Imigrantes
angolanos vivem sob ameaça de despejo no centro de São Paulo
No dia
em que um temporal cobriu São Paulo, com rajadas de vento de até 100 km/h, os
moradores da ocupação do edifício Granjal viram uma fumaça sair da caixa de luz
em frente ao prédio, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, na Bela Vista, na
capital paulista. Cerca de 100 imigrantes angolanos moram ali, desde 2022, em
condições precárias.
São 60
famílias, compostas, em média, por quatro a cinco pessoas, que ocupam 50
apartamentos, dividindo ambientes com cortinas e placas de madeira. Eles
chegaram ao Brasil fugindo da instabilidade política e econômica no seu país.
Mas,
mesmo após cruzar o oceano Atlântico, a incerteza ainda domina a vida das
famílias. Há um ano, elas estão sob ameaça de despejo. “Ficamos nesse
desespero, não conseguimos dormir direito, porque a gente não sabe [a data para
desocupar o prédio]; a qualquer momento, a polícia pode bater para a gente
sair. Não estamos em paz, eu não desejo isso para ninguém”, conta Paulina
Sebastião, 43 anos, moradora do Granjal desde 2023.
O
prédio é alvo de uma disputa judicial, desde 2021, quando a família Bomfim de
Carvalho, proprietária do imóvel, entrou com um processo de reintegração. Os
angolanos que moram no Granjal não são imigrantes ilegais, segundo informações
dos órgãos públicos consultados pela reportagem. Ainda assim, em maio de 2025,
a juíza Camila Franco, da 21ª Vara Cível de São Paulo, sentenciou a
desocupação, citando as políticas anti-migratórias do presidente dos Estados
Unidos, Donald Trump.
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Por que isso importa?
• Ordem de despejo das famílias angolanas
do edifício Granjal expõe a falta de políticas públicas de moradia e integração
para imigrantes em São Paulo;
• Caso revela como decisões judiciais e
omissões do poder público podem violar direitos básicos garantidos pela
Constituição e pela Lei de Migração.
“Lamentando-se
o grave problema social, porém, as políticas públicas sofrem os efeitos e não
podem pagar a conta destes males; inclusive o governo americano atualmente
decretou tolerância zero para imigrantes ilegais”, escreveu.
Para o
advogado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, Eduardo Abramowicz, a
argumentação da juíza, que citou políticas antimigração de Trump na ordem de
despejo, fere direitos fundamentais.
“Adotar
como referência a postura americana de migração — com prisões arbitrárias,
deportações em massa em condições precárias e não observação do devido processo
legal — não me parece observar o respeito aos direitos como o direito à
moradia, a necessidade de cumprimento da função social ou aspectos
urbanísticos, como o zoneamento.”
A
reportagem pediu um esclarecimento ao Tribunal de Justiça de São Paulo sobre a
postura da juíza; porém, a instituição afirmou que “os magistrados têm
independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e
seu livre convencimento.”
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Puxadinho
A
refugiada Elisa José, 42 anos, que vive há quase dez anos no Brasil com três
filhos, é uma das moradoras do prédio. Nem todos os apartamentos possuem
banheiro, e as pessoas precisam dividir os lavabos adaptados com chuveiro no
corredor. Por ser uma das moradoras antigas — ela está no Granjal desde 2022 —
conseguiu fazer um puxadinho, anexando o banheiro ao dormitório.
Como
ela não consegue trabalhar por questões de saúde, a família sobrevive com a
renda de aproximadamente R$ 300 do filho mais velho, que trabalha como
cabeleireiro, e de doações da vizinhança. Ela recebia Bolsa Família, que foi
bloqueado depois que faltou ao atendimento. “No dia em que fui resolver, quase
caí pelo caminho [devido à doença]”, conta.
Segundo
Elisa, os moradores não foram ouvidos nem notificados de audiências de
reintegração de posse do prédio. Eles só tomaram conhecimento da ordem de
despejo em outubro de 2024, quando se mobilizaram para entender o processo.
“Ninguém veio aqui, tudo estava em silêncio. O advogado que estava no processo
disse que tentaria nos ajudar, mas avisou: ‘Vocês não têm mais direito
nenhum’.”
“O que
faz uma pessoa morar numa ocupação é a dificuldade. Você ganha pouco, precisa
pagar luz, água, colocar comida dentro de casa. Não dá para morar numa casa
normal e pagar tudo com aquele dinheiro. Eu vou ficar sem nada se eu estiver
num lugar em que vou ter que pagar ônibus e metrô. É por isso que a maioria dos
estrangeiros quer morar perto do centro, para conseguir um emprego mais fácil”,
diz Elisa.
Os
autores do processo, Mariana Roggero e seus irmãos, afirmam que não foi
possível citar os atuais moradores por conta da rotatividade dos ocupantes no
prédio. Também alegam que as famílias não são vulneráveis, pois pagariam um
valor de contribuição e manteriam quatro empresas registradas no endereço.
Essas alegações foram rejeitadas pela Justiça.
“O
imóvel é ocupado por mais de 100 pessoas. Não seria possível traçar o perfil da
ocupação com base numa suposta foto de um suposto ocupante e não é possível
concluir que a abertura de empresa ali implicaria na inexistência de
vulnerabilidade”, explica a defensora pública Eleonora Nanni Lucenti.
A
Defensoria Pública, que passou a atuar no caso em 2022, afirma que cabia à
Justiça intimar os moradores. Em agosto deste ano, a Defensoria apresentou um
recurso para adiar o cumprimento da decisão do tribunal e dar mais tempo para
as famílias se prepararem. O principal argumento é que a prefeitura não fez um
mapeamento aprofundado da situação dessas famílias e quais instalações poderiam
recebê-las. Segundo Lucenti, a data para remoção dos ocupantes do Granjal é
incerta: “Essa decisão pode sair amanhã, como daqui a um ano. É uma coisa
completamente imprevisível.”
Mesmo
com tentativas de negociação e propostas de pagamento de aluguel para os
proprietários — que foram recusadas pela família Bomfim —, a juíza Camila
Franco manteve a decisão de despejo, que poderá ser cumprida com o uso de força
policial a qualquer momento.
A
jornalista Mariana Roggero, principal representante dos espólios da família,
afirma que, entre 1980 e 1990, o imóvel foi alugado pelo governo paulista e,
depois, pela Faculdade Paulista de Artes, despejada em 2020 por falta de
pagamento. Segundo relata, entre os meses que o prédio ficou desocupado,
pessoas ligadas ao Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM) teriam começado
a ocupar o prédio.
Em
nota, a Prefeitura de São Paulo informou que o edifício e a ação de desocupação
tratam de um imóvel particular, mas que o município tem acompanhado as
negociações conduzidas pelo Judiciário para buscar uma solução consensual.
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Famílias em busca de uma vida melhor
As
décadas de gestão do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) foram
marcadas por escândalos de corrupção envolvendo elementos centrais do partido,
além de altos índices de desemprego e inflação. Ainda hoje, um terço da
população angolana vive abaixo da linha da pobreza.
Entre
julho e agosto de 2025, o aumento do preço do gasóleo provocou uma onda de
protestos de grande escala, liderados por jovens e trabalhadores informais, que
foram reprimidos violentamente pela polícia, deixando dezenas de mortos e mais
de mil presos. Durante as entrevistas para esta reportagem, poucas pessoas se
sentiram confortáveis em falar sobre a situação política do país, em razão da
perseguição que ainda ocorre em Angola.
Paulina
Sebastião chegou ao Brasil em 2015 com seu marido e filho mais velho, quando a
perseguição política contra ativistas de oposição ao MPLA se acirrou e ela
começou a sofrer ameaças em razão de sua relação com representantes desses
grupos de protesto. “Em Angola, quando você não faz parte do governo que está
no poder, tem sempre perseguição”, diz.
Depois
de imigrar, o casal decidiu seguir por caminhos distintos, e Paulina passou a
morar em um centro de acolhida localizado na Rua da Abolição, no centro de São
Paulo. Paulina morou em diferentes imóveis na tentativa de equilibrar as
despesas com os filhos e o aluguel. “Imagina, alugar um quarto de R$800, com
salário, com filho, alimentação, é muita coisa”, conta.
Paulina,
o atual marido e seus três filhos sentem que morar na ocupação do Granjal é a
única opção possível, já que ela não consegue trabalhar em razão de uma
tendinite aguda nos pulsos. Segundo ela, apesar de já ter olhado prédios ao
redor, todas as ocupações próximas estão lotadas.
“Se
dessem tempo para a gente poder se preparar. Pelo menos a gente conseguiria ir
atrás de outras ocupações ou ver qual é o bairro mais barato. Normalmente, as
ocupações que invadiram agora, amanhã já não têm espaço, porque é muita gente;
o aluguel não tá fácil”, diz Paulina.
Outra
moradora do Granjal, Mena José, 40 anos, diz que vive com medo do despejo. “É
R$ 1,2 mil para cima em um quarto. Se pelo menos dessem o dia [da desocupação],
íamos estar mais cientes, mais preparados. [Isso] cria uma angústia muito
grande, é uma coisa que tira o sono, uma aflição enorme”, diz.
Acompanhada
dos filhos e do companheiro, Mena chegou ao Brasil em 2016. Por cinco anos,
conseguiu morar de aluguel com a família, principalmente porque tinha a ajuda
do salário do ex-marido, que se esquivou das responsabilidades paternas.
Atualmente, Mena conseguiu um emprego como auxiliar de cozinha na região da
Lapa. Enquanto trabalha, a filha mais velha, de 14 anos, ajuda a cuidar dos
três irmãos mais novos.
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Sem água e sem perspectivas
No
final de outubro de 2025, quando a reportagem foi ao Granjal pela última vez, a
água no prédio tinha sido cortada. Segundo as moradoras, as primeiras faturas
de água vinham com um valor acessível, de R$ 65, porém, com o tempo, elas
aumentaram e chegaram a R$ 20 mil. Segundo Mariana Roggero, proprietária do
prédio, há um vazamento, o que poderia justificar as contas na casa dos
milhares.
Para
que possam ter água para tomar banho ou fazer comida, as 60 famílias vivem uma
rotina de racionamento: a cada três dias sem ligar a água, conseguem encher o
tanque e acionar a bomba d’água por uma hora. No apartamento de Mena, há uma
pilha com seis ou sete grandes baldes vazios.
“Quem
mora em cima sofre mais”, diz Elisa. Agentes de saúde ouvidos pela reportagem
disseram que já atenderam três mulheres grávidas no prédio, que estavam morando
no décimo andar, o que dificultava o acesso às consultas médicas. Quando estava
grávida, Paulina — que teve uma gestação de risco da filha, Zelda — não podia
subir nem descer as escadas, mas, nem sempre era possível evitar. “Quando ia
para a consulta, tinha que descer”, lembra.
Atualmente,
a capital paulista tem cinco centros de acolhimento, sendo a Casa de Assis o
mais próximo ao edifício Granjal. Segundo a prefeitura, esses equipamentos
totalizam 900 vagas para imigrantes. Contudo, para Elisa, Mena e Paulina, ir
para os abrigos não é uma opção, principalmente se tiverem que se separar dos
filhos. Elas contam que a vida nos abrigos era complicada, tendo presenciado
agressões físicas e furtos por parte das pessoas que moravam lá.
A
Secretaria Municipal de Habitação não oferece benefícios para os ocupantes de
moradias irregulares, como auxílio-aluguel, por exemplo. “A única possibilidade
são os abrigos provisórios. A alternativa que a Prefeitura oferece é inviável.
Uma família não vai morar num abrigo. Existe algum abrigo que atenda um casal
com filhos ou uma família grande?”, questiona a defensora pública.
Elisa,
que já morou em um abrigo da prefeitura, disse que, em alguns locais, pedem que
as mães com bebês saiam de seus quartos pela manhã e só retornem ao anoitecer.
“Eles só davam um pão para a gente, tinha que comer a comida de dois ou três
dias. Eu prefiro ficar na rua, com meus três filhos, do que voltar para lá”,
disse.
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Imigrantes enfrentam preconceito
O
racismo e a xenofobia marcam as histórias dos imigrantes que moram na ocupação
do Granjal. Elisa conta que seu filho mais velho, João, foi chamado de “macaco”
na escola. Em outra situação, ao procurar emprego, ela descobriu que o endereço
informado por um funcionário de uma loja no shopping próximo ao Theatro
Municipal era de um zoológico.
Para o
professor Edmilson Garcia, da Universidade de Integração Intelectual da
Lusofonia Afrobrasileira (UNILAB), o preconceito molda a experiência dos
imigrantes africanos no Brasil. “Por mais que a gente fale português, até a
língua ainda é uma barreira. Uma pessoa de fora, que não fala exatamente a
língua nativa, tem nela uma forma de pertencimento e de exclusão.”
Também
angolano, Garcia chegou ao Brasil há dez anos, com bolsa de estudos, e
trabalhou na ONG Educação Sem Fronteiras, que ensina português a imigrantes a
partir de temas práticos, como os tipos de documentação e a validação de
diplomas universitários. “Muitos vêm com formação do seu país, mas a validação
ainda é difícil. Muitas vezes não há vagas suficientes, e essas pessoas acabam
no trabalho informal”, explica.
Em meio
à ameaça de despejo pela força, Elisa lamenta as dificuldades que tem passado
desde que saiu de Angola. “Eu tinha tudo, agora não temos nada”, e acrescenta:
“Se eles vão tirar a gente, pelo menos a prefeitura poderia ajudar com um
auxílio de casa. Demora anos para oferecerem o Minha Casa, Minha Vida para a
gente.” Desde que os imigrantes atendam aos mesmos requisitos que os
brasileiros — como comprovação de renda, não possuir outro imóvel e estar
cadastrados no CadÚnico, eles podem participar dos programas de assistência
social em São Paulo.
Mena,
que também já entrou na fila do programa, ainda não teve resposta. Segundo o
Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo (NHABURB), já foram feitos
pedidos de acesso à fila dos programas de habitação; porém, o núcleo afirma que
esses acessos têm sido negados pelos responsáveis.
A
Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB) participou de reuniões com propostas
de atendimento habitacional às famílias, e equipes da Secretaria Municipal de
Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) estiveram no local em maio de
2025, identificando 58 famílias cadastradas no CadÚnico, com documentação
regular e crianças matriculadas em escolas públicas.
A
Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) informou que tem
ampliado a rede de apoio à população imigrante, com mais de 46 mil atendimentos
desde 2020 no Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (CRAI Oriana
Jara). A prefeitura também mantém o CRAI Móvel, que percorre diferentes regiões
da cidade e oferece cerca de 900 vagas em centros de acolhimento voltados a
imigrantes.
Além de
solicitar entrevista com a OSCIP responsável pela gestão do CRAI e da Casa de
Assis, a reportagem pediu uma visita às instalações físicas de ambas as
unidades. A prefeitura disse não haver funcionários disponíveis para acompanhar
a agenda durante as tratativas, que duraram duas semanas.
Para a
ativista e ex-secretária de direitos humanos de São Paulo, Soninha Francine,
faltam programas habitacionais adaptados às necessidades dos imigrantes, que
incluem redes de apoio, serviços e acesso ao trabalho. “O que dá para fazer é
criar um programa de locação, ou melhor, ampliar o programa de locação social
para essas pessoas que têm capacidade de fazer um pagamento mensal e estão
dispostas a isso. Uma outra possibilidade — mas essa também bem arriscada
juridicamente falando — é conceder o auxílio Reencontro para que essas pessoas
continuem morando onde estão.”
Rafael
Negreiros, da Defensoria Pública, lembra que São Paulo não possui uma política
habitacional efetiva. “Temos uma política de expansão urbana, não de habitação.
O Plano Local de Habitação de interesse social de 2016 foi enviado à Câmara e
nunca foi aprovado.”
Atualmente,
Rafael coordena o Observatório das Comunidades, ligado ao NHABURB. O grupo
nasceu de demandas dos movimentos de moradia e busca atuar diretamente nas
comunidades. No caso dos imigrantes angolanos, o Observatório informou que está
tentando aprofundar o diálogo com o Centro de Referência e Atendimento para
Imigrantes (CRAI) Oriana Jara, unidade próxima à ocupação do Granjal. “O poder
público deveria olhar essas pessoas não como problema, mas como fonte de
contribuição para a sociedade brasileira”, avalia Garcia.
O
artigo 5º da Constituição Federal garante aos refugiados e imigrantes em
território nacional os mesmos direitos que cidadãos brasileiros, como o direito
à segurança e à moradia. Enquanto isso, a Lei de Refúgio nº 9.474/1997 confere
aos refugiados o pleno acesso ao trabalho formal e aos serviços públicos, como
assistência social. Vigente desde 2017, a Lei de Migração estipula o princípio
de universalidade dos direitos humanos, além da difusão de garantias para
imigrantes. Inclusive, sendo garantido pelo Estado aos pais de nascidos no
Brasil, mesmo sendo imigrantes, os mesmos direitos que os brasileiros.
Em
outubro de 2025, o Governo Federal publicou o decreto que institui a Política
Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia. Com a proposta de coordenar e
articular ações setoriais entre as esferas federais, estaduais e municipais, o
decreto reconhece a população migrante, refugiada e apátrida como propulsora do
desenvolvimento econômico e social do país. Além disso, passa a valorizar o
enraizamento comunitário na implementação de mecanismos de promoção da migração
regular.
Fonte:
Por Renan Honorato, da Agencia Pública| Edição: Mariama Correia | Fotógrafo:
José Cícero

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