ORGANIZAÇÕES
CRIMINOSAS OU TERRORISTAS? O ataque à soberania chega à segurança pública
O PL
5582/2025, de relatoria do deputado Guilherme Derrite (PP-SP), propõe o Marco
Legal do Combate ao Crime Organizado. O texto original aborda temas como o
papel da Polícia Federal no combate às facções e a elevação de penas para
delitos contra o Estado e a segurança coletiva. Inicialmente, o texto propunha
a “equiparação funcional típica” das atividades de organizações criminosas às
atividades de organizações terroristas, por meio da inclusão das modalidades
criminosas na Lei nº 13.260/2016 (Lei Antiterrorismo).
Depois
de muitas críticas, o relator recuou na versão mais recente de seu parecer,
excluindo a equiparação das organizações criminosas a grupos terroristas. Mas a
questão está longe de chegar a um fim: o líder do Partido Liberal, Sóstenes
Cavalcante, afirma que não abrirá “mão de enquadrar organizações como
terroristas”. A frustração da população brasileira quanto à segurança pública
também favorece a popularidade de discursos que se apoiam em narrativas de
terrorismo urbano. Ou seja, o debate fundamental sobre a equiparação
persistirá.
Assim,
é crucial esclarecer os efeitos dessa equiparação, que vão muito além do
direito interno.
Na
prática, abre-se margem para graves interferências indevidas de Estados
estrangeiros, sobretudo no contexto da administração Donald Trump.
Vale
fazer um panorama do tratamento global do combate ao terrorismo. Desde os
ataques de 11 de setembro de 2001, a legislação antiterrorismo mundial se
tornou mais rígida. Nos EUA, o Patriot Act não apenas restringiu as liberdades
individuais de seus próprios cidadãos, mas também serviu de pretexto para a
“Guerra ao Terror” e para as subsequentes invasões do Afeganistão e do Iraque.
Mas a
cruzada antiterrorista não parou por aí. Agora, ela chegou ao Mar do Caribe.
É
importante explicar que, enquanto questões de ordem pública são de competência
doméstica e, portanto, de responsabilidade das polícias, as questões de
segurança nacional estão na seara externa e pedem atuação militar. Nesse
contexto, fica claro que a designação de organizações como “terroristas” faz
parte de uma estratégia dos EUA de deslocar o arcabouço legal e político
aplicável: o problema é retirado do âmbito da ordem pública (portanto,
doméstica) e elevado à segurança nacional, o que legitima a ação militar na
esfera internacional.
É
exatamente essa a brecha que a administração Trump tenta explorar atualmente no
Mar do Caribe, utilizando o combate ao narcoterrorismo como justificativa para
atacar embarcações estrangeiras, chegando a afirmar que o país está em um
conflito armado.
Desde
setembro, as forças armadas dos EUA já mataram dezenas de pessoas (cidadãos
colombianos, equatorianos e venezuelanos) em ataques a embarcações na América
do Sul. O governo afirma que as vítimas eram membros de organizações
narcoterroristas, como o colombiano Exército de Libertação Nacional (ELN) e o
venezuelano Tren de Aragua, ambos designados pelos EUA como organizações
terroristas estrangeiras. Tais ações, realizadas sob o pretexto de ter como
alvos narcoterroristas, negam qualquer direito de defesa a esses indivíduos,
visto que qualquer prova de sua atuação é destruída no próprio ataque. O
governo chega a se referir aos tripulantes mortos como “combatentes ilegais”, o
que, na prática, retira as proteções devidas a civis e a prisioneiros de
guerra, sem que haja apresentação de provas de sua filiação criminosa ou
terrorista.
O
governo Trump afirma que os ataques ocorreram em águas internacionais, o que é
negado, por exemplo, pelo presidente da Colômbia, Gustavo Petro, que acusa os
EUA de terem invadido seu território. Da mesma forma, o presidente venezuelano,
Nicolás Maduro, indiciado por narcoterrorismo no primeiro mandato de Trump,
afirma que tais ataques são parte da contínua tentativa dos EUA de forçar uma
mudança de regime em seu país.
O
Secretário do Departamento de Guerra dos EUA, Pete Hegseth, não alivia a
retórica, defendendo os ataques como ações em defesa da segurança nacional
contra “cartéis terroristas”. Em 1º de novembro, Hegseth declarou que os EUA
tratarão “esses narcoterroristas” exatamente como a Al-Qaeda. Em 7 de novembro,
afirmou: “Se vocês continuarem a traficar drogas letais – iremos matá-los.”
Outras
consequências de se considerar organizações criminosas como grupos terroristas
incluem ações de inteligência que violam a soberania nacional com base em mera
suspeita de envolvimento com essas organizações, ou até mesmo a possibilidade
de intervenções ou invasões estrangeiras sob alegações de que o governo local
não tem capacidade ou disposição para combater o terrorismo. A nomenclatura
“terrorista” ainda carrega um significativo soft power e facilita a associação
dessas organizações a grupos como a Al-Qaeda e o autointitulado Estado
Islâmico, atraindo maior aprovação da opinião pública. Essa equiparação,
portanto, coloca o combate ao crime organizado dentro da esfera da Guerra ao
Terror, o super trunfo dos EUA para justificar suas ações unilaterais ao redor
do mundo.
Podem
parecer consequências conspiracionistas. Entretanto, não podemos esquecer que,
há poucos meses, o deputado Eduardo Bolsonaro afirmou que “se o regime
brasileiro for consolidado e tiver uma evolução igual à da Venezuela” pode ser
necessária “a vinda de caças F-35 e de navios de guerra”. No mesmo sentido, seu
irmão, o Senador Flávio Bolsonaro, que preside atualmente a Comissão de
Segurança Pública do Senado, disse sentir inveja do bombardeio dos EUA a uma
embarcação no Pacífico, sugerindo que o mesmo ocorresse com barcos na Baía da
Guanabara
Paralelamente,
a porta-voz da Casa Branca mencionou que Trump não tem medo de usar força
militar em defesa da liberdade em relação ao Brasil. Completando o cenário
atual, o USS Gerald R. Ford, maior porta-aviões do mundo, acaba de chegar à
América Latina para atuar em operações de narcoterrorismo em nome dos EUA.
Vale
lembrar, também, que, no começo do ano, representantes do governo Trump
defenderam a classificação do PCC e do Comando Vermelho como terroristas. Não à
toa, a diplomacia brasileira reconhece o risco de que os Estados Unidos
utilizem o combate ao narcotráfico e a classificação de grupos como terroristas
para justificar operações militares na região.
Ainda,
a designação de organizações criminosas como terroristas vai de encontro ao
posicionamento já consolidado do Itamaraty sobre o tema.
Como
princípio, o Brasil considera como terrorista apenas organizações assim
designadas pelo Conselho de Segurança da ONU, quais sejam a Al-Qaeda, o
autointitulado Estado Islâmico e organizações e indivíduos a eles conexos ou ao
Talibã. Esse é um posicionamento de Estado, não de governo. Isso não impede que
o governo brasileiro classifique as ações uma organização fora dessa lista como
atos ou atentados terroristas. Para o Brasil, o combate ao terrorismo deve
fazer parte de uma abordagem holística, que leva em consideração os vínculos
existentes entre o terrorismo e seu financiamento, que podem incluir
manifestações do crime organizado transnacional, particularmente por meio do combate à lavagem de dinheiro.
O
debate em torno do PL Antifacção, portanto, revela uma perigosa interseção
entre a demagogia eleitoral e a ingenuidade jurídica. Ao ignorar a distinção
conceitual e abraçar a nomenclatura de “narcoterrorismo”, o projeto torna-se
uma armadilha à soberania brasileira, entregando aos EUA o super trunfo que
justifica suas ações unilaterais ao redor do mundo.
O
combate ao crime organizado é urgente. Porém, a escolha da melhor estratégia
para este fim não deve ser pautada por interesses eleitoreiros e não pode
ocorrer às custas da soberania brasileira.
• A LEI DEVE VALER PARA TODOS: Porque
bandido bom não é bandido morto. Por Maísa Sanches
Um
trabalhador de 32 anos. Nenhum antecedente. Um dia comum. De repente, mais de
60 inquéritos caem sobre ele.
Parece
cena de filme, mas não é. Essa realidade é mais corriqueira do que gostaríamos
de admitir. Nenhuma prova material. Nenhuma testemunha. Nenhum flagrante.
Apenas uma foto, uma imagem escolhida sem critério, sem cuidado, sem lei, em um
reconhecimento fotográfico irregular, feito em desacordo com o art. 226 do
Código de Processo Penal, o mesmo dispositivo que o Estado insiste em ignorar
há décadas.
Três
anos depois, esse homem sai da prisão com a alma em frangalhos, a vida
arruinada e o nome ainda sujo nos bancos de dados do Estado.
O caso
de Paulo Alberto da Silva Costa, absolvido por unanimidade pela 6ª Turma do
STJ, é o retrato mais cruel da disfuncionalidade do nosso sistema de Justiça
criminal.
Como
afirmou o ministro Rogério Schietti Cruz, não se trata de um erro isolado, mas
de um mecanismo que continua funcionando mesmo sabendo-se que destrói vidas
inocentes:
“É
preciso que os profissionais do direito sejam mais do que empáticos: sejam
responsáveis. Não estão lidando com papéis. Estão mantendo na prisão pessoas
inocentes.”
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A venda de Themis pesa
A deusa
da Justiça tem os olhos vendados por um motivo: a lei deve valer para todos.
Quando começamos a fazer exceções, o Direito deixa de ser escudo e vira arma.
O
advogado criminal não defende o crime, defende a legalidade. E a legalidade não
é favor, é dever constitucional. Sem ela, o inocente vira réu e o Estado,
algoz.
Quando
o Estado escolhe a quem aplicar a lei, o princípio da legalidade (art. 5º, II,
CF) se torna ficção. E quando a sociedade confunde defesa técnica com defesa do
crime, ela esquece que a Constituição protege o cidadão contra o Estado, não o
contrário.
Como
lembra Luigi Ferrajoli[1], o Direito Penal só é legítimo quando opera dentro de
“estritas garantias legais e processuais”. Fora disso, o que há é pura
violência institucional.
Advogado
criminalista não defende bandido. E bandido bom não é bandido morto, é bandido
que cumpriu sua pena, pagou pelo crime e volta ressocializado para a sociedade.
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O efeito dominó da irresponsabilidade
Mesmo
após o Tema 1.258 do STJ e a Resolução nº 484/2022 do CNJ, que proíbem o
reconhecimento fotográfico irregular, ainda há juízes, promotores e policiais
que insistem em condenar com base em um único ato inválido.
O art.
226 do CPP é cristalino: o reconhecimento de pessoas deve seguir procedimento
formal, sob pena de nulidade. Mas a rotina forense transformou esse comando
legal em mera sugestão.
Schietti
chamou isso pelo nome certo: “irresponsabilidade consciente”. Não é erro. É
escolha. Há gente sendo condenada sabendo-se que a prova é ilegal. Isso é mais
grave do que erro: é decisão deliberada de violar a lei.
E
quando o Estado escolhe ignorar a lei para manter alguém preso, ele abandona o
Estado de Direito e comete o crime que deveria combater.
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O custo humano da impunidade institucional
Enquanto
o cidadão aplaude o encarceramento em massa acreditando que “advogado
criminalista defende bandido”, ignora que essa satisfação corrompe a própria
proteção que alimenta. Aplaudir a prisão sem prova é assinar um cheque em
branco para o arbítrio. Hoje é o rosto daquela foto; amanhã pode ser o seu, o
da sua mãe, o do seu filho.
A
vingança pública cria uma cultura jurídica que autoriza a ilegalidade e
legitima o erro institucional.
O
advogado criminalista é, por excelência, o guardião da legalidade. Contra um
Estado poderoso, armado de procedimentos, algoritmos e aparato, temos apenas a
Constituição e a voz técnica do defensor. O criminalista não é advogado do
crime. É quem garante que as regras sejam aplicadas a todos, inclusive ao
acusado que a sociedade já condenou no tribunal da opinião pública.
Podemos
sentir repulsa pelo crime e exigir punição justa, mas a raiz do Estado de
Direito é que a lei vale para todos. Quando há ilegalidades, é o advogado que
falará por nós todos.
A
defesa do inimigo é o teste supremo da democracia. Se a sociedade fechasse os
olhos e aprovasse a execução sumária, Paulo já teria sido aniquilado pelo
estigma e pelos fatos aparentemente acumulados contra ele.
A
verdadeira pergunta que devemos fazer é: quem queremos ser? Uma sociedade que
exige provas, limites e responsabilidade, ou uma multidão que se alimenta da
violência institucional e chama isso de justiça?
Como
lembra Aury Lopes Jr.[2], “quando a Constituição deixa de valer para o culpado,
ela deixa de valer para todos.”
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A ADPF 347 já avisou
O
Supremo Tribunal Federal reconheceu, na ADPF 347, que o Brasil vive um Estado
de Coisas Inconstitucional no sistema prisional. Traduzindo: o próprio STF
admitiu que a Justiça brasileira viola sistematicamente a Constituição.
Mesmo
assim, a engrenagem segue girando, empilhando corpos e arruinando biografias em
nome de uma eficiência que tem cheiro de barbárie.
Como
ensina Eugenio Raúl Zaffaroni[3], “a seletividade penal é o mecanismo pelo qual
o Estado escolhe quem será o inimigo e quem poderá ser sacrificado para manter
a aparência de ordem.”
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A conta da impunidade institucional
Em
2025, o STJ registrou 234 concessões e provimentos sobre reconhecimento
irregular de pessoas 70 deles apenas no estado do Rio de Janeiro. Em 70% desses
casos, o Ministério Público opinou pela denegação da ordem. Ou seja: o erro não
é exceção. É método.
Cada
prisão injusta é um crime cometido pelo próprio sistema. Um crime sem pena. Um
crime com toga.
“Talvez
chegue o momento em que agentes públicos venham a ser civil, administrativa e
criminalmente responsabilizados.”, como diz o Ministro Rogério Schietti Cruz
Esse
momento chegou. Porque o verdadeiro estado de impunidade não está nas ruas.
Está nos tribunais que se recusam a enxergar o que a Constituição grita.
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Enquanto o Judiciário se cala, o silêncio é cúmplice
O caso
de Paulo Alberto é mais do que uma tragédia pessoal. É o retrato de um país que
aprendeu a conviver com a injustiça e a chamá-la de Justiça.
Não
basta reconhecer o erro. É preciso corrigir o vício que o produz todos os dias.
Cada sentença injusta é uma mancha na toga, uma ferida aberta no Estado de
Direito e, acima de tudo, uma assinatura coletiva. Porque a injustiça não
sobrevive sozinha: ela precisa da indiferença de quem assiste, comenta, aplaude
e depois muda de canal.
Enquanto
o cidadão pedir punição antes de pedir prova, o sistema continuará alimentando
a máquina da culpa. Enquanto o medo ditar a política criminal, a Constituição
será apenas um enfeite de discurso. E enquanto o ódio for a lente da sociedade,
o erro será sempre legítimo.
A venda
de Themis não caiu por acaso, foi arrancada pelo olhar da plateia. O inocente
continuará pagando a conta do espetáculo, e o Estado continuará errando com o
aplauso do público.
Chegou
a hora de entender que não existe justiça possível quando a barbárie é
coletiva. A responsabilidade não é só do juiz, do promotor ou do policial. É de
todos nós que, por covardia ou costume, deixamos de exigir o que a lei
prometeu: humanidade.
Porque
uma Justiça que enxerga demais e escolhe quem punir não é Justiça. É apenas o
reflexo de uma sociedade que se acostumou a ver sangue e a chamar isso de paz.
Fonte:
Por Victoria Moura Vormittag, no Le Monde

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