
se viveu entre 2018 e 2022 foi um processo sistemático de corrosão das bases
materiais e imateriais da democracia e da soberania, um ataque deliberado ao
tecido social, aos direitos fundamentais, à ciência, à cultura, às instituições
e aos bens ambientais que compõem o patrimônio comum do Estado brasileiro. E
não nos esqueçamos que foi a Operação Lava Jato, desastrosamente conduzida, que
pavimentou o caminho para a ascensão de um governo de extrema-direita, com
discurso autoritário e revisionista, que logo seria taxado de genocida por
líderes internacionais diante do colapso sanitário e civilizatório imposto ao
país.
A
destruição ambiental, adotada como agenda de governo, não foi apenas
consequência do negacionismo negligente — foi resultado de um conjunto de atos
deliberados: desmonte dos órgãos de fiscalização, perseguição a servidores,
estímulo aos garimpeiros ilegais, deslegitimação de tratados internacionais
ambientais, flexibilização de normas que protegiam biomas inteiros.
A
Amazônia ardeu, literalmente, diante da cumplicidade estatal. Povos originários
foram abandonados à própria sorte, expostos ao avanço da mineração, da
contaminação e das doenças. A omissão criminosa que resultou na morte de
centenas de Yanomami é apenas um dos exemplos mais brutais de um governo que
atacou a própria ideia de humanidade.
A
violência contra a população negra se intensificou em meio a políticas de
segurança baseadas na lógica do extermínio, enquanto discursos racistas e
discriminatórios foram normalizados. Mulheres, comunidades LGBTI e populações
vulneráveis foram alvos preferenciais de um governo que tratava direitos
fundamentais como obstáculos ideológicos. O feminicídio disparou; a misoginia
deixou de ser vício privado e tornou-se retórica de Estado.
Na
educação, o ataque foi igualmente profundo: universidades públicas foram
demonizadas, pesquisadores humilhados, bolsas cortadas, instituições
científicas sucateadas. Gerações de futuros médicos, engenheiros, professores e
cientistas tiveram suas trajetórias interrompidas. O apagão intelectual —
planejado e celebrado por figuras do governo — comprometeu a produção de
conhecimento e restringiu a autonomia nacional nas áreas de tecnologia,
inovação e política científica.
Na
saúde, o desmonte foi ainda mais dramático. A expulsão dos médicos cubanos
deixou centenas de municípios sem atendimento básico, sobretudo comunidades
indígenas e ribeirinhas. O SUS, patrimônio civilizatório brasileiro, foi
atacado em seu financiamento e em sua capacidade operacional. E então veio a
pandemia: uma gestão marcada pela sabotagem cotidiana das medidas sanitárias,
pelo negacionismo, pelas campanhas contra a vacinação e pela recusa deliberada
em adquirir imunizantes no momento adequado. Centenas de milhares de vidas
foram sacrificadas à ideologia, à incompetência e ao cálculo político.
A
cultura sofreu com censura velada e explícita: eliminação do Ministério da
Cultura, editais barrados, artistas perseguidos, bibliotecas destruídas, museus
abandonados. A produção audiovisual entrou em colapso diante da asfixia
promovida pela máquina estatal.
Como
quantificar tamanha destruição? Quanto valem as árvores derrubadas, as vidas
perdidas, os filmes que não foram produzidos, os cursos que não se
concretizaram, os talentos desperdiçados? Quanto vale a honra nacional manchada
por um presidente subserviente a interesses estrangeiros, que sabotou o
Itamaraty, alinhou-se ao que há de mais autoritário no cenário global e expôs o
Brasil ao ridículo perante a comunidade internacional? Quanto vale uma
soberania entregue voluntariamente diante de outras potências, inclusive por
meio da submissão a agendas extraterritoriais?
Os
danos do governo Bolsonaro são profundos, multidimensionais e de longa duração.
Afetam o meio ambiente, a saúde, a educação, a cultura, a economia, o prestígio
internacional, a democracia e a própria ideia de pertencimento coletivo. A
tentativa de golpe de Estado foi apenas o ponto culminante de um projeto
autoritário que vinha sendo construído dia após dia.
Por
isso, quando se decretou a prisão preventiva, tecnicamente fundamentada pela
cautela penal frente à provável tentativa de fuga, não se tratou de um ato de
perseguição política, mas de um gesto necessário para restaurar a legalidade e
reafirmar que nenhum líder está acima das instituições.
A
responsabilização de Jair Bolsonaro como líder da trama golpista, muito em
breve fundamento de sua prisão, não reparará as florestas destruídas, não
devolverá as vidas perdidas para a COVID-19 ou para a violência, não reverterá
integralmente o desmonte da educação e da ciência. Representa, antes, um marco
simbólico e prova de funcionamento das instituições de justiça a favor da
democracia, da soberania e do futuro do país.
Fazer
justiça, neste caso, é mais que punir um indivíduo: é restaurar a confiança na
ordem constitucional e reafirmar a dignidade de um país inteiro que sofreu
profundamente. A prisão – ainda que preventiva – de Jair Bolsonaro inaugura não
apenas um novo capítulo político, mas um compromisso com a memória, a verdade e
a responsabilidade — condições essenciais para que o Brasil volte a caminhar de
pé, com coragem e soberania.
• A justiça é implacável com aqueles que
antes se julgavam vencedores. Por Paola
Jochimsen
Nós,
brasileiros, sentimos um alívio quase físico com a prisão de Bolsonaro. Depois
de anos convivendo com um político medíocre, que destilou ódio sobre
praticamente todas as esferas da sociedade brasileira, violando sem pudor o
espírito do Código Penal, é impossível não respirar um pouco melhor.
Meu
primeiro contato direto com essa figura política execrável foi na votação do
impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Entre tantos votos patéticos
naquele dia, o que mais me chocou e que nunca esqueci foram as palavras
dedicadas “à memória do coronel Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma
Rousseff ”, um torturador elogiado em rede nacional por um deputado. Chorei de
ódio. Aquilo, por si só, já dizia tudo: o Brasil iria enfrentar anos tenebrosos
pela frente.
A
partir daí, Bolsonaro virou presença constante nos meios de comunicação, com
participações grotescas em programas de auditório, onde despejava “opiniões”
tão rasas quanto violentas. O que parecia um personagem folclórico e
irrelevante acabou se transformando em candidato competitivo, até ocupar o
cargo de presidente da República, embalado por uma mistura tóxica de ódio, fake
news, Lava Jato e a prisão injusta de um ex-presidente. A narrativa
“anticorrupção” abriu a estrada para o pior projeto político que o Brasil já
viu em tempos recentes. A facada em Juiz de Fora, transformada em capital
político, alimentou a pose de vítima e de “escolhido”, explorada até o limite.
Sua
gestão desastrosa atingiu o auge durante a pandemia, quando mais de 700 mil
pessoas perderam a vida enquanto o chefe de Estado zombava da ciência e das
vítimas. “Vai ficar chorando até quando?”, disse ele sobre as mortes, como se
fosse apenas um coveiro cansado de luto alheio. Foram milhares de sonhos e
famílias destruídas, uma dor imensurável em meio ao caos. Não parecia haver
solução. Mas depois de 580 dias de uma prisão injusta, Lula foi inocentado e a
esperança voltou a brotar no coração de todos.
Na
tentativa de se reeleger, veio mais uma campanha baseada em ódio, mentiras e
ataques, inclusive tentando dificultar o voto de nordestinos. Mas, desta vez,
não havia facada, nem clima de comoção nacional, nem o álibi de um “acidente”
para blindá-lo de debates e confrontos públicos. Restou só o que ele sempre
teve para oferecer: ressentimento, desinformação e violência política.
Bolsonaro entrou para a história como o primeiro presidente da redemocratização
a não conseguir se reeleger. Em seguida, assistimos à sua fuga acovardada,
disfarçada de “férias” nos Estados Unidos e, depois, à tentativa de golpe de 8
de janeiro, seguida de mais ódio despejado sobre a população brasileira.
Muitos
brasileiros duvidavam que ele um dia fosse realmente preso. Infelizmente a
nossa história costuma ser generosa com poderosos. Não desta vez. A prisão
domiciliar acendeu uma centelha de esperança. Claro, como sempre em torno dessa
família, tentou-se transformar tudo em circo: vigília na porta, clima de
espetáculo, ensaio de uma fuga fracassada. O enredo acabou de um jeito bem
menos heroico: uma prisão preventiva não pelos inúmeros crimes do passado, mas
pela tentativa patética de violar a tornozeleira eletrônica. A biografia de
Bolsonaro se resume bem nisso: irresponsabilidade, covardia e vergonha para o
Brasil. Vivemos um período de delírio coletivo. Mesmo que passasse o resto da
vida preso, não conseguiria compensar o que fez com o povo brasileiro. Ainda
assim, há um sentido de justiça histórica em ver esse desfecho, mesmo que seja
só uma pequena fração da justiça que ele merece.
Volto
ao fatídico ano de 2016. No seu primeiro discurso após o impeachment, Dilma
Rousseff disse: “Não gostaria de estar no lugar dos que se julgam vencedores. A
história será implacável com eles.” Sim, querida presidenta. Esperei quase dez
anos para ver essa profecia começar a se cumprir. E ela começou. O Brasil viu
Dilma, derrubada por um impeachment ilegítimo, ocupar um lugar de respeito no
cenário internacional. Novamente presidenta, não do Brasil, mas do banco BRICS.
Viu Lula provar sua inocência, recuperar seus direitos políticos e voltar à
Presidência da República pelo voto popular. E agora o Brasil vê um dos seus
mais ferrenhos algozes enfrentar a cadeia, com lugar reservado ao ostracismo
nas páginas da história.
A
história não apaga o golpe do impeachment, a prisão injusta, nem as mortes na
pandemia. Mas, pela primeira vez em muito tempo, há um fio de esperança à
vista: a ideia de que ódio, mentira e violência política podem, sim, ter
consequências. E de que ninguém, por mais que se ache vencedor, está acima da
justiça.
• A prisão que expõe a doença da sociedade
brasileira
A
prisão de Jair Bolsonaro tem um peso simbólico profundo para o país. Depois de
anos tensionando as instituições, atacando a democracia e insuflando pautas
golpistas, sua detenção representa um alívio — um silêncio necessário para
frear a articulação da extrema-direita.
Na
Avenida Paulista, a comemoração veio em forma de roda de samba organizada pela
União Nacional dos Estudantes (UNE), reunindo cerca de 500 pessoas. Do outro
lado, alguns apoiadores do ex-presidente também estiveram presentes, mas sem
força expressiva. E manifestações ocorreram também em outros estados, mostrando
um ambiente nacional atento e dividido.
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O ponto
central, no entanto, continua sendo a grande questão sem resposta: como é
possível que um personagem tão desqualificado tenha chegado a liderar a
extrema-direita brasileira — e, pior, ainda mantenha influência sobre setores
da sociedade? Bolsonaro é a expressão de uma elite deformada, um tipo de
lumpen-elite, lumpen-aristocracia, uma lumpen-burguesia capaz de produzir e
sustentar uma figura inculta, violenta, misógina e racista. O fato de ter
ocupado a Presidência da República e ainda conservar seguidores é, por si só,
um escândalo histórico e social.
A
permanência desse tipo de liderança revela uma ferida antiga e sempre aberta: a
incapacidade das classes dominantes brasileiras de produzir um projeto nacional
inclusivo, moderno e comprometido com a dignidade humana. Em vez disso,
reproduzem um pensamento atrasado, dependente e profundamente autoritário, que
identifica no brutalizado uma espécie de espelho — alguém capaz de expressar,
sem filtro, o ressentimento, o ódio e o medo que essa elite jamais assume
publicamente.
Essa
elite fragmentada, esse agrupamento que pode ser descrito com precisão como uma
lumpen-burguesia, nunca construiu valores republicanos sólidos. Não acredita na
democracia, não confia na soberania popular e teme qualquer avanço
civilizatório que amplie direitos. Por isso, adere com tanta facilidade a
figuras grotescas que encarnam uma política do ressentimento. A liderança de
Bolsonaro, nesse sentido, não é uma aberração isolada, mas o sintoma de uma
doença social mais profunda.
Há
também um elemento de abandono social que alimenta essa contradição. Décadas de
políticas neoliberais deixaram parcelas imensas da população entregues ao
desalento, ao desemprego, à insegurança material e existencial. Esse terreno
fértil permitiu que discursos simplistas, violentos e mentirosos se
enraizassem. Bolsonaro prosperou nesse vazio, oferecendo não soluções, mas
inimigos e fantasmas. O fato de isso ainda ressoar mostra que a reconstrução do
país exige muito mais do que punir indivíduos — exige enfrentar as bases que
tornam possíveis esses falsos líderes.
Fonte:
Brasil 247/Diálogos do Sul Global

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