Não "remoído", passado de centros
de tortura da ditadura militar cai no esquecimento
Quem passa pela
avenida Tiradentes, 441, na região da Luz, no centro de São Paulo, atravessa um
arco de pedra para chegar a uma agência do Banco do Brasil. Nada sinaliza que a
estrutura é o que resta do presídio Tiradentes, que, até 1972, encarcerava
homens e mulheres opositores à ditadura militar que vigorou no Brasil de 1964 a
1985. Nada menos que uma dessas pessoas é a ex-presidente da República Dilma
Rousseff.
Da mesma forma, os
belo-horizontinos que passeiam nas proximidades da praça da Liberdade raramente
identificam um belo casarão de 1912, na rua Santa Rita Durão, como a “Casa
Amarela”, local temido por militantes que lutavam pela volta da democracia. Era
lá que presos políticos eram espancados no auge da repressão. Atualmente, nela
funciona a Associação Feminina de Assistência Social e Cultura (Afas), uma
organização beneficente que presta assistência às famílias de policiais
militares e do Corpo de Bombeiros.
Esses são apenas
dois exemplos de 233 locais que serviram ao regime militar para torturar e
violar gravemente os direitos humanos, levantados pela professora de história
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Heloísa Starling. Ela participou
da Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada em 2012 pelo governo federal para
apurar os crimes cometidos pelo Estado brasileiro no período ditatorial.
Os relatórios da CNV foram apresentados à sociedade no fim de 2014.
No período em que o
país foi regido pelos militares, sem eleições diretas e sem garantias
políticas, ocorreram oficialmente 434 mortes e desaparecimentos de opositores
do regime, segundo a CNV. Há indícios de que o número real seja muito superior
– apenas no campo, o quantitativo deve passar dos 1.600. O número de pessoas torturadas durante a ditadura militar,
segundo estudo divulgado pela Human Rights Watch em 2019 teria sido superior a
20 mil.
Muitas dessas pessoas
passaram por pelo menos um dos endereços apresentados no levantamento. Eles
estão distribuídos em 21 Estados brasileiros e no Distrito Federal e incluem
sete navios-prisão e 17 casas clandestinas organizadas sem aparato do Estado, mas
serviam aos mesmos propósitos.
A maior parte desses
lugares de violação dos direitos humanos, no entanto, não apresenta qualquer
sinalização sobre o uso abusivo feito pelo regime militar, e alguns estão
abandonados, em avançada fase de degradação. As honrosas exceções são o Memorial da Resistência na cidade de São Paulo, o Lugar de Memória (Lume) em
Curitiba, o Memorial dos Direitos Humanos em Belo Horizonte e o Memorial da
Resistência de Fortaleza.
Para Starling, há uma
tentativa de apagamento histórico ao abandonar os locais de repressão ou
ocupá-los sem o devido cuidado de preservação. “Se você apaga o passado, vai
ter problema para pensar o futuro. Esses lugares estão nos contando uma
história, que é bom não esquecermos se quisermos defender a democracia. Essa é
a utilidade do passado nesse caso”, avalia.
·
Prisão “discreta” no
coração de São Paulo
No caso do presídio
Tiradentes, existe farta documentação sobre o espaço e os opositores do regime
que passaram por ele. Além da ex-presidente Dilma Rousseff, o ex-deputado
federal José Genoino e a ex-ministra da Secretaria de Políticas para as
Mulheres da Presidência da República Eleonora Menicucci também passaram pelo
centro de detenção. No local em que funcionou, hoje uma agência do Banco do
Brasil, a população passa diariamente ao largo do peso dessa memória.
“Nunca soube que aqui
tinha sido um presídio, é uma pena que não tenha a sinalização. Eu sabia que
nessa região a Dilma tinha ficado presa porque estive no Memorial da
Resistência, que é aqui perto, mas não imaginava onde”, afirma a geógrafa e
funcionária terceirizada da agência Débora Lima, 42.
O comerciante Robson
Gomes, 47, conta que vai à agência há mais de 15 anos e nunca soube nada sobre
aquele arco. “Acho ruim a história da cidade não estar sendo cuidada”, diz.
Segundo a pesquisadora
do Memorial da Resistência de São Paulo Júlia Gumieri, o arco de entrada do
Tiradentes já teve uma placa informativa, porém ela foi roubada e não houve
reposição. A Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, por sua vez, informa,
por nota, que “o Portal de Pedra do Antigo Presídio Tiradentes foi tombado pelo
Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico
(Condephaat) em 1985, e, até o momento, não há registros de pedidos de
intervenção nos bens”.
“A gente cria esse
estereótipo que as coisas aconteciam nos porões, escondido, e não era assim,
pelo contrário. A repressão estava na cidade inteira, na vida cotidiana de todo
mundo”, relata Gumieri.
Para o publicitário e
ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Emílio Ivo Ulrich, 76,
que esteve preso no Tiradentes, em 1970, a descaracterização do lugar aponta
descaso com as vítimas das arbitrariedades ocorridas durante a ditadura militar.
“Demoliram o presídio
e construíram uma agência bancária, é um absurdo. Nenhum governo até hoje fez
um esforço consistente para resgatar a memória da ditadura e o mal que ela fez
ao Brasil. Somos o país da não memória e um país subjugado ao militarismo. Por
isso, não há interesse em lembrar o passado”, opina. Emílio Ulrich é autor do
livro Tortura não tem fim, da editora Insular, em que relata sua
passagem pelos órgãos de repressão.
Não se sabe ao certo
quantos opositores ao regime passaram pelo Tiradentes. Em 1972, no entanto, ao
menos 200 internos decretaram greve de fome por melhores condições e pelo fim
das torturas contra presos comuns. Relatos de presos políticos, registrados no
site do Memorial da Resistência de São Paulo, afirmam que as agressões eram
praticadas na madrugada e muitos presos comuns eram executados pelo conhecido,
à época, esquadrão da morte.
O presídio sempre
esteve relacionado com o abuso e o autoritarismo em sua história. Quando foi
construído, em 1852, era chamado de Cadeia da Luz e servia como prisão e
depósito de pessoas escravizadas. Ele também funcionou como cárcere político
durante o Estado Novo, de 1937 a 1945, quando recebeu, por exemplo, o escritor
Monteiro Lobato, notório opositor de Getúlio Vargas.
·
Glamour, atual função
social de antiga prisão desativada
Outro espaço de São
Paulo onde diversas violações aos direitos humanos foram cometidas durante o
regime de exceção, mas também espaço de muita resistência às arbitrariedades, é
o presídio do Hipódromo.
Ele fica na rua de
mesmo nome, número 600, no Brás, bairro da zona leste da capital paulista.
Atualmente, é um casarão abandonado em meio a prédios residenciais e pouco
comércio. Os moradores sabem que o local já foi um presídio e que depois foi
utilizado pela Fundação Casa como espaço de detenção para crianças e
adolescentes contraventores, mas o assunto não agrada muito aos vizinhos. “Ele
não está abandonado, de tempos em tempos eles usam para filmagens”, disse uma
moradora, que pediu para não ter o nome divulgado.
“Direto tem filmagem
[no presídio], vive aparecendo ator famoso. Já vi o Seu Jorge e a Cléo Pires.
Aquela série Irmandade [Netflix, 2019], uma parte foi gravada
aí”, afirma Gilmar Silva Souza, 56, zelador e morador do prédio em frente à
construção. Gilmar conta que não sabia que o presídio havia recebido presos
políticos na época da ditadura militar. Para ele, o espaço deveria ser
revitalizado. “Poderia reformar e utilizar como um hospital, um local para
idosos, não deixar fechado a maioria do tempo, como está”, comenta.
Procurada, a Fundação
Casa respondeu, via assessoria de imprensa, que continua sendo a administradora
do Hipódromo, mas sem intenção de reativá-lo. Em 2019, a entidade chegou a
negociar com o Estado a devolução do edifício, mas não houve acordo. No momento,
o Hipódromo aguarda, com outros 43 imóveis desativados da fundação, uma decisão
sobre qual finalidade a entidade dará a ele. Segundo o órgão, antes da
pandemia de covid-19, cerca de 9 mil adolescentes eram abrigados no sistema;
atualmente são 4.500.
As filmagens também
foram confirmadas pela instituição, que informou se tratar de uma parceria em
que o espaço é cedido e a produtora oferece uma contrapartida que pode ser
financeira ou, por exemplo, uma oficina aos menores sob custódia da fundação.
A partir de 1972, com
o fechamento e demolição do presídio Tiradentes, diversos presos políticos
começaram a ser dirigidos para lá. Em 1976, a cantora Rita Lee esteve cerca de
15 dias detida na ala feminina do Hipódromo, mesmo estando grávida de três meses.
O argumento da repressão para prendê-la foi que depois de uma “batida” das
forças militares na casa da cantora, foram encontrados “vestígios de maconha”.
As condições do local,
naquela época, seguiam degradantes. Em uma carta dirigida a juízes auditores da
II Circunscrição Judiciária Militar, datada de 1° de maio de 1976, presos
políticos detidos no Hipódromo, relatam:
“A preocupação com as
condições sanitárias, em nossa Ala de presos políticos, ressalta em primeiro
lugar. As deficiências de higiene são gritantes. As canalizações de esgoto
exalam um forte odor fétido, que verdadeiramente empesteia o lugar. Delas saem
igualmente uma quantidade invencível de baratas, resistentes a qualquer esforço
físico ou tratamento químico objetivando eliminá-las”. A carta é assinada por
23 presos políticos, que dividiam uma ala do presídio.
Ø Minas: passado de tortura, uma constante “surpresa”
Já o Serviço de
Informação da Polícia Militar de Minas Gerais – G2 passou a ocupar o sobrado da
rua Santa Rita Durão, na esquina com a rua Sergipe, na capital mineira, em
1944. A partir do golpe de 1964, começa a ser utilizado como centro de
repressão e de triagem de presos políticos, “bem próximo do Palácio da
Liberdade e do Palácio Episcopal”, descreve o relatório da
Comissão da Verdade de Minas Gerais.
A partir de 1976, o
local abriga a Afas, organização social beneficente formada por mulheres de
militares que funciona até hoje. Segundo a assessora militar da associação,
capitã da PMMG Fabiana Garcia, a Afas tem conhecimento superficial sobre o
passado de repressão de sua sede.
“Quando soubemos,
ficamos inclusive surpresos, porque não tem nada na casa que demonstre que ela
foi usada como prisão”, afirma. Segundo a capitã, a equipe da Afas foi
informada sobre a história do casarão, tombado pelo Instituto Estadual do
Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA-MG) quando foi
necessário realizar uma reforma.
·
Rio: mais histórias
mal contadas
Foi por meio de uma
provocação do Coletivo RJ Memória, Verdade, Justiça e Reparação, que o
Ministério Público Federal do Rio de Janeiro (MPF-RJ) instaurou um inquérito
civil, no início de março, para analisar a viabilidade de criar na antiga sede
do Departamento de Ordem Pública e Social do Rio de Janeiro (Dops-RJ) um Centro
de Memória e Direitos Humanos.
O imóvel, localizado
na rua da Relação, 40, na
esquina com a rua dos Inválidos, no bairro da Lapa, está fechado pelo menos
desde 2009 e em fase avançada de deterioração. A administração do local é de
responsabilidade da Polícia Civil do Rio de Janeiro (PCRJ).
Sobre o tema, a
Polícia Civil informa, em nota, que “o imóvel, atualmente, está em obras, com
previsão de conclusão para este ano. No espaço, será implantado o Centro
Cultural da Polícia Civil, em cumprimento à previsão contida na Lei Orgânica da
instituição”. Na mesma nota, a PCRJ declara que o “prédio contará com espaços
dedicados a atividades culturais, interlocução com a sociedade civil e uso
compartilhado com outros órgãos do estado, além do Museu da Polícia
Civil”.
Sobre um possível
trabalho de arqueologia no prédio do antigo Dops-RJ inserido no projeto do
Centro de Memória, o procurador da República Julio José Araújo Júnior, autor do
inquérito civil, acredita que seria importante. “Pode ajudar a elucidar casos e
comparar narrativas. Ao criar condições para que esse debate seja feito, também
temos que viabilizar a reflexão, a apuração e o entendimento sobre os fatos que
se passaram naquele espaço”, avalia.
Entre os modelos que
podem servir de exemplo para o antigo Dops-RJ, Araújo Júnior cita o Museu do
Trabalho e dos Direitos Humanos, que será inaugurado em 5 de abril, em Barra
Mansa (RJ). O museu funcionará onde antes estava o 1° Batalhão de Infantaria Blindada
(BIB). Ele foi resultado de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado
entre a prefeitura da cidade, dona do imóvel, e o MPF-RJ, em função dos
resultados das investigações da Comissão Municipal da Verdade de Volta Redonda
(CMV-VR).
O 1° BIB foi
transformado, a partir do golpe militar de 1964, em um centro de
interrogatórios e tortura de trabalhadores e sindicalistas, principalmente da
Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), mas que também perseguia religiosos
contrários ao regime autoritário.
Um exemplo das
arbitrariedades ocorridas no batalhão ocorreu em 1971, quando 15 militares
foram presos e torturados e quatro deles não resistiram à violência e morreram.
Eles tiveram seus corpos ocultados, e o episódio só veio a público em 2014, por
meio de investigações da Comissão da Verdade. Até então, os militares eram
considerados desaparecidos.
·
Resistência: sociedade
civil é motor de poucas iniciativas de preservação da memória
Os espaços de
repressão e resistência que se transformaram em centros de memória, memoriais
ou museus no Brasil têm em comum a participação ativa da sociedade civil em sua
elaboração. É o caso do Memorial da Resistência de São Paulo, inaugurado em
2009 e instalado no largo General Osório, 66, Bom Retiro, na capital paulista,
onde funcionou o Departamento Estadual de Ordem Pública e Social de São Paulo
(Deops/SP).
O Deops/SP compete com
o DOI-Codi como um dos espaços de repressão mais violentos da história da
ditadura militar. Foi onde atuou, entre 1968 e 1977, o delegado Sérgio Fernando
Paranhos Fleury, um dos mais notórios torturadores do Brasil.
“A sociedade civil
recorda esses lugares na ausência do Estado. O que nos motiva é tornar visível
uma história que a história oficial não quer reconhecer”, acrescenta Maurice
Politi. Além de diretor-executivo do Núcleo Memória, Politi é ex-preso político
e ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), movimento atuante no
enfrentamento civil à ditadura militar. Foi preso em 1970, aos 21 anos, e
durante mais quatro esteve em diversos aparelhos de tortura e detenção do
Estado, como DOI-Codi-SP, Deops-SP, presídio Tiradentes, presídio do Carandiru,
penitenciária regional de Presidente Venceslau e presídio Hipódromo. Depois de
libertado, foi expulso do Brasil e só pode retornar em 1980, após a anistia.
Politi foi um dos
ex-presos políticos empenhados em desenvolver e manter o projeto do Memorial da
Resistência. Atualmente, entre seus objetivos, junto ao Núcleo Memória, está a
criação de mais dois memoriais nos mesmos moldes. Um deles já está em andamento
e deve ser inaugurado em 2025. O “Memorial da Luta pela Justiça – Advogados
Brasileiros contra a Ditadura” vai funcionar no edifício onde operavam as três
auditorias militares de São Paulo, na avenida Brigadeiro Luís Antônio, 1.249, na região central da capital. Nas auditorias militares
ocorriam os processos contra os cidadãos que, segundo o regime, cometiam crimes
políticos que se enquadravam na Lei de Segurança Nacional (LSN). O projeto do
novo memorial é uma parceria entre o Núcleo Memória e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP).
Outro memorial
aguardado na cidade de São Paulo é o que ocupará o local onde se iniciou a
Operação Bandeirantes (Oban), em 1969, com o intuito de obter informações,
reprimir e perseguir membros de movimentos que se organizavam contra o regime.
Em 1970, o aparato clandestino torna-se oficial e passa a se chamar
Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa
Interna (DOI-Codi).
Apelidado pelos
próprios militares de “sucursal do inferno” e “casa da vovó” (onde se pode
tudo), entre outros nomes, O DOI-Codi de São Paulo recebeu e torturou cerca de
6.700 presos e pelo menos 50 deles morreram em suas instalações, segundo
documentos do próprio Exército resgatados pela CNV.
Segundo o Núcleo
Memória, o DOI-Codi funciona até 1982, quando o processo de fechamento é
iniciado. Durante todo o tempo esteve situado no mesmo local, rua Tutoia, 921, Vila Mariana,
região centro-sul da capital paulista. Neste endereço hoje funciona o 36°
Distrito Policial da Vila Mariana, da Polícia Civil.
Em 2010, Ivan Seixas,
ex-preso político que passou pelo DOI-Codi aos 16 anos, com sua mãe, seu pai,
morto na mão dos torturadores, e sua irmã, solicitou o tombamento do prédio,
concedido pelo Condephaat em 2014. Desde então, o Núcleo Memória, que já foi presidido
por Seixas, cobra do governo do estado de São Paulo a passagem da gestão do
prédio da Secretaria da Segurança Pública para a Secretaria de Cultura.
Quando questionada
sobre o projeto para transformar a antiga sede do DOI-Codi em um memorial, a
Secretaria de Cultura de São Paulo respondeu que “a pasta já possui uma
instituição dedicada a contar a história deste período, o Memorial da
Resistência, que conta com amplo acervo histórico”.
Enquanto o projeto do
memorial não se concretiza, o Núcleo Memória realiza mensalmente visitas
guiadas aos prédios do DOI-Codi. “Nós que fomos presos e combatemos a ditadura
– e alguns pagaram com a própria vida – acreditamos que também é nossa missão
tornar esses fatos, as prisões, os locais de tortura, conhecidos. [É necessário
que] essa história seja entendida pelos mais jovens e não aconteça mais”,
afirma Politi.
“Nós éramos jovens, eu
tinha 22 anos [ao ser presa], tínhamos crescido em uma democracia. Eles
chegaram com um aparato institucionalizado, métodos de tortura… deveriam
reconhecer o que fizeram”, diz a professora de história da Universidade de São
Paulo (USP) Yara Prado, 77.
Ela foi militante da
VAR-Palmares, presa em Porto Alegre, em 1970, e enviada para São Paulo, onde
foi torturada no DOI-Codi pelo Estado. No último dia 20, ela voltou pela
primeira vez à rua Tutoia, após ter passado pelo local como prisioneira, para
participar da visita guiada e dar seu depoimento. “O que mais me dói é a
população brasileira não saber o que realmente aconteceu porque eles [do
Exército] não assumem [as torturas]”, lamentou Prado.
·
Na rua, no comércio,
no estádio: tortura nem sempre era escondida
Os espaços de
resistência não são apenas aqueles onde ocorria a institucionalização da
violência, da tortura e da morte durante o regime militar. A repressão, por
meio de atentados e execuções à queima-roupa, ocorria na cidade, em espaços
públicos, aos olhos dos cidadãos. A publicação Memórias resistentes,
memórias residentes mapeia 36 desses lugares apenas no município de
São Paulo, espalhados por seis regiões da cidade.
A alameda Casa Branca,
incrustada no bairro Jardim Paulista, foi palco, em 4 de novembro de 1969, da
execução do dirigente da ALN e ex-deputado federal pelo PCB Carlos Marighella.
Para marcar os 30 anos de seu assassinato, em 1999, uma inscrição de memória
foi colocada pela Prefeitura de São Paulo, após a reivindicação de grupos de
memória e direitos humanos, na altura do número 815 da travessa. Em uma pedra,
uma placa explicava que naquele lugar Marighella havia sido assassinado.
Na data, todos os
anos, o monumento recebe a visita de um grupo de companheiros e familiares de
Marighella, além de militantes de direitos humanos. Parte da vizinhança, de
classe média alta, não vê a homenagem com entusiasmo. A placa não está mais lá,
foi furtada há pelo menos oito anos, e a pedra já foi vandalizada mais de uma
vez. A insatisfação de alguns vizinhos é evidenciada pelo silêncio. “É apenas
uma pedra”, disse uma moradora indagada sobre o monumento. Ela se negou a dar o
nome e continuar a conversa.
Já a publicitária
Miryan Valejo, 55, moradora da alameda, conta que a maioria dos vizinhos “não
conhece o monumento ou não dá muita importância. “Normalmente, quando tem
alguém aqui, são pessoas que vieram de outro lugar”, conta. “São pessoas que
vieram fazer algum estudo, falar sobre a época [da ditadura militar]. Já vi
professores dando aulas aqui com alunos. […] Muita gente, do próprio bairro,
sabe o que é o monumento, mas considera o Marighella um bandido, um comunista,
acha que ele mereceu”, complementa a educadora física Caren Brustelo, 35.
·
Periferia também
abriga memórias importantes
Atualmente, o antigo
estádio Maria Zélia abriga o Ambulatório Médico de Especialidade (AME) Maria
Zélia, na rua Jequitinhonha, 368, no
bairro Catumbi, zona leste da cidade. O local, porém, viveu momentos de
repressão e violência durante o regime de exceção na Vila Maria Zélia,
construída na década de 1910 para moradia de funcionários de uma fábrica de
tecidos. Em 1970, foi realizada no estádio uma comemoração do 1° de maio, Dia
do Trabalhador, autorizado pelas autoridades policiais. Mesmo assim, cerca de
20 pessoas foram presas por carregar um panfleto que dizia “1° de maio é dia de
luta, e não de festas”, segundo o livro Memórias resistentes, memórias
residentes.
Elas foram presas e
encaminhadas para o Deops/SP, onde foram torturadas. O operário Olavo Hanssen,
que militava no Partido Operário Revolucionário Trotskista (PORT), foi
torturado e morto após omissão de socorro testemunhada pelos companheiros de
prisão. A versão oficial da época dizia que Hanssen havia cometido suicídio,
porém ele teve seu assassinato reconhecido em 1996 pela Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos Políticos.
Não há nenhuma menção
ao histórico de resistência no AME Maria Zélia, aberto em 1985, gerido pela
Organização Social (OS) Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina
(SPDM) desde novembro de 2005. Indagada, a Secretaria de Estado da Saúde de São
Paulo respondeu que “não identificou registros que relacionem o prédio citado
ao período da ditadura militar. O terreno foi cedido pela administração pública
federal para o governo do estado em 1988. Por se tratar de um patrimônio
público, todos devem zelar, preservar e defender o espaço”.
Para a farmacêutica
Daniela Duarte, 45, existe um desinteresse do Estado em preservar histórias de
repressão e resistência. Ela está entre os proprietários atuais do imóvel onde
funcionou o restaurante Varella, na rua da Mooca, esquina com rua Antunes Maciel.
O restaurante ficou conhecido após uma emboscada a opositores do regime.
Segundo Duarte, a
família nunca foi procurada por nenhum órgão público para discutir o registro
ou sinalização do local como espaço de memória. “Soubemos que o restaurante foi
local de um atentado na época da ditadura depois da compra do imóvel pelo meu pai.
Ele ficou fechado por muito tempo, algumas pessoas acham que por causa disso”,
conta a farmacêutica.
Segundo o livro Memórias
resistentes, memórias residentes, o restaurante Varella foi palco de uma
delação em 14 de junho de 1972. O dono do estabelecimento identificou quatro
militantes da ALN e ligou para o DOI-Codi. Em pouco tempo os agentes da
repressão chegaram ao local e prenderam três deles, Iuri Xavier Pereira, Ana
Maria Nacinovic Corrêa e Marcos Nonato da Fonseca. Não se sabe ao certo onde
foram mortos, mas há comprovação de que o trio passou pelo DOI-Codi antes de os
corpos serem apresentados no Instituto Médico Legal de São Paulo. O quarto
denunciado, Antônio Carlos Bicalho Lana, conseguiu fugir, mas foi morto pelos
mesmos agentes que prenderam seus companheiros cerca de um ano depois.
·
O risco de não “remoer
o passado”
O governo do
presidente Lula optou por manter a mesma política do silêncio em relação às
manifestações que marcam os 60 anos da ditadura militar em 2024. A Presidência
da República ainda lida com os resultados das investigações da Polícia Federal
sobre o envolvimento de Jair Bolsonaro e seus apoiadores mais próximos das
Forças Armadas na tentativa de golpe no dia 8 de janeiro.
Para Maurice Politi,
não é a melhor estratégia. “A impunidade [de militares e torturadores] foi um
erro. E é lamentável que um governo eleito com o apoio de forças progressistas
não tenha a coragem de se posicionar. […] Se tivéssemos cuidado melhor do passado,
se a anistia não tivesse atingido os torturadores, se a impunidade não tivesse
existido, claro que teríamos menos riscos de voltar a um regime autoritário,
ainda mais a tentativa golpista de 8 de janeiro”, afirma.
A pesquisadora Julia
Gumieri, do Museu da Resistência de São Paulo, acrescenta que a passagem dos
governos militares para os civis, no período da democratização, foi feita sem
alterar as instituições, com “a máquina funcionando da mesma forma”. Para ela,
foi adotada uma estratégia política que prega ser necessário “buscar a
conciliação e o silêncio para se reorganizar o país democraticamente”.
“O caminho que se
escolheu, de abraçar o silêncio institucional, gera consequências. Permite que
espaços autoritários das Forças Armadas se neguem a fornecer documentos. Também
criam um sentimento de dicotomia, como se fosse uma questão de escolher um lado.
E ainda mantém atuantes instituições que não foram reformadas e conseguem
influenciar parte da população”, avalia.
Professora de história
da UFMG, Heloísa Starling percebe que, ao “blindar” os acontecimentos do
período ditatorial, um determinado segmento da sociedade tenta se proteger,
porque “o historiador é um perigo para as tiranias”. “O esquecimento é uma
tentativa de eliminar as histórias que precisam ser contadas, para que o
passado nos ofereça um repertório para avaliar nossas decisões no presente. Por
isso, a memória é importante. Os gregos diziam que o esquecimento é pior que a
morte. Porque, com a morte, as pessoas ainda podem se lembrar, a pessoa ainda
existe. No esquecimento, não; o que é esquecido não existe mais”
Fonte: Por Ludmilla
Pizarro, da Agencia Pública
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