As lições dos casos de Daniel Alves e
Robinho sobre machismo no futebol
A prisão do ex-jogador Robinho,
condenado por um estupro coletivo na Itália, e
a saía da prisão de Daniel Aves, condenado em
primeira instância por um estupro na Espanha, dominaram o noticiário esportivo nos
últimos dias.
Os dois casos são
muito simbólicos não apenas pela fama dos ex-jogadores, mas porque, embora
denúncias de violência sexual contra mulheres não sejam raras no futebol, a
real responsabilização de jogadores por crimes e atos de machismo é, dizem
analistas ouvidas pela BBC News Brasil.
Robinho foi condenado
na Itália a nove anos de prisão por ter estuprado uma jovem albanesa com 5
outros homens. Suas possibilidades de recurso se esgotaram no ano passado,
quando o ex-jogador estava no Brasil - que não extradita cidadãos brasileiros.
Mas agora o Superior
Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que Robinho vai cumprir a pena no Brasil e o
futebolista foi preso no dia 21. Sua defesa recorreu ao STF, mas não conseguiu
autorização para que ele aguardasse a decisão em liberdade.
Daniel Alves também
foi condenado por um estupro e ficou 14 meses preso na Espanha. Ele foi solto
na segunda (25/3), após pagar uma fiança de 1 milhão de euros (cerca de R$ 5,45
milhões), e aguarda em liberdade o julgamento dos recursos.
A justiça determinou
que ele não pode se aproximar da vítima e reteve seus passaportes — ele tem
nacionalidades brasileira e espanhola —, proibindo-o de deixar a Espanha. Ele
também terá de se apresentar uma vez por semana ao tribunal.
Mas o que tudo isso
diz sobre machismo no futebol?
A responsabilização
pelos crimes é algo que depende da Justiça. Mas, no caso de Robinho, ela vem em
um momento em que há algo novo no esporte: uma cobrança por um posicionamento
de clubes, entidades e personalidades esportivas, diz Renata Mendonça, comentarista
de futebol do canal SporTV e cofundadora do site Dibradoras.
"O que aconteceu
por muito tempo é que, por ser um ambiente quase exclusivamente masculino, e os
homens não querem constranger uns aos outros, ninguém pedia a opinião das
pessoas do futebol", diz Mendonça. "E quando pediam, eles respondiam
'ah, tem que ver' ou 'é uma questão da Justiça'."
"Isso é óbvio.
Não cabe a mim ou a eles julgar o Robinho - ele foi julgado em 3 instâncias na
Itália. Não é nosso papel analisar provas. Mas não se pode ignorar que
jogadores de renome estão reproduzindo uma cultura de violência contra a mulher",
diz a comentarista.
"O posicionamento
que queremos não é se eles acham que a pessoa é culpada ou não, não é nem sobre
um crime específico, mas sobre uma cultura que diminui e normaliza violência
contra a mulher."
O que se cobra, afirma
ela, é que os clubes, entidades e personalidades "demonstrem empatia e
entendam que é papel de todos combater essa cultura que normaliza o
estupro".
·
Mais pressão
Inicialmente, a única
dirigente que havia comentado os casos de Robinho e Daniel Alves havia sido
Leila Pereira, presidente do Palmeiras e chefe da delegação da seleção
brasileira.
Primeira mulher a
ocupar o cargo, ela deu fortes declarações à imprensa e cobrou uma punição
severa de crimes contra as mulheres.
"A pessoa tem que
pagar, mas não financeiramente. Condenado tem que ir para a cadeia",
afirmou.
Seu posicionamento foi
importante para aumentar a pressão sobre outros dirigentes e personalidade, diz
a escritora e analista esportiva Milly Lacombe.
Após a fala de Leila,
o técnico da seleção, Dorival Junior, e o capitão do time, Danilo, comentaram
os casos.
A pressão por
posicionamento também levou a CBF a emitir uma nota sobre os casos na sexta
(22), se solidarizando com as vítimas e listando ações da entidade para
combater machismo, racismo e homofobia.
"Em um ambiente
em que o machismo impera, nós, homens, precisamos estar na linha de frente para
combater não apenas a violência sexual, mas todo tipo de violência", diz a
nota, assinada pelo presidente Ednaldo Rodrigues.
A própria CBF teve que
lidar com um escândalo em 2023, quando a ex-diretora Luísa Rosa acusou o então
presidente Rogério Caboclo de assédio moral, assédio sexual e discriminação.
Renata Mendonça diz
que o caso de Robinho é bastante representativo das mudanças nas posturas das
personalidades do esporte, mas também na forma como a mídia e o público se
comportam.
O atacante foi
condenado em três instâncias - e cada uma delas em uma fase diferente do
ambiente esportivo.
"Logo após a
primeira condenação, em 2017, ele teve um jogo e simplesmente não foi
questionado, ninguém falou absolutamente nada", lembra Mendonça.
A segunda condenação,
em 2020, teve mais de repercussão.
"A verdadeira
virada de chave do caso foi após a publicação naquele ano do GloboEsporte.com
das gravações de conversas de Robinho autorizadas pela justiça italiana",
lembra Renata.
Em uma das gravações,
o jogador dizia: "Estou rindo, porque não estou nem aí, a mulher estava
completamente bêbada, não sabe nem o que aconteceu".
Muito pressionado, o
Santos acabou voltando atrás na contratação que havia feito do jogador, mas a
CBF, por exemplo, não foi cobrada a se manifestar.
"Em 2022, quando
ele foi condenado em última instância, e agora em 2024, quando ele começa a
cumprir a pena no Brasil, você percebe uma cobrança muito maior, uma mudança de
postura até da mídia", afirma Mendonça.
A grande resposta
pública à soltura de Daniel Alves para aguardar o julgamento em liberdade
também é um sinal dessa mudança, dizem as analistas.
·
Atraso
As pessoas finalmente
estão entendendo que o futebol não é algo à parte da sociedade, diz Leda Maria
da Costa, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora do
Nepess, o núcleo de esportes da universidade.
"Sempre houve no
futebol uma tentativa de diferenciar, de criar uma barreira entre a atitude do
jogador dentro e fora do campo", diz Costa, lembrando que essa postura é
ainda mais forte em caso de ídolos do esporte.
Isso gera uma cultura
que é permissiva em relação aos ídolos cometerem crimes, afirma a pesquisadora,
o que transformou o futebol em um "palanque para a legitimação da
inferiorização da mulher".
"Mas o futebol
não é algo à parte, se esse ídolo criou fama, dinheiro, fortunas, foi a partir
do futebol. O Robinho estava na Itália (onde cometeu o crime) por causa do
futebol", afirma.
Costa diz ainda que o
futebol vai muito além dos talentos individuais.
"O futebol é um
bem social, um patrimônio social, e ele precisa ter um diálogo com as demandas
da sociedade", afirma Costa. "Ele precisa abraçar essa causa
importante que é a luta contra a violência contra a mulher."
Segundo Costa, a
reação à soltura de Daniel Alves, a prisão de Robinho e a cobrança de uma
postura dos dirigentes mostram que esse cenário está mudando - mas ainda a um
ritmo muito lento.
Renata Mendonça
concorda. "A sociedade já evoluiu no debate há mais tempo do que o
futebol", diz ela.
A comentarista lembra
que os clubes têm um papel muito forte - e portanto uma grande responsabilidade
- na formação dos jogadores desde pequenos.
"Esse jogador vai
pro clube com 13, 14, 15 anos, viver em um mundo só do clube, só do futebol,
convivendo 100% do tempo em um ambiente masculino e sem referências
femininas", afirma.
"É muito difícil
um garoto criar empatia em um cenário em que o sucesso para um jogador são
títulos, fama, carros e mulheres - como um troféu. Eles acham que se
conquistarem títulos, podem pegar a mulher que quiserem, que ninguém vai dizer
não para eles."
Para mudar esse
cenário, os clubes precisam investir pesado em educação, para formar não só
jogadores, mas homens conscientes, diz Milly Lacombe.
"Por mais
importante que seja, por mais que dê uma sensação de Justiça, a gente não vai
mudar o mundo prendendo um estuprador por vez. Só a educação, a formação e
conscientização das pessoas vai combater verdadeiramente o machismo",
afirma.
A presença de mais
dirigentes mulheres e de mais mulheres no mundo do futebol é essencial, diz
Mendonça.
"Agora, se um
jovem vê, como temos agora, uma mulher como chefe da delegação, ele vai pensar
duas vezes, não vai se sentir tão confortável para reproduzir um comportamento
machista. A cultura vai mudando."
·
Memória
Em fevereiro deste
ano, a imagem de Daniel Alves foi retirada do museu do Bahia, time no qual o lateral
jogou entre os 15 e 19 anos.
Isso traz uma
discussão importante sobre como lidar com a memória dos clubes em casos como
esses, afirma Leda Maria da Costa.
Segundo a
pesquisadora, o caminho talvez não seja simplesmente apagar a memória do
jogador, mas mencionar sem fazer homenagem e explicando tanto o papel no time
quanto o crime cometido.
"É difícil
desmistificar a imagem do Robinho para quem o viu dar aquele drible contra o
Corinthians (em um jogo contra de 2015). Muita gente foi levada a torcer para o
Santos por causa do Robinho", diz ela.
"Mas chega um
ponto em que a atitude da pessoa não tem mais como se encaixar com o clube.
Estuprar alguém grupalmente é algo extremamente grave, e isso tem que ser
apontado quando se lembra do jogador."
Ela faz um paralelo
com a derrubada de estátuas de pessoas que cometeram genocídios, que fizeram
parte do processo de escravização.
"Às vezes você
pode derrubar a estátua, mas não necessariamente. Você pode manter, desde que
faça esse indicativo, para que uma memória seja construída de forma
educativa."
Milly Lacombe diz que
os clubes precisam desses espaços de memória para que as pessoas se eduquem.
"Não sei se tirar
a foto, como se a pessoa não tivesse existido... O Daniel Alves foi um jogador
importante, um grande lateral, mas fora do campo cometeu esse crime e isso tem
que ser dito. Até para educar sobre o problema da violência. Apagar totalmente
a pessoa também pode ser uma forma de fingir que a violência não existe",
diz ela.
Fonte: BBC News Brasil
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