terça-feira, 26 de março de 2024

Fogo amigo na reeleição de Biden

Na primária do Partido Democrata, em Michigan, Biden venceu por enorme diferença. Seus inexpressivos concorrentes não tinham a menor chance de disputar a indicação para candidato do partido no pleito presidencial de novembro.

No entanto, em Michigan, pintou algo capaz de dificultar o caminho do presidente em busca da reeleição.

Partiu de fogo amigo, segmentos do eleitorado, que Biden considerava como votos certos. E, o que era mais grave, Michigan é um dos swing states.

Enquanto em cada estado um determinado partido quase sempre obtém a maioria absoluta dos votos, nos 7 swing states qualquer um dos dois grandes partidos pode vencer.

Por isso, ganhar nos swing states é essencial para se conquistar a Casa Branca. Os eleitores do Oriente Médio árabe e do Norte da África estão ameaçando a reeleição do presidente democrata.

Diante do papelão de Biden na Guerra de Gaza, mascarando o fornecimento de munições a Israel (inclusive, bombas de duas toneladas) a Israel e os vetos na ONU a recomendações de cessar-fogo, com críticas a Netanyahu no massacre de palestinos, a comunidade árabe de Michigan reagiu de forma democrática.

Através de uma campanha curta e de parcos recursos, conseguiu-se 101 mil votos não-comprometidos (iguais a votos em branco), que podem fazer falta a Biden num estado onde ele venceu na eleição passada.

Sobram razões para esse ataque não-previsto, vindo de uma comunidade eleitora fiel dos democratas.

Tudo começou quando milicianos do Hamas lançaram um ataque contra Israel, matando 1.200 civis e militares israelenses e sequestrando 350; chocados com este atentado, quase todos os países, especialmente os EUA e os europeus, solidarizaram-se com Israel, revoltados com os atos brutais dos milicianos do Hamas contra pacíficos cidadãos israelenses.

Boa parte da comunidade internacional passou a ter má vontade em relação aos palestinos, chegando a admitir sua cumplicidade com os terroristas do Hamas.
Aproveitando a maré favorável, os chefes do regime sionista desfecharam uma campanha mundial, acusando o Hamas dos crimes mais repugnantes e brutais, rotulando os milicianos como verdadeiros animais selvagens, chegando a incluir nessa classificação até mesmo o cidadão comum palestino.

O presidente de Israel, Isaac Herzog, foi explícito: “Não há inocentes na Palestina. Toda a nação é responsável pelos ataques do Hamas”. E concluiu: “Não é verdade essa retórica de que os civis não estavam por dentro, não estavam envolvidos... Não é absolutamente verdade e nós lutaremos até quebrar sua espinha dorsal”.

É o que estão fazendo. Bombardeios aéreos diários e mísseis lançados em massa vêm destruindo moradias e infraestruturas e matando vasto número de civis inocentes, a maioria crianças e mulheres.

Coube a Gallant, ministro da Defesa, completar o anúncio das maldades sionistas: “estamos impondo um cerco total à Gaza. Nem eletricidade, nem comida, nem água, nem gás, nem tudo. Estamos lutando contra animais humanos e os tratamos como tal”.

Passadas algumas semanas, face aos devastadores ataques israelenses, que matavam até 200 civis palestinos por dia, e dos efeitos do bloqueio desumanos vitimando o povo de Gaza, os países europeus foram caindo em si. Manifestações de protestos com multidões, a maioria de jovens, pipocaram em toda a parte.

Biden continuou ao lado de seu “grande, grande amigo”, proclamando o direito de Israel se defender, apesar de estar violando os direitos humanos.

Enquanto em toda parte, pedia-se um corredor humanitário para permitir a entrada de alimentos, medicamentos, combustível e água, Biden esbaldou-se, denunciando ações, em geral, falsas, que teriam sido praticadas pelo Hamas.

Por onde quer que fosse, o morador da Casa Branca acusava os terroristas das mais horríveis ações, como “animais humanos” que seriam (conforme Herzog, o presidente de Israel), na prática de torturas, estupros sistemáticos, desmembramentos, bebês assados em fornos, corpos retalhados, assassinatos, bebês decapitados etc.

Com o passar do tempo foram sendo conhecidas as terríveis sequelas dos bombardeios e bloqueios dos bens e serviços necessários à vida. Verificou-se que a expressão “animais humanos”, se aplicaria mais adequadamente aos responsáveis pelos bárbaros ataques.

Como fruto deles, mais de 85% dos palestinos tiveram suas casas destruídas, transformadas em ruínas ou montes de escombros. Quase toda a infraestrutura urbana de Gaza sofreu o mesmo destino.

Até hoje, 15 de março, morreram mais de 31 mil palestinos, sendo que 70% eram mulheres e crianças. Já semanas atrás, Lloyd Austin, o próprio secretário de Defesa dos EUA, revelou que o total de mulheres e crianças mortas chegara a 25 mil palestinos.

Acima de 576 mil pessoas no estreito de Gaza – um quarto da população total - estão próximas da fome absoluta, como informou autoridade da ONU no Conselho de Segurança, acrescentando que a generalização da fome poderia ser quase inevitável (Reuters); 90% das crianças com menos de cinco anos sofrem uma ou mais doenças infecciosas. Em cada 6 crianças,1 está à beira de morrer de fome. Como já aconteceu com, pelo menos, 17 delas.

Enquanto no norte da cidade de Gaza, 16% das crianças com menos de 2 anos – ou seja, 1 em cada 6 crianças – estão profundamente desnutridas ou desgastadas. Tudo indica que Israel vem pondo em prática uma estratégia de promover a fome em massa com o fim de se livrar dos palestinos, pela morte ou pela emigração, na busca de um país que lhes permita viver em condições de vida dignas.

Completando o processo de destruição do sistema de alimentação de Gaza, a ofensiva israelense já exterminou 80% das frotas pesqueiras e os equipamentos usados por pequenos barcos de pesca, reduzindo drasticamente a oferta de peixes, que poderiam aliviar a fome de parte do povo.

Além de arrasar plantações e pomares, Israel envenena terras com bombardeios que usam bombas de fósforo (proibidas pela ONU) que tornam impossível a lavoura no futuro próximo.

O sistema de saúde não escapou dos brutalmente eficientes ataques israelenses.
Bombardeados por mísseis e bombas, e invadidos por soldados israelenses, praticamente todos os hospitais e centros de saúde do estreito foram devastados sistematicamente, liquidando o sistema de saúde de Gaza. No momento, dos seus 35 hospitais, 23 não funcionam, 12 estão parcialmente fechados e apenas 1 atende, porém precariamente. (BBC,18/2/2024).

A princípio, Biden ignorou essa catástrofe humana, atento aos desejos do premiê sionista. Sua representante na ONU vetou sucessivamente três projetos propondo pausas humanitárias na guerra, para socorrer os palestinos, embora contrariando a posição da maioria do Conselho de Segurança da ONU, inclusive seus aliados da União Europa.

Por fim, a reação cada vez mais impactante da opinião pública mundial - que agora exigia um cessar fogo permanente – acabou ecoando na Casa Branca.

Biden foi mudando, começou a criticar os ataques indiscriminados e desproporcionais da aviação israelense. A exortar Netanyahu a pausas nos ataques e licença para a entrada de caminhões carregados de alimentos, remédios e outros bens essenciais à sobrevivência da sacrificada população de Gaza.

O premiê sionista topou, o que foi uma grande surpresa. Afinal, ele não estava atacando Gaza para salvar a seu povo, mas para aniquilar outro.

O chefe sionista provavelmente agiu assim para abrandar a exasperação das sensíveis europeus e norte-americanos defensores dos direitos humanos. No entanto, tratou de reduzir o alcance desse socorro aos palestinos.

Note que somente de 50 a 98 dos caminhões chegam efetivamente ao seu destino no estreito de Gaza, quando 500 seriam necessários (Al Jazeera, 26/2/2024). Israel faz de tudo para dificultar, interromper ou impedir as viagens, além de proibir a entrada de parte das cargas transportadas, usando motivos ridículos.

Segundo o escritório humanitário da ONU, no mês passado, o regime sionista só autorizou o acesso ao norte de Gaza de 6 das 24 missões de ajuda (Al Jazeera, 7/3/2024).

Nessa mesma zona, onde praticamente todas as construções foram transformadas em montes de pedras, o World Food Programm tentou entregar alimentos necessários com urgência, mas os militares israelenses não deixaram.

Israel cria ainda toda a sorte de exigências burocráticas para retardar as entregas aos palestinos.

Diz Janti Soeripto, chefe executivo da organização Save the Children que alguns itens são rejeitados de forma aparentemente aleatória.

E ele dá exemplos: “Ganchos obstétricos e caixas de madeira contendo brinquedos, também são rejeitados”. O motivo é que poderiam ser usados pelos terroristas como armas... (The Washington Post, 3/3/2024).

Os soldados parecem ter sempre o gatilho das armas no seu dedo. Já alvejaram várias vezes funcionários dos caminhões de suprimentos.

No mais grave dos incidentes, os militares de Israel atiraram numa multidão que, enlouquecida pela fome, aguardava a distribuição de suprimentos, matando 150 palestinos e ferindo 760. Foi alegado que os soldados sentiram medo do povo, que, por sinal, não os atacava, sequer os ameaçava.

A reação inicial do comando militar não foi punir ou investigar as ações mortíferas dos soldados.

Optaram por mentir, afirmando que não houve disparos e que a maioria dos palestinos morreram pisoteados pela multidão ensandecida.

Mentira comprovada quando prestadores de assistência verificaram nos hospitais grande número de palestinos com marcas evidentes de balas nos seus corpos.

Indignados, Macron (presidente da França), Anaelena Baerbor (ministra do Exterior da Alemanha), Antonio Guterres (secretário-geral da ONU) e Josep Borrell (chefe da Política Externa da União Europeia) condenaram o morticínio e exigiram que o Exército de Israel explicasse de maneira completa o assassinato de tantas pessoas inocentes.

Biden não se pronunciou. Diz que está esperando as conclusões de uma
investigação do exército de Israel... Até agora, sempre atento aos interesses de Israel, ele teria de transferir sua atenção para o lado oposto, se levasse em conta os crimes internacionais praticados pelas hostes sionistas na Guerra de Gaza.

O movimento dos não-comprometidos vem crescendo rapidamente com a adesão dos jovens e demais cidadãos progressistas dos EUA.

Além de se sair bem em Michigan, o voto não-comprometido estendeu-se pelas primárias democratas em diversos outros estados, como em Minnesota, onde obteve 1 em cada 5 sufrágios, 12,5% em Carolina do Norte e 7,5% em Washington.
Até hoje, conseguiu ganhar 20 delegados à Convenção Nacional do Partido
Democrata, que escolherá seu candidato a presidente e respectiva plataforma. Os dirigentes da campanha Biden temem a ameaça do grupo não-comprometido de causar a derrota do candidato à reeleição, pela perda de votos que normalmente seriam dele.

Perigo maior vem dos jovens do Partido Democrata, furiosos com a omissão de Biden na guerra de Gaza, que nada faz para reprimir a brutalidade da ofensiva israelense.

Na verdade, Biden, ao lado de críticas a ações do governo Netanyahu, tem auxiliado Israel consideravelmente, com o envio quase diário de bombas e mísseis, usados para matar palestinos, além de defender a aprovação no Congresso de mais US$ 14 bilhões em armamentos com o mesmo objetivo. Que se somam aos US$ 3,8 bilhões de dólares anuais na constante ampliação do arsenal de Telavive.
A estratégia da Casa Branca é criticar as ações malignas do premiê Netanyahu na guerra, ao mesmo tempo que continua fortalecendo as forças armadas de Israel, atualmente empenhada no massacre do povo de Gaza.

É o mesmo que acusar um ladrão, fornecendo-lhe, porém, gazuas, máscaras e veículos para poder roubar com mais segurança e eficiência. Nessa, as forças progressistas não estão caindo.

Exigem uma mudança profunda na política de Biden no Oriente Médio, baseada não nos interesses de Israel, mas no respeito aos direitos humanos e às leis internacionais.
O ponto de partida seria o estabelecimento de um cessar-fogo permanente, seguido por uma reunião entre as partes e países interessados, para discutir os termos da paz e as condições para a criação de um Estado Palestino independente.

Caso Biden não tope, ou tente enrolar, poderá perder votos que tinha como certo,
vindos dos grupos progressistas aqui mencionados.

Os riscos de derrota seriam enormes. Só os jovens democratas são a maioria do eleitorado de 16 e 29 anos - grupo etário que chega a 17% do total de eleitores dos EUA.

Biden tem bons argumentos para tentar convencer até os mais esquerdistas dos eleitores jovens.

No plano interno, enquanto Trump fez a política dos grandes grupos econômicos, Biden em seu governo agiu muitas vezes em defesa da classe média e dos trabalhadores, além de ter vencido uma inflação difícil, oriunda da pandemia.

Na política externa, ambos têm a mesma visão belicista e fortemente pró-Israel. A diferença é que Biden tende a fazer algumas concessões, para agradar os progressistas do partido.

Já Trump não vai ceder um milímetro, apoiado pelo poder das grandes corporações e pelo enorme rebanho evangélico.

Por outro lado, enquanto Biden quer continuar a enviar ad aeternum dezenas de bilhões em armas para manter a Ucrânia apta a enfrentar a Rússia, Trump já declarou que vai tirar os EUA da guerra, talvez forçando um acordo de paz.

Evidentemente, o republicano consegue reunir em si praticamente todos os defeitos que um homem público pode ter.

No dia de encarar as urnas, os progressistas norte-americanos ficarão numa séria dúvida: escolher Biden ou o voto não-comprometido, com suas prováveis consequências. Seja qual for sua opção, eles se sentirão arrependidos depois.

 

Fonte: Por Luiz Eça, no Correio da Cidadania

 

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