Governador
de SC defende exploração de bioma ameaçado com estudo pago por empresa autuada
O
governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL), usou argumentos de uma
auditoria paga por uma das maiores empresas de papel e celulose do país, a
Klabin, para defender a exploração dos chamados campos de altitude, um
ecossistema ameaçado da Mata Atlântica. A liberação da atividade beneficia
empresas de silvicultura do estado, incluindo a própria Klabin, já multada em
R$ 7,6 milhões justamente por desmatar áreas protegidas do bioma.
O apelo
de Mello foi apresentado em vídeo, acessado pela Agência Pública, ao Supremo
Tribunal Federal (STF) no âmbito de uma ação direta de inconstitucionalidade
proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR) a respeito de uma lei
estadual de Santa Catarina que classificaria como campos de altitude apenas os
ecossistemas localizados acima de 1,5 mil metros de altitude. A definição
contraria a Lei da Mata Atlântica, que prevê ambientes protegidos abaixo dessa
faixa.
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Por que isso importa?
• Governador apresentou dados distorcidos
ao STF para liberar exploração de bioma ameaçado que cobre menos de 2% do
território catarinense, tomando como base estudo bancado por empresa que será
beneficiada caso a liberação seja mantida.
No
vídeo, o governador afirma que, caso terras com mais de 400 metros de altitude
fossem consideradas campos de altitude e, por isso, passíveis de proteção
ambiental, “70% do território catarinense” e “90% dos municípios” seriam
impactados. As perdas, segundo Mello, seriam de R$ 10 bilhões no PIB estadual,
R$ 400 milhões na arrecadação tributária e quase 200 mil empregos.
Os
números apresentados por Jorginho Mello ao STF são arredondamentos das
estimativas da Tendências Consultoria, que não é citada nominalmente pelo
governador. O estudo, elaborado em maio de 2025, é refutado por especialistas
da área e por órgãos técnicos. A consultoria diz, no relatório, que foi
contratada pela Klabin e que os dados do dossiê foram fornecidos pela empresa.
Os
mesmos dados, sem fonte, aparecem em materiais de divulgação do próprio governo
de Santa Catarina. Já no texto do recurso enviado ao STF, o governo catarinense
cita o relatório das tendências como origem dos dados, mas omite a conexão do
estudo com a Klabin.
Apesar
de se declarar “referência mundial em desenvolvimento sustentável”, a Klabin
foi autuada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (Ibama) por desmatar 5 mil hectares do bioma para plantar pinus,
gênero de espécies de pinheiros usados nas indústrias de madeira e celulose, e,
em 2024, foi multada pelo órgão em R$ 7,6 milhões por plantar em uma área
protegida de 1,1 mil hectares, que também foi embargada pelo órgão ambiental.
Neste
ano, o Ibama voltou a constatar desmatamento em outros 3,8 mil hectares, mas a
Klabin obteve uma liminar que suspendeu as punições e também impediu o órgão
ambiental de aplicar mais multas e promover novas fiscalizações. A estimativa é
que as sanções chegariam a R$ 26,5 milhões. Apenas no terceiro trimestre de
2025, o lucro da Klabin foi de R$ 478 milhões.
Após o
vídeo de Jorginho Mello ser submetido ao STF, o ministro Gilmar Mendes pediu
informações adicionais sobre os dados apresentados de que “a restrição das
atividades agrícolas em áreas entre 400 e 1.500 metros de altitude” alcançaria
a maioria do território do estado, mas, até o momento, a gestão estadual não
prestou esclarecimentos.
Ainda
assim, em julho, Mendes suspendeu todos os processos envolvendo a situação, até
que o STF julgue definitivamente a matéria. O ministro atendeu ao pedido do
governador, que alega que o Ibama teria ignorado a legislação estadual e
autuado empresas que operam de acordo com ela. Na prática, enquanto não há
julgamento do mérito, as empresas continuam com permissão para explorar o
ecossistema ameaçado.
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Bioma raro em risco e na mira da desinformação
Os
campos de altitude são considerados um dos ecossistemas mais raros, diversos e
ameaçados do país, um lar para mais de 1,6 mil espécies de plantas. Um quarto
das dessa variedade é exclusiva do bioma, ou seja, só existe nele. No entanto,
essas regiões de mata estão sendo substituídas por monoculturas de pinus,
árvore exótica que oferece madeira leve a um baixo custo e que serve à
indústria do papel.
O
governador Jorginho Mello se baseou em informações incorretas para fazer a
defesa da exploração dos campos de altitude em pleito ao STF. As projeções da
Tendência Consultoria consideram um cenário hipotético de que todos os terrenos
com mais de 400 metros de altitude em Santa Catarina passariam a ser
embargados. No entanto, apesar de mais de 70% do solo catarinense estar em
altas altitudes, apenas uma parcela muito pequena seria passível de proteção de
fato.
Segundo
o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os campos de altitude
cobriam 11,1 mil quilômetros quadrados – o equivalente a 11,6% do estado. Boa
parte deles, porém, já foram devastados. De acordo com o Inventário Florístico
Florestal de Santa Catarina, programa do governo catarinense e da Universidade
Regional de Blumenau, ainda em 2010, a cobertura desse ecossistema alcançava
apenas 1,16% do território estadual, uma redução de 86% da área original. Não
há atualizações dessa estimativa desde então.
Em
outras palavras, segundo estimativas dos órgãos técnicos dos governos federal e
estadual, restrições ambientais considerando os campos de altitude seriam
limitadas a menos de 2% do estado, longe da marca dos 70% como informado pelo
governador. Além disso, a maioria dos terrenos protegidos estão em unidades de
conservação ou em locais de difícil acesso, de acordo com a Associação de
Preservação do Meio Ambiente e da Vida (Apremavi), ONG que atua na Mata
Atlântica desde 1987.
“A Lei
da Mata Atlântica só protege áreas com remanescente de vegetação nativa. Assim,
ao contrário do sugere o documento das tendências, áreas com silvicultura,
cultivos agrícolas, indústrias, cidades, enfim, tudo que já foi convertido, não
tem aplicação da lei, independente de altitude do terreno”, afirma o ex-diretor
do Departamento de Áreas Protegidas do Ministério do Meio Ambiente e professor
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) João de Deus Medeiros.
“Aparentemente
fizeram essa projeção absurda para criar um cenário falso, para gerar a
sensação de que a Lei da Mata Atlântica traz uma proteção exagerada que, se
cumprida, inviabiliza a economia do estado”, conclui Medeiros.
Em
julho, a revista Science publicou uma carta-denúncia alertando para o risco de
colapso dos campos de altitude nas próximas décadas. O texto é assinado por
especialistas da UFSC, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, da
Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul e outras instituições
de pesquisa e conservação ambiental e destaca que a região abriga 13 espécies
de pássaros e outros animais ameaçados de extinção e serve como repositor de
aquíferos do Brasil, Argentina e Uruguai.
De
acordo com a Associação Catarinense de Empresas Florestais, Santa Catarina é o
estado com maior área plantada de pinus, com 713,6 mil hectares. Segundo a
carta-denúncia publicada na Science, cerca de 50 mil hectares de campos de
altitude já foram convertidos em plantações de pinus entre 2008 e 2023, e o
processo tende a se agravar. O texto cita a Klabin como uma das responsáveis
pela destruição do bioma, considerado único no mundo.
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O que dizem os envolvidos
Em
nota, a Klabin nega irregularidades e diz que segue a legislação ambiental
vigente. “O documento [da consultoria Tendências] é de acesso público e informa
de maneira transparente, logo na página 2, que o contratante do estudo foi a
companhia. Da mesma forma, a empresa ressalta que todos os cálculos e
conclusões fazem uso de informações públicas e oficiais”, afirma.
“Importante
ressaltar ainda que as autuações mencionadas ocorreram depois que o Tribunal de
Justiça de Santa Catarina declarou a constitucionalidade do artigo que
estabeleceu os 1,5 mil metros de altitude, decisão ratificada pelo STF, em
2021, através de voto da ministra Rosa Weber, ambas decisões transitadas em
julgado”, continua a nota.
O Ibama
disse, em nota, que está analisando a decisão que determinou a suspensão dos
processos judiciais relacionados ao tema, até que o STF se manifeste de forma
definitiva sobre a matéria, e que cumprirá integralmente todas as determinações
judiciais.
Procurado
para comentar sobre o uso das conclusões de estudo financiado pela Klabin e as
divergências geográficas sobre os campos de altitudes apontadas, o governador
Jorginho Mello não respondeu até o momento. Em caso de manifestação, este
espaço será atualizado.
Fonte:
Por Amanda Audi, da Agencia Pública

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