Da Reforma Agrária a um novo sistema
alimentar
A formação histórica
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) representa as lutas
travadas no processo das desigualdades sociais e econômicas no mundo do rural
brasileiro. Ela se insere dentro das contradições do que foi chamado de
modernização conservadora (STEDILE; FERNANDES, 2012). A modernização
conservadora da agricultura aperfeiçoou as tecnologias e reforçou a
concentração da propriedade (GRAZIANO, 1982), engendrando um processo de
intenso êxodo rural do campo brasileiro. A contradição da modernização
conservadora, no que tange à questão agrária brasileira, fez emergir o MST, com
o propósito de frear esse projeto de desenvolvimento desigual para o campo.
“Somos frutos de muitas reflexões. Somos frutos da teorização de muitas
experiências de lutas que nos antecederam, dos movimentos camponeses do Brasil
ou de movimentos camponeses da América Latina” (SANTOS, 2004, p. 119).
Estudos de referência
sobre a reforma agrária no Brasil (BARONE; FERRANTE; BERGAMASCO, 1994;
GRAZIANO, 1996; BERGAMASCO, 1997; FERNANDES, 1998; OLIVEIRA, 2007) mostram quão
intensamente, desde os anos 1980, a discussão sobre reforma agrária se fixou na
(re)distribuição da terra e no acesso a recursos, mas deixou de lado a questão
dos mercados. Como afirma Norder (1997), esses são projetos criados muito mais
para resolver situações de conflitos localizados do que situações de pobreza e
de exclusão social, ou mesmo para resgatar o potencial produtivo da agricultura
familiar.
Não obstante a isso,
discutia-se a forma de organização produtiva, tendo certo destaque a questão
das cooperativas coletivas (ZANDER,1994; BRENNEISEN, 2004), modalidades que
tiveram como base a organização coletiva da produção e do trabalho coletivo. O
argumento central era de que, em uma situação em que os camponeses sequer
tinham acesso à terra, não fazia sentido falar em mercados. Não havia interesse
do Estado em potencializar políticas agrícolas voltadas para o fortalecimento
desses agricultores que estavam sendo assentados. Acentuadamente, a
viabilização social e econômica dos agricultores familiares foi preterida, e
mesmo contrariada por um processo de modernização de grandes propriedades. O
Estado apenas respondia às pressões por meio da implementação de assentamentos
e da desapropriação de terras improdutivas.
Diante desse paradoxo
e de descasos das estruturas governamentais para auxiliar ao desenvolvimento
desses territórios, coube ao MST ocupar um lugar de destaque, por meio de
estratégias e formas de organizar os agricultores com limitações econômicas, a
fim de alicerçar uma agricultura forte e capaz de reverter a miséria. Optou-se,
para tanto, por uma base teórico-ideológica coletivista, para estruturar essas
famílias que adentravam no processo da reforma agrária.
No decorrer dos 40
anos de sua existência, o MST avançou e regrediu em vários fatores no processo
de luta pela democratização da terra. Segundo Fernandes (1994), a principal
bandeira de luta que consolidou o movimento, em 1984, na cidade de Cascavel,
Oeste do Paraná, teve como elemento central três objetivos: a luta pela terra,
a luta pela reforma agrária e a luta por mudanças sociais no país. Com base
nessas premissas, o MST surgiu com uma proposta de reforma agrária que não
fosse apenas a de distribuição de terras, mas que conquistasse novas formas de
organização social para assegurar aos agricultores familiares assentados no
campo qualidade de vida e de renda. Para Fernandes (2008), “o avanço da luta
pela terra tem mantido a reforma agrária na pauta política do Estado. Todavia,
até o momento o Estado não tem sido competente para efetivar uma política de
reforma agrária.” (FERNANDES, 2008, p. 27).
Diante da busca de
alternativas para a crise de emprego, da problemática da organização e da
gestão de assentamentos rurais com base no associativismo e no cooperativismo
(LEITE et al., 2004), o 1º Encontro Nacional dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra, realizado em 1984, em Cascavel, no Paraná, consolidou de
forma contundente os horizontes da luta pela reforma agrária. O princípio que
norteou o MST e que mantém o movimento ativo são as ocupações dos latifúndios.
Ao longo de sua trajetória, contudo, o MST demonstrou preocupação com a
construção de mercados em várias iniciativas, que vão desde a criação de
cooperativas nos assentamentos até a inserção dos produtos da reforma agrária
em diferentes canais/redes de comercialização, inclusive, mais recentemente, os
mercados digitais.
Esse aspecto ficou
mais evidente no 1º Congresso Nacional do MST, realizado em 1985, em Curitiba,
Paraná. Com o lema “Terra para quem nela trabalha e Ocupação é a única
solução”, os três princípios básicos ressaltados nesse evento seriam a luta
pela terra, a luta pela reforma agrária e a luta pelo socialismo. Tais
princípios acompanham o MST até hoje e demostram o objetivo contundente do
movimento, almejado muito mais do que a reforma agrária, que é a transformação
social da sociedade para alcançar o socialismo. Essa perspectiva socialista
guia a maioria das estratégias e do planejamento dos canais de comercialização
nos assentamentos e nos acampamentos1. Os camponeses
definiram políticas de ação que tinham na territorialização um de seus
principais objetivos (FERNANDES, 2008).
Entre os anos de 1985
e meados de 1990, começaram as primeiras discussões sobre essa perspectiva. O
professor Clodomir Santos de Moraes2, que atuava no
Instituto de Apoio Técnico aos Países do Terceiro Mundo (IATTERMUND)3, vinculado à
Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a partir de
suas reflexões teóricas e metodológicas (de base leninista) acerca da
organização camponesa e das questões de comercialização, contribuiu com os
Laboratórios Organizacionais no campo e com centros de formação. De acordo com
Scopinho (2007), “As experiências de cooperação/cooperativismo desenvolvidas
pelo MST têm sido referidas na literatura especializada tanto pelas polêmicas
que suscitam quanto pelo pioneirismo na introdução do debate” (SCOPINHO, 2007,
p. 85). Iniciou-se, desse modo, o debate para a construção dos canais de
comercialização e sobre quais tipos de mercados e maneiras de organizar a
produção das famílias de agricultores assentados deveriam ser construídos
diante das mazelas relacionadas à questão agrária brasileira.
Diante dessa
configuração da luta pela reforma agrária, destaca-se a leitura do Caderno de
Formação n° 11 (MST, 1986), pois marca organização e a transformação do
agricultor assentado em direção à modernização da agricultura. Segundo a base
teórica que alicerçava o Caderno, recomendava-se: i) “[…] a necessidade de
fazer uma transição da produção de subsistência para a produção de mercadorias
[…]”; ii) “[…] estabelecer uma transição do camponês artesão para o operário
rural […]” (BERNARDO, 2012). Essas eram duas concepções, na visão de Silva e
Thé (2022), “[…] que entendiam que a produção familiar poderia ser organizada
em cooperativas produtivistas, com o objetivo de inserir esta produção no
circuito mercantil.” (SILVA; THÉ, 2022, p. 190). A partir disso, segundo
Scopinho (2007), “[…] foram organizadas mais de 40 CPAs no país, muitas
inteiramente coletivistas, verdadeiras ilhas socialistas” (SCOPINHO, 2007, p.
89).
Essas foram as
primeiras estratégias para inserir a comercialização no cotidiano das famílias
assentadas. Entendia-se o agricultor assentado como um sujeito que necessitava
de uma base racional para administrar a sua unidade de produção de modo a não
se extinguir. Era preciso racionalizar as práticas agrícolas e, com isso,
alcançar-se-ia o socialismo. Passar da produção de subsistência para a produção
de mercadorias significava o acúmulo de capital para investimentos em
agroindústrias, além de estabelecer uma fase de transição entre o
camponês-artesão e o operário, transformando a consciência camponesa em
consciência operária (RIBAS, 2002), tornando-se o agricultor um sujeito
revolucionário.
O Caderno de Formação
nº 11 deixa nas entrelinhas a sua opção pela transformação do campesinato em
assalariado rural. A noção política de campesinato foi norteada pelo expoente
Prof. Clodomir Moraes:
A
estrutura do processo produtivo, em que está envolvido o camponês, determina
muito de suas atitudes sociais e traços de seus comportamentos ideológicos no
momento em que participa dentro do grupo social. Sua atitude isolacionista,
aparentemente reacionária à associação (sindical, cooperativa, etc.) não é
consequência apenas do nível de educação, que entre os camponeses quase sempre
é muito baixo e sim procede da incompatibilidade de tipo estrutural que
distingue tal atitude da organização de caráter e participação sociais. (MST,
1986, p. 13).
A concepção teórica de
Clodomir Morais, incluída no Caderno nº 11 (MST, 1986), é influenciada pelas
bases leninistas e, sobretudo, por Karl Kaustsky (1968). Observa-se uma
contradição dos líderes orgânicos do movimento, na gênese de formação de seus
ideais de reforma agrária, em que estavam negligenciando uma dimensão
fundamental da racionalidade camponesa notada por Chayanov: o fato de serem
sistemas econômicos não capitalistas (CHAYANOV, 1981). Nota-se que o formato de
cooperativo guiado pelos ideais de coletivização das práticas agrícolas entrou
em decadência, pois estava fora realidade das famílias assentadas.
Scopinho (2007)
argumenta que a “[…] crise é atribuída, principalmente, à falta de trabalho e
renda decorrentes, internamente, da ausência de planejamento e controle
administrativo que considerasse também a lógica dos mercados” (SCOPINHO,
2007, p. 89, grifo nosso). As famílias de agricultores vinculadas aos hábitos e
aos costumes do campo tinham uma concepção de coletivo que não extrapolava os
limites da família. Scopinho (2007) ressalta que “[…] os assentados não se
adaptaram ao formato organizativo da CPA, pois entendiam que a possibilidade de
independência, autonomia e liberdade estava no usufruto individual do lote de
terra de que foram beneficiários.” (SCOPINHO, 2007, p. 89).
No segundo Congresso
do MST, realizado em 1990, o objetivo principal foi alicerçar as diretrizes de
resistências nos territórios ocupados, seguindo os passos de sua formação
inicial e ampliando as redes de cooperativas e de agroindústrias da reforma
agrária para fortalecer os agricultores no campo. Ocupar era uma forma de luta
contra os latifúndios. Resistir era um processo de sobrevivência diante da
forte repressão policial. E produzir era uma maneira de mostrar para sociedade
que a reforma agrária produzia alimentos e cumpria uma função social.
Passados 10 anos da
realização do 1º Congresso, o movimento organizou o 3º Congresso Nacional, em
1995, na cidade de Brasília, com a presença de 5.226 trabalhadores de 22
estados. Esse evento serviu para o MST balizar, reorganizar e elaborar seus
objetivos de luta pela reforma agrária, entre eles, os equívocos da
organicidade da base. Iniciou-se, desse modo, um novo debate sobre o papel do
MST para com a sociedade e para com os povos do campo, com as seguintes
palavras de ordem: “Reforma Agrária, uma luta de todos”. Segundo Fernandes
(1994), esse congresso construiu novos horizontes ao MST, e, dentre os seus
objetivos, destacam-se estes: “A terra é um bem de todos; Garantir trabalho a
todos, com justa distribuição da terra, da renda e das riquezas; Combater todas
as formas de discriminação social e buscar a participação igualitária da
mulher.” (FERNANDES, 1994, p. 72). Esse período foi um marco, uma virada
histórica para o movimento, pois a Agroecologia começou a ser incorporada nos
discursos das direções e das militâncias, o que fez com que novos horizontes
emergissem na perspectiva de realocar os anseios das famílias assentadas e
ampliar os acessos a diferentes canais de comercialização.
O ideal de
cooperativas alicerçadas em bases coletivistas (1984-1995) começou a perder
força na medida que o movimento mudou as estratégias, uma vez que esses métodos
estavam fora de contexto de uma sociedade capitalista e dos próprios anseios
dos agricultores assentados. Borsatto e Carmo (2013) pontuam:
O que se
observou, no entanto, foi que os princípios extraídos dos escritos de Marx,
Lênin e Kautsky, quando transformados em práxis pelo MST, não se confirmaram,
criaram nos assentados um forte sentimento de resistência a este projeto
cooperativista coletivizado. (BORSATTO; CARMO, 2013, p. 225).
Nesse sentido, no
programa agrário de 1995, observam-se algumas mudanças no plano de reforma
agrária do MST: (i) garantir que a produção da agropecuária estivesse voltada
para a segurança alimentar, para a eliminação da fome e para o desenvolvimento
econômico e social dos trabalhadores; (ii) apoiar a produção familiar e
cooperativada com preços compensadores, crédito e seguro agrícola; (iii) levar
a agroindústria e a industrialização ao interior do país, buscando o
desenvolvimento harmônico das regiões e garantindo a geração de empregos,
especialmente para a juventude; (iv) desenvolver tecnologias adequadas à
realidade, preservando e recuperando os recursos naturais, com um modelo de
desenvolvimento agrícola autossustentável (MST, 1995).
Na fase de 1995 a
1999, foi desenvolvida uma etapa de materialização do Sistema Cooperativista
dos Assentados (SCA). Esse “[…] também foi um período de consolidação das
agroindústrias e de concretização dos Cursos Técnicos de Administração
Cooperativista (TACs).” (STEDILE; FERNANDES, 2012, p. 80). O Programa de
Créditos para a Agricultura Familiar, ainda muito tímido no então governo de
Fernando Henrique Cardoso (FHC), fundiu-se bem com uma estratégia produtiva de
base familiar (SILVA; THÉ, 2022).
Muitos eram os
questionamentos sobre o processo da organicidade e suas táticas para assegurar
o desenvolvimento econômico e social das famílias. A chegada do século XXI fez
com que o movimento reorganizasse seus métodos e estratégias para a nova fase
requerida pela sociedade. Nesse contexto, Engelmann (2023) pondera:
O início
dos anos 2000 foi de avanço do capitalismo no campo e de fortalecimento do
agronegócio. Esse processo, aliado à diminuição na criação de novos
assentamentos pelo Estado brasileiro, reforça a tese de que o projeto de
reforma agrária clássica estaria esgotado dentro do sistema capitalista.
(ENGELMANN, 2023, p. 158).
Assim, no 4º Congresso
Nacional, realizado em Brasília, em 2000 (MST, 2000), foram debatidos e
problematizados os novos horizontes para o fortalecimento dos assentamentos e
para os futuros passos que o MST daria no intuito de reverter a lógica que
estagnava a pobreza e o endividamento da maioria das famílias assentadas. Essa
mudança de paradigma rendeu ao MST oxigênio para pleitear novos horizontes para
reforma agrária e estabelecer novos princípios para os agricultores acampados e
assentados (BORSATTO; CARMO, 2013).
As diretrizes do MST
sobre a cooperação agrícola nos assentamentos, desde as primeiras conquistas no
início dos anos 1980, passaram por algumas modificações (BERGAMASCO; NORDER,
2003). Isso levou a reformulação práticas agrícolas e a uma reflexão sobre os
equívocos dos anseios em transformar os agricultores em sujeitos
revolucionários, capazes de reverter a lógica de uma sociedade classes.
O 4º Congresso foi o
divisor de águas para as estratégias de produção dos assentamentos, haja vista
que o MST abandonou definitivamente as práticas produtivistas baseadas no
sistema convencional e incorporou uma nova agenda, sustentada em três pilares:
questões ambientais, políticas e culturais. Isso ampliou seu discurso rumo à
sustentabilidade, como se observa neste excerto: “Deveremos estimular a prática
agrícola sem a utilização de insumos externos ao lote, sem a utilização dos
agroquímicos. Deveremos ao longo dos anos ir ajustando esta forma de produzir,
evitando gastar dinheiro com adubos e venenos” (MST, 2000, p. 50-51).
A Agroecologia é
inserida, portanto, na pauta do MST não apenas como um elemento de novas
práticas de produção agrícola, mas também como um importante ingrediente
político para contrapor o modelo do agronegócio, que estava suprimindo a
maioria das famílias assentadas e levando ao empobrecimento. Nessa perspectiva,
a Agroecologia tornou-se a nova estratégia para alavancar a sustentabilidade
dos assentamentos e assegurar a soberania alimentar das famílias assentadas.
Além disso, configurou-se a bandeira de luta e o princípio a ser seguido pela
militância e pelas famílias assentadas, alterando as práticas agrícolas, mas
sem promover um debate sobre quais seriam as alternativas para superar o
fracasso do modelo anterior.
Nesse cenário, a
partir do segundo programa agrário gestado entre 2000 e 2014, o MST ampliou seu
programa agrário e inseriu a defesa de um “[…] projeto popular para a
agricultura brasileira […]” e a busca por “[…] uma nova sociedade: igualitária,
solidária, humanista e ecologicamente sustentável […]” (MST, 2007, p. 17 apud ENGELMANN,
2023, p. 159).
A partir de um certo
momento, dos anos 2000 em diante, iniciam-se estudos e a análise da morfologia
do MST sobre o assentamento per se, como lócus de
vida, de produção e de construção de um novo modelo social. Os problemas
enfrentados pelas famílias assentadas desde os primeiros assentamentos até os
atuais referem-se ao processo de produção de alimentos nas unidades produtivas
familiares, ao acesso às linhas de créditos e infraestrutura adequada e à
comercialização desses produtos para geração de renda e de manutenção da vida
no campo.
Dados de uma
abrangente pesquisa realizada por Leite et al. (2004) em áreas
reformadas, intitulada Impactos dos assentamentos: um estudo sobre o
meio rural brasileiro, revelam que os agricultores assentados acessavam uma
gama variada de canais, como feiras, atravessadores, agroindústrias, venda
direta, supermercados, cooperativas, associações, abatedouros e outros. O
destaque ficou por conta do canal “atravessadores”. De acordo com os autores,
“[…] vemos que em todas as manchas os ‘atravessadores’ têm um peso
significativo, indicando a princípio a manutenção dos canais tradicionais de
escoamento” (LEITE et al., 2004, p. 173, grifo nosso).
No entanto, essa
realidade ainda persiste na configuração dos canais de comercialização em áreas
de assentamentos, predominante na produção de commodities para
as grandes cooperativas agroindustriais. Apesar disso, têm ganhado força as
abordagens que apontam para redes agroalimentares alternativas, seja no campo
da produção, da distribuição ou do consumo, muitas das quais se articulam em
torno da construção social de novos mercados, rompendo com a lógica
predominante dos mercados agroalimentares em grande escala que ainda comandam
as cadeias produtivas na maioria dos assentamentos.
A configuração de
novas práticas agrícolas e de novas organicidades de produção emergiu em meados
dos anos 2000, com novos nichos de mercados, os quais, até momento, as famílias
não tinham acesso, resultado da ascensão da comercialização institucional por
meio de políticas públicas ou de programas de governo. Trata-se da “[…]
emergência de uma nova geografia alimentar” que (re)significa a produção, o
consumo e o próprio ato de alimentar a si e aos demais.” (BEZERRA; SCHNEIDER,
2012, p. 38). Os autores ressaltam que isso ocorreu porque a política
institucional deu prioridade aos produtos da região onde ocorre o consumo dos
alimentos. Com a organização produtiva dos assentamentos, verificou-se uma
mudança na dinâmica econômica em escalas locais e até mesmo regionais (NUNES,
2017). Diante disso, a produção de riquezas aumentou e se diversificou (mais
leite, mais grãos, mais raízes e tubérculos), assim como o número de agentes de
comércio formais e informais (GONÇALVES, 2008).
A circulação, seja na
produção ou no consumo de alimentos em âmbito local, também potencializa e/ou
oportuniza outras relações sociais, econômicas e alimentares que vão além da
“[…] simples resistência ao processo de desconexão do sistema agroalimentar.”
(BEZERRA; SCHNEIDER, 2012, p. 44). Nesse sentido, a comercialização foi
ganhando destaque e fortalecendo os assentamentos rurais e as entidades
presentes no espaço.
Perante os elementos,
dois Programas Institucionais – Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o
Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) – têm ganhado notória
relevância no fortalecimento dos circuitos locais de produção e de consumo de
alimentos. Esses apresentam características inovadoras ao possibilitar, por um
lado, a simplificação dos processos de aquisição de “[…] alimentos para
programa públicos dispensando licitações que afastam os camponeses e suas
organizações do processo e, por outro lado, por estabelecerem reserva de
mercado para agricultura familiar.” (NUNES, 2017, p. 29).
Isso significa que, a
partir da reorganização e do impulso dos mercados institucionais, retoma-se o
espírito coletivo que se enfraqueceu com as experiências fracassadas da
coletivização dos espaços destinados à reforma agrária, porém, com outro víeis,
a cooperação em pequena escala, resultando na retomada de várias associações e
cooperativas (OLIVEIRA, 2014; ROVER; RIEPE, 2016), na criação de mecanismo de
resistência, de reciprocidade e de cooperação e, em muitos casos, de
oportunismo. Aproveitando a demanda do Estado, as famílias se apropriam do
espaço para mudar as práticas agrícolas e assim se adaptar ao ciclo e/ou ao
jogo dos mercados.
Para Bezerra e
Schneider (2012), “essas mudanças de procedimento no transcorrer dos
acontecimentos é que vão definir as escolhas possíveis, oportunidades a
realizar ou não, retroalimentando o processo.” (BEZERRA; SCHNEIDER, 2012, p.
45). A segurança na venda gera também mais confiança para o agricultor iniciar
a produção e diversificar as práticas agrícolas (CUNHA; FREITAS; SALGADO, 2017;
MODENESE; SANT’ANA, 2019). Marques e Ponzilacqua (2022) também explicam que:
Os
programas voltados à estruturação de mercados institucionais se encontram no
cerne do combate à desigualdade social ao fortalecerem a agricultura familiar,
reduzirem a pobreza rural e fornecerem alimentos de qualidade para as
populações vulneráveis. (MARQUES; PONZILACQUA, 2022, p. 499).
Políticas públicas são
alternativas sustentáveis aos modelos de produção estabelecidos na sociedade de
mercados convencionais. De 2000 a 2016, os assentamentos descobriram a
importância do acesso aos mercados públicos como instrumentos para atenuar os
impactos econômicos e sociais, tendo se consolidado primeira década do século
XXI. O PAA e o PNAE tomaram como referência a experiência de comercialização da
produção, abrindo novos caminhos e espaços nas estratégias de comercialização.
Além de fornecerem uma renda periódica aos agricultores, tais programas
garantem alimento de qualidade aos consumidores carentes nos centros urbanos e
às crianças em idade escolar.
Conforme destacam
Perin et al. (2021), no
[…]
contexto econômico e social, associaram-se as categorias: estímulo ao
cooperativismo e/ou associativismo; dinamização de redes e/ou agregação social;
e melhoria da qualidade dos alimentos produzidos. No âmbito essencialmente
social, foram identificados: estímulo ao controle social; participação das
mulheres; melhoria da autoestima e autonomia; e estímulo ao autoconsumo.
(PERIN et al., 2021, p. 44).
Os mercados
institucionais tornaram-se mediadores para a organização das famílias
assentadas e aumentaram a oferta e a qualidade dos produtos. O PAA e o PNAE, na
ótica de Christoffoli (2015), “contrariamente a programas como o Pronaf, que
não só não induzem à cooperação, como ainda promovem o aprofundamento no modelo
tecnológico produtivista da revolução verde, […] trazem elementos de indução à
cooperação.” (CHRISTOFFOLI, 2015, p. 186). Desse modo, os produtos passaram a
ter melhores qualidades e possibilitaram a criação de novos mercados, como as
vendas diretas e indiretas, em feiras, em casa em casa e em outros canais de
comercialização (SILIPRANDI; CINTRÃO, 2011; VINHA; SCHIAVINATTO, 2015; SOUZA;
LORETO, 2019). Os mercados institucionais cumpriram sua função organizadora,
instituindo condições para a participação das famílias em outros espaços
econômicos e sociais, abrindo um leque de oportunidades para os assentamentos e
rompendo as barreiras dos mercados hegemônicos que apenas expropriam a força de
trabalhos dos agricultores.
Os programas
institucionais possibilitaram aos territórios da reforma agrária uma construção
de práticas sociais e uma aproximação entre fornecedores, poder público,
entidades, consumidores e demais atores da sociedade civil, inclusive gerando
práticas mais solidárias e redes de reciprocidade (SOUZA-ESQUERDO, BERGAMASCO,
2015; CUNHA; FREITAS; SALGADO, 2017; GREGOLIN et al., 2018;
MACEDO et al., 2019; PERIN et al., 2021).
De 2016 em diante,
verificou-se uma crise nos canais de comercialização para compras públicas,
devido aos sucessivos cortes orçamentários e ao desenvolvimento de novos
caminhos, entre eles, as feiras, os supermercados, a venda direta e o uso de
plataformas digitais. As feiras, os supermercados e a venda direta, nos quais
se incluem muitos atravessadores, sempre estiveram presentes, ampliando-se
especialmente em virtude do encolhimento dos mercados institucionais. Os
mercados digitais, contudo, começaram a existir a partir da popularização do
acesso às redes sociais, expandindo-se de maneira significativa durante e após
a pandemia da covid-19.
Na contramão da gestão
anterior, o atual governo do presidente Lula (PT) sancionou o aumento no
orçamento do PAA e do PNAE. O ano de 2023 iniciou com uma de oportunidade para
tornar tais programas mais robustos e equitativos, contribuindo de forma incisiva
na renda dos agricultores familiares assentados e no combate à insegurança
alimentar no país, com a produção de alimentos de qualidade.
A questão dos mercados
e do acesso a eles passa a ser mais presente. Esse processo recente faz com que
a temática da produção se desloque para a distribuição no interior dos
assentamentos, já que os sistemas produtivos, instaurados no âmbito do domínio
das técnicas de produção, permitem uma oferta tanto na quantidade quanto na
regularidade, fazendo com que a questão das vendas e da comercialização passe a
ser central na economia das famílias de agricultores assentados da reforma
agrária.
Diante disso,
percebe-se o papel crucial dos canais de comercialização para agregar renda e
qualidade de vida às famílias assentadas. Nota-se que os mercados são uma
construção social, logo, é necessária a participação do agricultor para a
concretização de soluções. O MST, em sua gênese, “queria construir” algo fora
do escopo, dos anseios e das práticas culturais das famílias, tornando os
mercados e os canais de comercialização (cooperativas coletivistas) desconexos
da vida cotidiana dos agricultores.
Assim sendo, novos
horizontes têm emergido, e a reforma agrária se faz necessária para que cumpra
seu papel social diante da sociedade excludente, contribuindo para mudanças no
que diz respeito ao consumo de alimentos, o que tende a garantir uma renda digna
para as famílias assentadas. Nessa perspectiva, novos e melhores mercados
possibilitarão aos agricultores assentados mudanças significativas nos
processos produtivos e organizacionais de suas unidades de produção familiar. A
construção de novos mercados e de canais de comercialização, com destaque aos
institucionais, sobressai-se pelo reconhecimento e pela valorização da
agricultura familiar dos assentamentos e da cultura alimentar local, o que se
refle no aumento da autoestima e da autonomia das famílias produtoras
(PERIN et al., 2021).
Por fim, os
assentamentos da reforma agrária necessitam de uma simbiose de políticas
públicas efetivas, de estratégias e ações entre Estado, mercados, sociedade
civil e meio ambiente, de modo a impulsionar as famílias assentadas da reforma
agrária para uma inclusão produtiva, criando, desse modo, desenvolvimento e
dinamização da economia familiar e local. Isso aponta para a relevância da
observação sistemática das novas relações com os mercados e com muitas outras
instituições formais e informais envolvidas na produção, na distribuição e na
comercialização dos alimentos produzidos pelas famílias de agricultores
assentadas da reforma agrária.
Os assentamentos
rurais, portanto, são dinâmicos, flexíveis, fluidos e infinitamente mais ativos
que os assentamentos anteriores. Consequentemente, a redefinição das relações
sociais e econômicas em torno da unidade de produção familiar pode ser compreendida
como ponto de partida para a remodelação de um conjunto de outras práticas
sociais que visam à construção da autonomia e da liberdade das famílias perante
os grilhões do sistema alimentar corporativo.
Fonte: Por André Luiz
de Souza, em Outras Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário