A
formação seminarística forma bons padres?
"Entre
tantos exemplos que nos iluminam nessa reflexão, citamos São Dom Bosco
(1815-1888), com seu trabalho junto aos jovens e crianças nos oratórios
salesianos, nos oferece importantes luzes para esta reflexão, tendo como base,
acima de tudo, o cuidado e a prevenção no ato de educar. Dom Bosco nos mostra,
em sua vivência prática, uma formação que ocorre dentro de uma estrutura
(seminário/oratório), mas que tem como premissa central oferecer àqueles que se
colocam nesse caminho um modelo de educação integral, focado na caridade
pastoral e na presença constante ('assistência') do educador (cf. Lenti, 2012,
p. 117)", escreve Elcio A. Cordeiro, padre da Diocese de Palmas-Francisco
Beltrão, no Paraná, formador da Etapa da Configuração e doutorando em Educação
pela Universidade de Passo Fundo – UPF.
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Eis o artigo.
Como
formador de seminaristas há longos anos, reflito constantemente sobre esta
área. Percorro algumas literaturas, que não necessariamente abarcam somente uma
corrente teológica, procuro reter o essencial daquilo que tenho acesso,
independente das discordâncias teológicas-filosóficas, e colocar em prática
aquilo que os documentos da Igreja aconselham para a formação seminarística.
Destarte, é a partir do “chão do Seminário” que tenho pensado sobre a pergunta
que leva o título dessa reflexão: a formação seminarística forma bons padres?
Se
buscarmos respostas escritas ou orais, vamos encontrar várias manifestações.
Quiçá poderemos ouvir: os seminários não respondem aos tempos atuais; o modelo
de seminários é tridentino; ou ainda: as paróquias poderiam ser lugar de
formação para grupos reduzidos de seminaristas; os seminaristas deveriam estar
com as famílias, sendo acompanhados pelos formadores, etc. Para além disso,
apresento uma leitura, ainda que simples, sobre uma possível reflexão
construtiva a respeito dessa indagação provocante.
Através
de três análises em forma de buscas, procuro ler a realidade
eclesial-sacerdotal. Posteriormente, por meio de três proposições, tenciono
construtivamente arquitetar a essência da formação seminarística. Certamente,
não tenho pretensão de universalização, menos ainda, de aprovação. O único
objetivo é ajudar a construir uma formação seminarística que forme bons Padres.
Padre
Elli Benincá (1936-2020), como educador-formador destacou a importância de
observar o cotidiano dos educadores e educandos como fonte de saberes. Pois,
segundo Benincá (2000) o ser humano forma e se forma em conformidade com os
acontecimentos cotidianos. O Documento de Aparecida, nº 318, reflete a respeito
da necessidade de que os projetos de formação contemplem as influências da
cultura pós-moderna nos seminários, pois a sociedade sente a fragmentação das
personalidades, incapacidade de assumir compromissos e dificuldades na
maturidade humana. Isso pode enfraquecer a identidade espiritual e também o
processo formativo de discípulos missionários.
A
primeira análise é sobre a busca desenfreada pela aparência: hoje, percebemos
como o mundo das redes sociais atrai com facilidade seminaristas e padres. No
mundo virtual, “aparentar ser” torna-se um desejo. De acordo com as Diretrizes
para a Formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil (2019), atualmente vivemos
em uma sociedade marcada pelo pouco dizer e muito sentir, deixando-se tocar e
seduzir com base em estímulo-resposta, o que provoca consumo, aparência e
exibicionismo que tem como fundamento a obtenção de aplausos e de uma religião
do espetáculo e emocionalismo.
Não
obstante, percebemos o tempo todo, postagens sobre a vida particular, o
trabalho eclesial e momentos de descontração. Segundo o filósofo Heráclito (500
a.C – 450 a.C), interpretado por Damião Berge (1969), se a pessoa humana se
contenta com as aparências, permanece-se no saber da experiência da vida, nesse
caso, o senso comum responde como um conhecimento pronto e universal, não
observando a sabedoria, permanecendo na razoabilidade dos acontecimentos
vitais. Diante desse cenário de “aparentar”, alguns tornam-se influencers,
formadores de opiniões, ou simplesmente apresentam uma dança, vendem um
produto, fazem uma campanha ou anunciam as diversas atividades.
Sobre
isso, vale a pena indagar: Por que as redes sociais atraem com facilidade
padres e seminaristas? O Papa Francisco expõe uma crítica incisiva sobre como o
ministério pode se desviar ao priorizar a imagem em vez de nutrir a
autenticidade interna. Ele afirma: “O clericalismo é uma perversão da Igreja.
Ele nasce de uma visão elitista e excludente da vocação que interpreta o
ministério recebido como poder e não como serviço” (Papa Francisco, 2018).
Nesse sentido, Jonathan Haidt (2024) alerta-nos que as redes sociais comportam
um modelo de negócio que nos transformam em produto.
Essa
noção do “poder da aparência” também se revela quando um sacerdote ou
seminarista utiliza as redes sociais para apresentar uma imagem idealizada,
quase inatingível, que não corresponde à realidade das pessoas. O Papa ainda
alerta sobre o perigo de um sacerdote viver superficialmente, dedicando mais
atenção à sua imagem do que ao seu crescimento espiritual. Ele declara: “A pior
coisa que pode acontecer a um sacerdote é tornar-se um funcionário do sagrado,
alguém que faz tudo bem, mas sem envolvimento interior” (Papa Francisco, 2016.)
A análise de Francisco traz uma luz importante para nosso estudo: ao buscar
visibilidade, aprovação e seguidores, o seminarista e o padre correm o risco de
transformar-se em um “empregado” de sua própria imagem, limitando seu
ministério a aspectos superficiais como estética, carisma ou performance. Esse
comportamento empobrece a dimensão espiritual e prejudica o desenvolvimento de
sua vocação.
A
percepção de aparência e poder, criticada pelo Papa Francisco, também sustenta
as fundações de diversos abusos na Igreja. Quando o Ministério se baseia na
imagem em vez da realidade interna (interioridade), cria-se um campo fértil
para a manipulação, a autorreferência e relacionamentos prejudiciais. O Papa
enfatiza que “o clericalismo, longe de ajudar, contribuiu para os abusos e para
a má gestão que os acompanhou” (Papa Francisco, 2018).
A
segunda análise refere-se à busca pelo conforto: observamos que nossas
instalações são importantes. Porém, parece haver algum exagero: casas,
apartamentos e carros particulares, vestes da moda, tecnologias de última
geração na mão e constantemente viagens e férias longas. Essa constatação não é
privilégio de poucos. O conforto impulsiona a aquisição de bens móveis e
imóveis. Averiguamos essa busca nas preocupações do cotidiano eclesial. As
Diretrizes para a Formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil (2019) refletem
no nº 10d, sobre o cuidado com a “a tirania do conforto”, chamando a atenção
para o perigo dessa busca.
Esse
cenário, na ausência de uma purificação por meio da conversão, dá origem a
situações em que o abuso (espiritual, econômico, sexual...) pode ser escondido.
O apego ao bem-estar e às proteções cria contextos em que a transparência e a
corresponsabilidade estão ausentes, favorecendo a cultura do encobrimento. O
Papa Francisco enfatizava com frequência que as estruturas clericais e
autorreferenciais possibilitaram que numerosos casos de abusos fossem
silenciados, devido ao receio de “comprometer a reputação”.
A
terceira análise direciona-se à busca de projetos pessoais: observamos
seminaristas e padres buscando projetos pessoais; existe uma grande busca por
bens particulares, prevenir uma boa aposentadoria, qualificar-se em alguma área
rentável. Além disso, muitos seminaristas se espelham em padres artistas,
youtubers ou ainda em carreiristas eclesiais. Em contrapartida a Ratio
Fundamentalis Institutionis Sacerdotalis recorda no nº 29, a necessidade de os
seminaristas aprenderem a saírem de si mesmos, afim de que alcancem a
maturidade de serem livres para Deus e servir o povo com espírito missionário.
Essa
análise tripartite revela uma pequena parcela do grande problema que existe na
formação seminarística: ela ainda responde aos tempos atuais? Os nossos
seminários e casas de formação formam para a busca de aparências, confortos e
projetos pessoais? Qual é o papel da formação seminarística? Ou ainda, seria
necessário outro modelo formativo? Essas são perguntas que nos colocam em
reflexão. Aliás, para grandes problemas, não há soluções fáceis. Entretanto,
não podemos “jogar a criança com a água suja”! Propomos, então, o resgate e a
formação de três valores.
O
primeiro é o valor do coletivo: formar para a vida comunitária, diálogo e o
encontro físico. A presencialidade revela a nossa identidade. A formação
seminarística para formar bons padres necessita investir na valorização do
coletivo. Aristóteles (384 a.C – 322 a.C) em sua obra Política afirma que a
natureza do indivíduo humano somente se realiza de forma plena ao estar
inserido em uma comunidade. As aparências serão diminuídas quando a comunidade
ganhar status de centralidade na formação. Tudo nos seminários deve ser
coletivo: as orações, refeições, trabalho, atividades pastorais, estudos, etc.
Jesus Cristo formou os doze Apóstolos no comum; é possível encontrar na
meditação dos textos evangélicos a necessidade da coletividade. Situações
simples podem fazer grandes diferenças, como, por exemplo: as suítes
individuais nos seminários ajudam na formação de bons padres? Quanto tempo
dedicamos ao estudo em grupos? Quantas formações comunitárias realizamos? Que
tipo de formação comunitária estão recebendo nossos seminaristas?
O
segundo é o valor da conversão: a consciência de que devemos nos formar
convertendo-nos diariamente deve ser explicitada. A conversão é perceber a
fragilidade humana, conhecer as profundezas de nossa interioridade. O bom
exemplo da conversão de Agostinho de Hipona (354-430), descrita na obra
Confissões, pode ser uma literatura que auxilie no valor que a conversão possui
para a formação seminarística. Agostinho (1980) destaca a importância de ouvir
a Claridade que habita o nosso ser. A conversão não é algo extraordinário, nem
precisamos engrandecê-la com reflexões que demonstram quase a impossibilidade
de realizá-la. Ela é simples, porém, precisa ser valorizada no cotidiano.
O
terceiro é o valor do Sacerdócio. Qual é a essência do Sacerdócio? É preciso
fazer essa pergunta diariamente para os formandos. O Sacerdócio católico possui
como essência a vida sacramental, de maneira especial a Eucaristia, essa não
pode ser desvalorizada ou descentralizada. Vale a pena recordar Papa Francisco
quando nos exorta:
A
Eucaristia que eu celebro leva-me a senti-los todos verdadeiramente como irmãos
e irmãs? Faz crescer em mim a capacidade de me alegrar com quantos se
rejubilam, de chorar com quem chora? Impele-me a ir ao encontro dos pobres, dos
enfermos e dos marginalizados? Ajuda-me a reconhecer neles o rosto de Jesus?
Todos nós vamos a Missa porque amamos Jesus e, na Eucaristia, queremos
compartilhar a sua paixão e ressurreição. Mas, amamos, como deseja Jesus, os
irmãos e irmãs mais necessitados? (Francisco, 2015, p. 37).
Os
sacramentos são o que temos de melhor, é o que podemos oferecer ao povo como o
mais perfeito remédio para a vida. Para demonstrar a essência do Sacerdócio,
faz-se necessária a boa preparação a partir da Sagrada Escritura, do Magistério
e da Tradição. Um bom livro, nessa direção, para o início da reflexão sobre a
essência do Sacerdócio tem como título: Colaboradores da vossa alegria: o
ministério sacerdotal hoje, de autoria de George Augustín. A literatura da
Igreja, os documentos do Concílio Vaticano II, as reflexões papais e os
documentos da formação nos ajudam a pensar sobre a essência do Sacerdócio.
Alinhado a isso, François-Xavier Bustilho (2022) enfatiza que o ideal do
Sacerdócio é viver a vocação na fé e com paixão, dando o melhor de si para o
Reino, dom de si a Deus e aos irmãos.
Tendo
exposto essa reflexão sobre as três análises em forma de buscas e
problematizado três proposições construtivas para a formação seminarística,
podemos lançar outra pergunta para finalizar esta breve reflexão: os seminários
ainda são necessários? O Papa Leão XIV recordou a tarefa dos seminários em
carta ao seminário maior arquidiocesano São Carlos e São Marcelo, de Trujillo:
“[...] estar com o Senhor, permitir que Ele os molde, conhecê-Lo e amá-Lo, para
que se tornem semelhantes a Ele” (Leão XIV, 2025)). Ainda, no Jubileu dos
seminaristas o Papa recordou que o seminário deve ser uma escola de afetos e
que oração e discernimento são fundamentais para uma formação das profundezas
da interioridade. Como tentativa de resposta, destacamos que não é a estrutura
que vai fazer a formação; ou seja, apesar de a infraestrutura ser importante,
ela não é determinante!
Nesse
sentido, é válido citar, em nossa história, tantos exemplos que nos mostram
como a vivência seminarística, em seu modelo comunitário (seminários), quando
vivida com profundidade e honestidade, demonstra que os seminários, enquanto
estrutura formativa, ainda respondem positivamente a essa constante labuta de
formar bons presbíteros para a nossa Igreja.
Entre
tantos exemplos que nos iluminam nessa reflexão, citamos São Dom Bosco
(1815-1888), com seu trabalho junto aos jovens e crianças nos oratórios
salesianos, nos oferece importantes luzes para esta reflexão, tendo como base,
acima de tudo, o cuidado e a prevenção no ato de educar. Dom Bosco nos mostra,
em sua vivência prática, uma formação que ocorre dentro de uma estrutura
(seminário/oratório), mas que tem como premissa central oferecer àqueles que se
colocam nesse caminho um modelo de educação integral, focado na caridade
pastoral e na presença constante (“assistência”) do educador (Cf. Lenti, 2012,
p. 117).
Desse
modo, para responder aos problemas contemporâneos, as estruturas de formação
precisam ser espaços práticos e afetuosos que, ao invés de se sustentarem na
rigidez, integrem a fé e a vida real para formar “bons cristãos e honestos
cidadãos” (Lenti, 2012, p. 514), humanizando-se às interpelações da cultura
emergente, sobretudo dentro da realidade daqueles que trilham o processo
formativo.
Por
conseguinte, defendemos a metodologia da formação seminarística como essencial
para preparar bons padres. A metodologia pode ser compreendida como caminho,
postura ou maneira de formar. Essa é que faz a diferença na formação
seminarística. Por isso, é importante formar os formadores, possibilitando-lhes
escolas de formação e cursos preparatórios para ser formador. Como também,
construir um bom projeto formativo, que seja maleável e reatualizado
periodicamente. Ah! Outrossim, a pedagogia da presença! Sim, formadores e
formandos, precisam conviver, olhar frente a frente, dialogar presencialmente.
Afinal, como expressa Gadamer: “Um diálogo é, para nós, aquilo que deixou uma
marca. O que perfaz um verdadeiro diálogo não é termos experimentado algo de
novo, mas termos encontrado no outro algo que ainda não havíamos encontrado em
nossa própria experiência de mundo” (Gadamer, 2007, p. 247). Dialogar é tocar
na alma e vibrar com o coração. O diálogo possui uma força formadora de
humanidade, é capaz de transformação qualitativa entre as pessoas. É essencial
dialogar cotidianamente na formação seminarística, são esses momentos que
revelam a verdadeira identidade vocacional.
Para
finalizar, lançamos algumas perguntas reflexivas: O que acontece na programação
diária dos seminários católicos? Que metodologia estamos usando para formar os
futuros padres? Que programa formativo os nossos seminários seguem? Afinal, os
seminaristas de hoje serão os padres do amanhã!
Fonte:
IHU

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