quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Gaza sob bombas e inundações: "Esta paz é igual à guerra"

Dor e morte vêm do céu. A trégua não trouxe alívio. As chuvas inundam as frágeis tendas. Aviões de combate israelenses continuam a atacar, matando e ferindo dezenas de pessoas, dizimando famílias inteiras de deslocados no superlotado campo de Nuseirat.

O último ataque ocorreu na terça-feira, menos de dois meses após o anúncio de uma iniciativa de paz mediada pelos EUA, apresentada pelo presidente Donald Trump como o início do "fim da guerra em Gaza". Desde então, no entanto, os moradores dizem que a realidade "pós-guerra" é muito diferente das promessas feitas na televisão.

O exército israelense lançou dezenas de operações aéreas em toda a Faixa de Gaza, descrevendo-as como respostas direcionadas a supostas "violações" dos acordos por parte do Hamas: atrasos na entrega dos corpos dos reféns e suspeita de atividade de militantes.

Os ataques do último sábado estão entre os incidentes mais mortais até o momento. Na Cidade de Gaza, testemunhas relataram que um dos primeiros bombardeios da tarde de sábado teve como alvo um carro civil na zona oeste da cidade, matando os três ocupantes. Pouco depois, os bombardeios se deslocaram para a zona central.

No campo de refugiados de Nuseirat, uma área densamente povoada no centro da Faixa de Gaza, os moradores relatam pelo menos três ondas distintas de bombardeios. Uma delas atingiu a casa da família Abu Amouna, matando três pessoas. Outra, mais devastadora, atingiu um conjunto de casas pertencentes a membros da família Abu Shawish. Por volta das 16h15, um míssil ar-terra atingiu a casa de Ghaleb Abu Shawish, localizada em um pequeno conjunto de edifícios adjacente ao campo. Ghaleb, sua esposa e seus três filhos foram mortos no bombardeio. Apenas Tala, de dez anos, sobreviveu. A menina, que agora vive com a avó, não consegue compreender a dimensão do que aconteceu. "Meu pai, minha mãe, meus irmãos e minhas irmãs morreram. Fiquei sozinha. Não tive tempo de me despedir deles. Me disseram que não sobrou muita coisa dos seus corpos", disse ela.

"De quem devo me despedir primeiro?"

As casas da família Abu Shawish são muito próximas umas das outras, sem espaço entre elas; a explosão não se limitou à casa de Ghaleb. A onda de choque e os desabamentos se espalharam imediatamente para a casa vizinha de Rami Abu Shawish, seu parente. Toda a família de Rami estava em casa no momento da explosão. Quando a poeira baixou, a casa desabou sobre eles. A esposa de Rami, Sahar, e suas filhas, Habiba e Teema, morreram, assim como seus dois filhos, Yousef e Mohammad. O próprio Rami foi retirado dos escombros, vivo, mas gravemente ferido, e transferido para a unidade de terapia intensiva do Hospital Al-Aqsa, na cidade vizinha de Deir al-Balah. Dos cinco filhos de Rami, apenas uma garota sobreviveu, Batoul, uma estudante de 19 anos. Ela está ferida, mas quando os socorristas chegaram até ela, estava consciente. Eles a transferiram imediatamente para a unidade de cirurgia de emergência, depois de ela se despedir de toda a família no necrotério do hospital. "De quem devo me despedir primeiro? Eu não sei", ela gritou. Os médicos dizem que seu estado agora é estável, mas o impacto psicológico do evento provavelmente durará mais do que as cicatrizes de seus ferimentos.

Mais adiante no corredor, no mesmo hospital, Saeed Riyad Saeed, de 18 anos, está na UTI. Ele também é vítima do bombardeio no bairro de Abu Shawish. Quando o míssil explodiu, as paredes da casa da família — parte do mesmo pequeno bairro densamente povoado — desabaram, esmagando sua perna e ferindo suas costas. Saeed foi inicialmente transportado para o Hospital Nasser em Jhan Yunis e, em seguida, transferido duas vezes entre Nasser e Al-Aqsa enquanto os médicos tentavam estabilizá-lo. Por fim, os médicos tiveram que apresentar ao pai, Riyad, uma escolha impossível. "O médico me apresentou duas opções", disse Riyad, em frente à unidade de terapia intensiva com um formulário de consentimento na mão. "Ele me perguntou se eu preferia salvar a perna do meu filho ou a vida dele." Riyad assinou o formulário, autorizando assim a amputação da perna do filho na esperança de salvar sua vida. Pouco antes da operação, no entanto, novos exames revelaram estilhaços alojados em suas costas, perigosamente perto de órgãos vitais. "Meu filho está em estado crítico", relata Riyad. "A cada visita, encontram algo novo. Qual foi a culpa dele? Ele estava sentado em casa, sem fazer nada de errado."

O bombardeio também atingiu os visitantes, não apenas os moradores. Kamilia Abu Shawish, de 50 anos, perdeu seu filho Salam, de 30 anos, no mesmo ataque. Naquela tarde, ele tinha saído para visitar parentes na casa de Rami, em Nuseirat, e parece que estava na porta quando o míssil atingiu a residência. Ele foi levado às pressas para o hospital, onde foi declarado morto. Deixa um filho de um ano. Para Kamilia, essa tragédia é a repetição de um pesadelo que começou um pouco de tempo atrás. "Um dia antes de ele morrer, comemoramos o aniversário da morte do irmão dele. Eu ainda não me conformei com a perda do meu primeiro filho, e hoje já tenho que enterrar o segundo."

Suas palavras refletem o que muitos sentem em Nuseirat: as palavras do "plano de paz" e do "cessar-fogo gradual" pouco fizeram para mudar o cotidiano dos civis. Para a população Na Faixa de Gaza, o debate sobre quem violou os acordos primeiro fica em segundo plano em relação às suas consequências.

A atenção pública internacional está voltada para as negociações diplomáticas e os cálculos políticos — em Washington, Tel Aviv e nas capitais europeias — enquanto famílias em Nuseirat dizem se sentir abandonadas em uma realidade "pós-guerra" que se assemelha muito a uma guerra.

Para Tala, aninhada nos braços da avó, as palavras do cessar-fogo e do plano de paz significam pouco. Ela tem apenas uma pergunta, que repete baixinho em continuação: "Por que me deixaram sozinha?".

¨      Um mês após o cessar-fogo em Gaza, palestinos seguem vivendo em condições precárias e expostos à violência, alerta MSF

Um mês após o início do frágil cessar-fogo na Faixa de Gaza, a situação da população permanece desesperadora. De acordo com Médicos Sem Fronteiras (MSF), palestinos continuam sendo mortos e feridos pelas forças israelenses quase diariamente nas áreas próximas à linha amarela, região militarizada controlada por Israel.

“Muitas vezes, as pessoas arriscam suas vidas ao retornar para procurar suas casas, já que essa linha ainda não está claramente demarcada. Para piorar a situação, alguns dos principais hospitais estão localizados em áreas controladas pelas forças israelenses, o que dificulta o acesso seguro a serviços de saúde”, afirma Caroline Seguin, coordenadora de emergência de MSF em Gaza.

As autoridades israelenses continuam impondo restrições significativas à entrada de ajuda humanitária em Gaza. MSF e outras organizações estão lutando para levar ajuda vital ao território, especialmente equipamentos médicos, abrigos, itens de higiene e peças de reposição para infraestrutura essencial. “As necessidades são enormes. As pessoas estão sofrendo e isso é totalmente evitável”, revela Seguin.

Mesmo com o cessar-fogo, as condições de vida em Gaza continuam terríveis. Após serem deslocados à força repetidas vezes, muitos palestinos ainda vivem em tendas improvisadas, sem acesso à água corrente e eletricidade, ao lado de montes de lixo e esgoto transbordando. “A saúde das pessoas é afetada por essas condições precárias, causando infecções respiratórias, de pele e gastrointestinais. O inverno está chegando em breve, com queda de temperatura e previsão de chuvas fortes e ventos intensos”, alerta Seguin.

Médicos Sem Fronteiras apela às autoridades israelenses para que autorizem imediatamente o aumento massivo e irrestrito da entrada de ajuda humanitária em Gaza.

¨      ONG alerta para risco de 'ilusão de normalidade' e denuncia continuidade de genocídio em Gaza

Após mais de dois anos de guerra entre Israel e o movimento islâmico palestino Hamas, uma frágil trégua entrou em vigor em 10 de outubro, sob pressão dos Estados Unidos. Apesar disso, “Israel está restringindo severamente a entrada de alimentos e o restabelecimento de serviços essenciais para a sobrevivência da população civil”, escreve a Anistia Internacional em um relatório que cita inúmeros depoimentos de moradores de Gaza e diversos estudos internacionais, incluindo os da ONU.

“Fornecer ajuda limitada a alguns não significa que o genocídio tenha terminado ou que as intenções de Israel tenham mudado”, acrescenta o relatório, referindo-se à ajuda humanitária que conseguiu entrar na Faixa de Gaza nas últimas semanas.

O documento também cita o deslocamento forçado da população e as falhas na autorização de evacuações médicas como mais uma prova, segundo a ONG, de que um genocídio está em curso em Gaza.

O pequeno território palestino foi devastado pela guerra desencadeada pelo ataque do Hamas contra Israel em 7 de outubro de 2023.

“O cessar-fogo pode criar a perigosa ilusão de um retorno à normalidade para as pessoas que vivem em Gaza”, observa Agnès Callamard, secretária-geral da Anistia Internacional, na declaração que acompanha o relatório. “O mundo não deve se deixar enganar, no entanto”, acrescenta ela, afirmando que “o genocídio perpetrado por Israel não terminou”.

<><> Acusações repetidas

A ONG acusou Israel pela primeira vez de cometer genocídio em Gaza em dezembro de 2024. Tel Aviv rejeita de forma regular e veemente as acusações feitas pela Anistia Internacional, outras ONGs de direitos humanos, especialistas da ONU e países como a África do Sul, que estão levando o caso ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), afirmando que são “falsas”, “antissemitas” ou “fabricadas”.

Desde 10 de outubro, 352 pessoas foram mortas em Gaza, de acordo com o Ministério da Saúde, que não indica o número de combatentes mortos, mas cujos dados, considerados confiáveis pela ONU, indicam que mais da metade dos mortos são crianças e mulheres.

¨      A população de Gaza se prepara para passar o inverno em meio ao frio e aos escombros

Nas últimas semanas, os habitantes de Gaza têm olhado para o céu não apenas em busca de abrigo contra os bombardeios, mas também para ver se vai chover. O outono trouxe chuvas torrenciais ao enclave, causando inundações — mais uma preocupação para as milhares de famílias que vivem em tendas e não podem voltar para suas casas.

A extrema fragilidade de uma população exausta após dois anos de genocídio ininterrupto é agora motivo de preocupação. Organizações humanitárias internacionais estão atentas ao surgimento de doenças respiratórias e outras enfermidades relacionadas à hipotermia. A desnutrição , especialmente entre crianças, continua sendo um problema, assim como o acesso à água potável.

No início desta semana, também foi anunciado o fim das operações da controversa Fundação Humanitária de Gaza. Essa organização, administrada por Israel e pelos Estados Unidos, foi palco de inúmeros massacres de pessoas que aguardavam a distribuição de alimentos. Estima-se que até mil pessoas foram mortas pelas forças israelenses nos quatro pontos de distribuição da Fundação. Criada em maio passado e enfrentando forte oposição de todas as agências humanitárias internacionais, o trabalho anteriormente realizado pela Fundação será agora transferido para o Centro de Coordenação Civil-Militar, que supervisiona o cessar-fogo e a entrega de ajuda humanitária no enclave.

<><> Violação do cessar-fogo e condições de vida insalubres

Em Gaza, o Estado israelense continua a violar o direito internacional humanitário e o cessar-fogo de 10 de outubro. Estima-se que a trégua tenha sido quebrada pelos sionistas mais de 500 vezes; cerca de 350 palestinos foram mortos desde então. Além disso, organizações internacionais vêm relatando há semanas que a entrada de ajuda humanitária permanece abaixo do montante acordado, deixando a situação das famílias em Gaza extremamente precária. "Suprimentos essenciais de organizações internacionais, avaliados em 50 milhões de euros, permanecem em armazéns porque o governo israelense nega sua entrada, enquanto famílias em Gaza enfrentam o frio e a chuva em abrigos improvisados ​​sem isolamento térmico, aquecimento ou água potável", relata um grupo de organizações humanitárias. Essas mesmas organizações também vêm exigindo há dias que as evacuações médicas sejam aceleradas e que as passagens de fronteira sejam totalmente reabertas.

“As condições de vida em Gaza continuam terríveis. Depois de serem deslocadas à força repetidamente, mais de um milhão de pessoas continuam obrigadas a sobreviver em uma pequena faixa de terra em condições perigosas no sul da Faixa de Gaza”, relata a Oxfam. “Quase toda a população ainda vive em tendas improvisadas, sem acesso a água corrente ou eletricidade, ao lado de montes de lixo e esgoto transbordando”, afirma o comunicado mais recente da organização.

Após dois anos de uma campanha genocida, o número de mortos em Gaza chegou a quase 70.000; há mais de 170.000 feridos e centenas de desaparecidos, com corpos soterrados sob os escombros. Além disso, o exército sionista ocupa militarmente mais de 50% do território do enclave, sob um suposto sistema de linhas amarelas desconhecido pela população local.

<><> Não houve progresso em direção ao início da segunda fase

Segundo o Haaretz, após a conclusão da primeira fase de um cessar-fogo que foi violado mais de 500 vezes por Israel, nem Israel nem o Hamas estariam dispostos a continuar avançando em uma hipotética segunda fase do acordo, que tinha como pontos o início do desarmamento do Hamas e uma retirada gradual das tropas israelenses do enclave palestino.

Segundo fontes citadas pelo Haaretz, o primeiro-ministro Netanyahu não está disposto a retirar as tropas de Gaza antes das eleições do próximo ano e "não está interessado em avançar sem uma pressão internacional real, principalmente dos Estados Unidos". Outro motivo, de acordo com o jornal israelense, é que Israel pode estar considerando forçar o Hamas a desarmar-se.

Com relação a uma hipotética implementação da segunda fase do cessar-fogo, foi revelado apenas que, no último domingo, 24 de novembro, o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair se reuniu com o vice-presidente da Autoridade Palestina, Hussein Al-Sheikh, e com um representante do governo dos EUA em Ramallah, algo que desagradou a população palestina, que vê Blair como um representante dos interesses dos EUA no território.

<><> A violência na Cisjordânia ocupada atinge níveis recordes

Enquanto a vida em Gaza se deteriora devido à ocupação israelense, na Cisjordânia, a violência de colonos e do exército só aumentou nas últimas semanas. Há apenas 48 horas, um vídeo viralizou mostrando soldados israelenses executando sumariamente dois detentos palestinos. Após as execuções e dada a ampla circulação das imagens, que foram publicadas em diversos veículos de comunicação internacionais e nas redes sociais, o exército emitiu um comunicado justificando as ações, alegando que os dois jovens pertenciam a uma “rede terrorista” — a mesma desculpa que o exército sionista sempre usa ao cometer tais massacres. O vídeo mostra os jovens, momentos antes da execução, com os braços erguidos em sinal de rendição. Na noite da última quarta-feira, colonos israelenses incendiaram a mesquita Al-Falah, ao norte da vila de Biddya.

Esta semana, um relatório publicado pela Human Rights Watch revelou que, desde janeiro de 2025, 32 mil palestinos foram expulsos de três campos de refugiados: Jenin, Nur Shams e Tulkarm. Este é o maior deslocamento em massa de palestinos na Cisjordânia desde 1967. Israel demoliu centenas de casas sob o pretexto de falta de licenças de construção, mas com o objetivo de erradicar a resistência à sua ocupação dentro dos campos.

A operação de deslocamento em massa do governo israelense, denominada "Operação Muralha de Ferro", constitui, segundo a Human Rights Watch, "uma violação do direito da ocupação sob o direito internacional humanitário, o que configura crimes de guerra". A Human Rights Watch também concluiu que as forças israelenses cometeram o deslocamento forçado de civis e outros atos desumanos como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra a população civil, o que constitui crimes contra a humanidade de acordo com o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. As ações de Israel também violaram o direito internacional dos direitos humanos em vigor na Cisjordânia.

Desde 7 de outubro de 2023, mil palestinos foram mortos pelo Estado de Israel na Cisjordânia ocupada. Este ano, a colheita de azeitonas — um evento vital para o povo palestino, tanto econômica quanto simbolicamente — foi particularmente violenta. Com todos os olhares voltados para Gaza, o exército israelense e os colonos estão se aproveitando da situação para cometer abusos e o que a Human Rights Watch (HRW) já descreveu como “limpeza étnica”. Nesse sentido, a organização pediu uma investigação de todos esses atos como “crimes de guerra” e “crimes contra a humanidade” e exigiu a imposição de sanções internacionais.

Alemanha, França, Itália e Reino Unido também se manifestaram, mas com uma declaração em vez das sanções exigidas por algumas organizações internacionais. Em uma declaração conjunta, afirmaram que “condenam veementemente o aumento massivo da violência dos colonos contra civis palestinos” e pediram “estabilidade” na Cisjordânia. Na declaração, instaram Israel a “respeitar” o direito internacional.

 

Fonte: La Stampa/MSF/RFI/El Salto

 

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