Fogo amigo na reeleição de Biden
Na primária do Partido
Democrata, em Michigan, Biden venceu por enorme diferença. Seus inexpressivos
concorrentes não tinham a menor chance de disputar a indicação para candidato
do partido no pleito presidencial de novembro.
No entanto, em
Michigan, pintou algo capaz de dificultar o caminho do presidente em busca da
reeleição.
Partiu de fogo amigo,
segmentos do eleitorado, que Biden considerava como votos certos. E, o que era
mais grave, Michigan é um dos swing states.
Enquanto em cada
estado um determinado partido quase sempre obtém a maioria absoluta dos votos,
nos 7 swing states qualquer um dos dois grandes partidos pode vencer.
Por isso, ganhar nos
swing states é essencial para se conquistar a Casa Branca. Os eleitores do
Oriente Médio árabe e do Norte da África estão ameaçando a reeleição do
presidente democrata.
Diante do papelão de
Biden na Guerra de Gaza, mascarando o fornecimento de munições a Israel
(inclusive, bombas de duas toneladas) a Israel e os vetos na ONU a
recomendações de cessar-fogo, com críticas a Netanyahu no massacre de
palestinos, a comunidade árabe de Michigan reagiu de forma democrática.
Através de uma
campanha curta e de parcos recursos, conseguiu-se 101 mil votos
não-comprometidos (iguais a votos em branco), que podem fazer falta a Biden num
estado onde ele venceu na eleição passada.
Sobram razões para
esse ataque não-previsto, vindo de uma comunidade eleitora fiel dos democratas.
Tudo começou quando
milicianos do Hamas lançaram um ataque contra Israel, matando 1.200 civis e
militares israelenses e sequestrando 350; chocados com este atentado, quase
todos os países, especialmente os EUA e os europeus, solidarizaram-se com
Israel, revoltados com os atos brutais dos milicianos do Hamas contra pacíficos
cidadãos israelenses.
Boa parte da
comunidade internacional passou a ter má vontade em relação aos palestinos,
chegando a admitir sua cumplicidade com os terroristas do Hamas.
Aproveitando a maré favorável, os chefes do regime sionista desfecharam uma
campanha mundial, acusando o Hamas dos crimes mais repugnantes e brutais,
rotulando os milicianos como verdadeiros animais selvagens, chegando a incluir
nessa classificação até mesmo o cidadão comum palestino.
O presidente de
Israel, Isaac Herzog, foi explícito: “Não há inocentes na Palestina. Toda a
nação é responsável pelos ataques do Hamas”. E concluiu: “Não é verdade essa
retórica de que os civis não estavam por dentro, não estavam envolvidos... Não
é absolutamente verdade e nós lutaremos até quebrar sua espinha dorsal”.
É o que estão fazendo.
Bombardeios aéreos diários e mísseis lançados em massa vêm destruindo moradias
e infraestruturas e matando vasto número de civis inocentes, a maioria crianças
e mulheres.
Coube a Gallant,
ministro da Defesa, completar o anúncio das maldades sionistas: “estamos
impondo um cerco total à Gaza. Nem eletricidade, nem comida, nem água, nem gás,
nem tudo. Estamos lutando contra animais humanos e os tratamos como tal”.
Passadas algumas
semanas, face aos devastadores ataques israelenses, que matavam até 200 civis
palestinos por dia, e dos efeitos do bloqueio desumanos vitimando o povo de
Gaza, os países europeus foram caindo em si. Manifestações de protestos com
multidões, a maioria de jovens, pipocaram em toda a parte.
Biden continuou ao
lado de seu “grande, grande amigo”, proclamando o direito de Israel se
defender, apesar de estar violando os direitos humanos.
Enquanto em toda
parte, pedia-se um corredor humanitário para permitir a entrada de alimentos,
medicamentos, combustível e água, Biden esbaldou-se, denunciando ações, em
geral, falsas, que teriam sido praticadas pelo Hamas.
Por onde quer que
fosse, o morador da Casa Branca acusava os terroristas das mais horríveis
ações, como “animais humanos” que seriam (conforme Herzog, o presidente de
Israel), na prática de torturas, estupros sistemáticos, desmembramentos, bebês
assados em fornos, corpos retalhados, assassinatos, bebês decapitados etc.
Com o passar do tempo
foram sendo conhecidas as terríveis sequelas dos bombardeios e bloqueios dos
bens e serviços necessários à vida. Verificou-se que a expressão “animais
humanos”, se aplicaria mais adequadamente aos responsáveis pelos bárbaros
ataques.
Como fruto deles, mais
de 85% dos palestinos tiveram suas casas destruídas, transformadas em ruínas ou
montes de escombros. Quase toda a infraestrutura urbana de Gaza sofreu o mesmo
destino.
Até hoje, 15 de março,
morreram mais de 31 mil palestinos, sendo que 70% eram mulheres e crianças. Já
semanas atrás, Lloyd Austin, o próprio secretário de Defesa dos EUA, revelou
que o total de mulheres e crianças mortas chegara a 25 mil palestinos.
Acima de 576 mil
pessoas no estreito de Gaza – um quarto da população total - estão próximas da
fome absoluta, como informou autoridade da ONU no Conselho de Segurança,
acrescentando que a generalização da fome poderia ser quase inevitável
(Reuters); 90% das crianças com menos de cinco anos sofrem uma ou mais doenças
infecciosas. Em cada 6 crianças,1 está à beira de morrer de fome. Como já
aconteceu com, pelo menos, 17 delas.
Enquanto no norte da
cidade de Gaza, 16% das crianças com menos de 2 anos – ou seja, 1 em cada 6
crianças – estão profundamente desnutridas ou desgastadas. Tudo indica que
Israel vem pondo em prática uma estratégia de promover a fome em massa com o
fim de se livrar dos palestinos, pela morte ou pela emigração, na busca de um
país que lhes permita viver em condições de vida dignas.
Completando o processo
de destruição do sistema de alimentação de Gaza, a ofensiva israelense já
exterminou 80% das frotas pesqueiras e os equipamentos usados por pequenos
barcos de pesca, reduzindo drasticamente a oferta de peixes, que poderiam aliviar
a fome de parte do povo.
Além de arrasar
plantações e pomares, Israel envenena terras com bombardeios que usam bombas de
fósforo (proibidas pela ONU) que tornam impossível a lavoura no futuro próximo.
O sistema de saúde não
escapou dos brutalmente eficientes ataques israelenses.
Bombardeados por mísseis e bombas, e invadidos por soldados israelenses,
praticamente todos os hospitais e centros de saúde do estreito foram devastados
sistematicamente, liquidando o sistema de saúde de Gaza. No momento, dos seus
35 hospitais, 23 não funcionam, 12 estão parcialmente fechados e apenas 1
atende, porém precariamente. (BBC,18/2/2024).
A princípio, Biden
ignorou essa catástrofe humana, atento aos desejos do premiê sionista. Sua
representante na ONU vetou sucessivamente três projetos propondo pausas
humanitárias na guerra, para socorrer os palestinos, embora contrariando a
posição da maioria do Conselho de Segurança da ONU, inclusive seus aliados da
União Europa.
Por fim, a reação cada
vez mais impactante da opinião pública mundial - que agora exigia um cessar
fogo permanente – acabou ecoando na Casa Branca.
Biden foi mudando,
começou a criticar os ataques indiscriminados e desproporcionais da aviação
israelense. A exortar Netanyahu a pausas nos ataques e licença para a entrada
de caminhões carregados de alimentos, remédios e outros bens essenciais à
sobrevivência da sacrificada população de Gaza.
O premiê sionista
topou, o que foi uma grande surpresa. Afinal, ele não estava atacando Gaza para
salvar a seu povo, mas para aniquilar outro.
O chefe sionista
provavelmente agiu assim para abrandar a exasperação das sensíveis europeus e
norte-americanos defensores dos direitos humanos. No entanto, tratou de reduzir
o alcance desse socorro aos palestinos.
Note que somente de 50
a 98 dos caminhões chegam efetivamente ao seu destino no estreito de Gaza,
quando 500 seriam necessários (Al Jazeera, 26/2/2024). Israel faz de tudo para
dificultar, interromper ou impedir as viagens, além de proibir a entrada de parte
das cargas transportadas, usando motivos ridículos.
Segundo o escritório
humanitário da ONU, no mês passado, o regime sionista só autorizou o acesso ao
norte de Gaza de 6 das 24 missões de ajuda (Al Jazeera, 7/3/2024).
Nessa mesma zona, onde
praticamente todas as construções foram transformadas em montes de pedras, o
World Food Programm tentou entregar alimentos necessários com urgência, mas os
militares israelenses não deixaram.
Israel cria ainda toda
a sorte de exigências burocráticas para retardar as entregas aos palestinos.
Diz Janti Soeripto,
chefe executivo da organização Save the Children que alguns itens são
rejeitados de forma aparentemente aleatória.
E ele dá exemplos:
“Ganchos obstétricos e caixas de madeira contendo brinquedos, também são
rejeitados”. O motivo é que poderiam ser usados pelos terroristas como armas...
(The Washington Post, 3/3/2024).
Os soldados parecem
ter sempre o gatilho das armas no seu dedo. Já alvejaram várias vezes
funcionários dos caminhões de suprimentos.
No mais grave dos
incidentes, os militares de Israel atiraram numa multidão que, enlouquecida
pela fome, aguardava a distribuição de suprimentos, matando 150 palestinos e
ferindo 760. Foi alegado que os soldados sentiram medo do povo, que, por sinal,
não os atacava, sequer os ameaçava.
A reação inicial do
comando militar não foi punir ou investigar as ações mortíferas dos soldados.
Optaram por mentir,
afirmando que não houve disparos e que a maioria dos palestinos morreram
pisoteados pela multidão ensandecida.
Mentira comprovada
quando prestadores de assistência verificaram nos hospitais grande número de
palestinos com marcas evidentes de balas nos seus corpos.
Indignados, Macron
(presidente da França), Anaelena Baerbor (ministra do Exterior da Alemanha),
Antonio Guterres (secretário-geral da ONU) e Josep Borrell (chefe da Política
Externa da União Europeia) condenaram o morticínio e exigiram que o Exército de
Israel explicasse de maneira completa o assassinato de tantas pessoas
inocentes.
Biden não se
pronunciou. Diz que está esperando as conclusões de uma
investigação do exército de Israel... Até agora, sempre atento aos interesses
de Israel, ele teria de transferir sua atenção para o lado oposto, se levasse
em conta os crimes internacionais praticados pelas hostes sionistas na Guerra
de Gaza.
O movimento dos
não-comprometidos vem crescendo rapidamente com a adesão dos jovens e demais
cidadãos progressistas dos EUA.
Além de se sair bem em
Michigan, o voto não-comprometido estendeu-se pelas primárias democratas em
diversos outros estados, como em Minnesota, onde obteve 1 em cada 5 sufrágios,
12,5% em Carolina do Norte e 7,5% em Washington.
Até hoje, conseguiu ganhar 20 delegados à Convenção Nacional do Partido
Democrata, que escolherá seu candidato a presidente e respectiva plataforma. Os
dirigentes da campanha Biden temem a ameaça do grupo não-comprometido de causar
a derrota do candidato à reeleição, pela perda de votos que normalmente seriam
dele.
Perigo maior vem dos
jovens do Partido Democrata, furiosos com a omissão de Biden na guerra de Gaza,
que nada faz para reprimir a brutalidade da ofensiva israelense.
Na verdade, Biden, ao
lado de críticas a ações do governo Netanyahu, tem auxiliado Israel
consideravelmente, com o envio quase diário de bombas e mísseis, usados para
matar palestinos, além de defender a aprovação no Congresso de mais US$ 14
bilhões em armamentos com o mesmo objetivo. Que se somam aos US$ 3,8 bilhões de
dólares anuais na constante ampliação do arsenal de Telavive.
A estratégia da Casa Branca é criticar as ações malignas do premiê Netanyahu na
guerra, ao mesmo tempo que continua fortalecendo as forças armadas de Israel,
atualmente empenhada no massacre do povo de Gaza.
É o mesmo que acusar
um ladrão, fornecendo-lhe, porém, gazuas, máscaras e veículos para poder roubar
com mais segurança e eficiência. Nessa, as forças progressistas não estão
caindo.
Exigem uma mudança
profunda na política de Biden no Oriente Médio, baseada não nos interesses de
Israel, mas no respeito aos direitos humanos e às leis internacionais.
O ponto de partida seria o estabelecimento de um cessar-fogo permanente,
seguido por uma reunião entre as partes e países interessados, para discutir os
termos da paz e as condições para a criação de um Estado Palestino
independente.
Caso Biden não tope,
ou tente enrolar, poderá perder votos que tinha como certo,
vindos dos grupos progressistas aqui mencionados.
Os riscos de derrota
seriam enormes. Só os jovens democratas são a maioria do eleitorado de 16 e 29
anos - grupo etário que chega a 17% do total de eleitores dos EUA.
Biden tem bons
argumentos para tentar convencer até os mais esquerdistas dos eleitores jovens.
No plano interno,
enquanto Trump fez a política dos grandes grupos econômicos, Biden em seu
governo agiu muitas vezes em defesa da classe média e dos trabalhadores, além
de ter vencido uma inflação difícil, oriunda da pandemia.
Na política externa,
ambos têm a mesma visão belicista e fortemente pró-Israel. A diferença é que
Biden tende a fazer algumas concessões, para agradar os progressistas do
partido.
Já Trump não vai ceder
um milímetro, apoiado pelo poder das grandes corporações e pelo enorme rebanho
evangélico.
Por outro lado,
enquanto Biden quer continuar a enviar ad aeternum dezenas de bilhões em armas
para manter a Ucrânia apta a enfrentar a Rússia, Trump já declarou que vai
tirar os EUA da guerra, talvez forçando um acordo de paz.
Evidentemente, o
republicano consegue reunir em si praticamente todos os defeitos que um homem
público pode ter.
No dia de encarar as
urnas, os progressistas norte-americanos ficarão numa séria dúvida: escolher
Biden ou o voto não-comprometido, com suas prováveis consequências. Seja qual
for sua opção, eles se sentirão arrependidos depois.
Fonte: Por Luiz Eça,
no Correio da Cidadania
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