sábado, 30 de março de 2024

60 anos do golpe: “Para nós, sobreviventes, não é passado”, diz ex-ministra presa e torturada

golpe de 1964, berço da ditadura civil-militar brasileira que censurou, perseguiu, torturou, prendeu e assassinou defensores da democracia até 1985, está prestes a completar 60 anos. Anualmente, em 1º de abril, entidades da sociedade civil realizam atos e atividades para rememorar os anos de chumbo com o objetivo de homenagear as vítimas e fazer um exercício de memória. 

Apesar da necessidade de se relembrar o golpe de Estado e, assim, evitar que erros do passado sejam repetidos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou em entrevista recente que não quer “remoer o passado”. A declaração veio em resposta a uma pergunta sobre como lidaria com possíveis celebrações dos 60 anos do golpe por parte de integrantes das Forças Armadas - a exemplo do Clube Militar, que já marcou, para o dia 31 de março, um almoço de comemoração. 

"Os generais que estão hoje no poder eram crianças naquele tempo. Alguns acho que não tinham nem nascido ainda (...) O que eu não posso é não saber tocar a história para frente, ficar remoendo sempre, ou seja, é uma parte da história do Brasil que a gente ainda não tem todas as informações, porque tem gente desaparecida ainda, porque tem gente que pode se apurar. Mas eu, sinceramente, eu não vou ficar remoendo e eu vou tentar tocar esse país para frente", prosseguiu o mandatário. 

Para além de dizer que não quer “remoer o passado”, o presidente teria orientado seus ministérios a não realizarem eventos oficiais alusivos aos 60 anos do golpe civil-militar. A ideia seria “apaziguar” a relação com os militares e não tocar em “feridas” que poderiam tensionar a tentativa de reaproximação. 

A postura de Lula com relação ao tema vem gerando críticas por parte de entidades de direitos humanos, políticos de esquerda e sobreviventes do regime civil-militar, a exemplo de Eleonora Menicucci, ex-ministra de Políticas para Mulheres do governo Dilma Rousseff e que, durante a ditadura, foi perseguida, presa e torturada pelos militares. 

Doutora em ciência política e professora titular sênior da Unifesp, Menicucci era - e segue sendo - militante de esquerda nos anos 70 quando foi presa e ficou na mesma cela que Dilma, no Presídio Tiradentes, em São Paulo (SP). 

Em entrevista à Fórum, a ex-ministra sustentou que é preciso rememorar o passado para que as novas gerações entendam o que realmente aconteceu na ditadura civil-militar brasileira. 

"Como ex-presa política e torturada, e tendo pautado minha vida pela consolidação da democracia, acredito que devemos lembrar o passado para não esquecê-lo e, principalmente, para que não se repita nunca mais. 60 anos de 1964 64 só merece ser lembrado para que não seja ocultado, apagado e esquecido", pontua Eleonora Menicucci. 

Segundo a ex-ministra, a ditadura civil-militar "não é passado, principalmente, para nós, como eu, sobreviventes". 

"Lembrar e sobretudo falar significa contar um período de nossa história onde vida humanas foram sacrificadas, assassinadas, torturas, presas e exilada com sangue na defesa de uma jovem democracia. Falar é necessário não só para que não se repita, mas para que as novas gerações possam conhecer a verdadeira história de luta de uma geração de 1968". 

"Ditadura e tortura nunca mais. Lutemos pelo aperfeiçoamento da radicalidade da democracia sem concessões. Nossos governantes sabem disso. A democracia é uma jovem e velha mulher", finaliza. 

·        Adriano Diogo: não rememorar golpe é "contradição" de Lula

O ex-deputado estadual Adriano Diogo, que participou da resistência armada à ditadura militar, foi preso, torturado e, depois, ajudou a fundar o PT, disse em entrevista à Fórum que a Lula em evitar eventos alusivos ao aniversário do golpe de 1964 não é exatamente nova. 

O ex-parlamentar, que já presidiu a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, relembra que, em 2010, Lula foi contrário a mudar a Lei da Anistia - isto é, defendeu, de certa maneira, o entendimento de que os crimes cometidos na ditadura eram conexos e recíprocos: “Tanto os crimes cometidos pela resistência ao regime militar, como daqueles que participaram na repressão e na defesa do regime militar”. 

O petista chama atenção para o fato de que não sabe que “tipo de pressão” o presidente estaria sofrendo para tomar tal atitude. Adriano Diogo relembra, contudo, que Lula teve papel fundamental para o fim da ditadura civil-militar e que foi graças à sua eleição em 2022 que o Brasil não sofreu um novo golpe de Estado. Neste sentido, o ex-deputado avalia que o presidente cai em contradição.

“Eu, que sou do PT, que vim da resistência, atribuo a Lula a enorme tarefa que ele teve de derrotar a ditadura. E foi exatamente em 1979, que através das greves, da fundação do PT, que a ditadura foi derrotada definitivamente, embora ela tivesse acabado em 1985. E, agora, nós só estamos aqui nessa situação porque o Lula e o povo brasileiro derrotaram o Bolsonaro, pois, senão, nós estaríamos numa outra ditadura. Então, é uma enorme contradição. Às vezes, eu tendo a achar que, entre escolher o passado ou o presente, ele escolheu enfrentar o presente, que é a tentativa do golpe do Bolsonaro”, assevera. 

Adriano Diogo, no entanto, afirma esperar que Lula reconsidere sua posição e compareça aos atos democráticos que serão realizados pela sociedade civil em 31 de março, como a Caminhada do Silêncio, que acontece todos os anos em diferentes capitais do país.

 

Ø  Há 60 anos o golpe militar impôs um regime facínora no Brasil. Por José Reinaldo Carvalho

 

 A ferida que a ditadura militar, instaurada por um golpe de Estado há 60 anos, abriu no organismo nacional, malgrado o tempo transcorrido, ainda não cicatrizou. A ditadura militar provocou danos duradouros e indeléveis na vida nacional, que não se apagam com discursos, decretos nem perorações negacionistas.

A ditadura militar foi um regime criminoso, facínora, comandado por facínoras, um regime que atentou gravemente contra a democracia, os direitos do povo e a soberania nacional. Um regime cujos métodos principais para o exercício do poder foram a violência, a mistificação e o engodo. O período de 21 anos em que durou aquele regime foi marcado por graves violações aos direitos humanos e às liberdades democráticas. 

Os crimes cometidos durante a ditadura militar não foram atos isolados, mas uma política de Estado sob o estrito comando de oficiais graduados das Forças Armadas. 

Diversos relatórios e investigações ao longo dos anos comprovaram a extensão dos abusos cometidos durante o regime militar. O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, por exemplo, apresentado em 2014, trouxe à tona uma série de violações de direitos humanos, incluindo execuções, torturas, ocultações de cadáveres e perseguições políticas.

Entre os episódios mais marcantes desse período está o caso emblemático da Guerrilha do Araguaia, onde mais de uma centena de guerrilheiros foram assassinados pelas forças militares. Muitos corpos nunca foram encontrados, e suas famílias seguem em uma busca incessante por justiça e por informações sobre o paradeiro de seus entes queridos.

Em todas as suas etapas o regime militar foi uma guerra contra o povo, com o recurso frequente ao terror de Estado, porque é disso que se trata quando se tortura e assassina presos políticos. Enfatizo: em todas as etapas, incluindo a "distensão" do general Geisel - verdugo de patriotas, democratas, jovens guerrilheiros e dirigentes de organizações revolucionárias - e a "abertura" do último general-presidente, o atrabiliário João Figueirêdo. 

Na execução da guerra contra o povo e a nação foram invocados falsos pretextos para esconder os inconfessáveis objetivos de submeter o Brasil aos desígnios imperialistas dos Estados Unidos e a aspiração dos generais a se perpetuarem no poder. Para dar o golpe, desfraldaram falsas bandeiras - lutar contra a corrupção, sanear a economia, impedir a "subversão", a "república sindicalista", a "ameaça comunista". Disseram que o golpe era apenas um movimento "redentor" e prometeram a democracia, mas logo ficaram evidentes os propósitos continuístas. Foi com falsos pretextos também que promoveram uma razia entre as forças democráticas, patrióticas, revolucionárias, nos movimentos sindicais e estudantis, entre intelectuais e os militares genuinamente legalistas, democratas e defensores da soberania do país. Ao declarar guerra ao povo, a ditadura militar adotou uma política de extermínio da oposição democrática-popular e da esquerda. Em determinado momento, a partir de finais de 1968, os generais implantaram um regime de terror. Aquele regime atentou contra o estado de direito, tolheu as mais elementares liberdades democráticas, desencadeou o terrorismo cultural, impôs a censura à imprensa, às artes, à atividade científica e acadêmica, violou a independência e harmonia entre os Poderes, manietando o Judiciário e o Legislativo, perseguiu, prendeu e torturou dezenas de milhares de brasileiros, indiciou em inquéritos policial-militares mais de dez mil pessoas. Assassinou 434 combatentes pela democracia. 

Sucederam-se os atos arbitrários até que a ditadura se fascistizou por completo e o Brasil viveu mais de uma década sob o terror de Estado. 

A responsabilidade política não pode ser diluída. Os crimes propriamente ditos foram cometidos pelas forças armadas reacionárias que agiram como instrumento das classes dominantes e do imperialismo estadunidense. Portanto, não é justo analisar o caráter do golpe como uma mera ação das forças conservadoras, como se em 1º de abril de 1964 tivesse sido instaurado no país um regime "civil-militar" e não uma ditadura militar fascista. 

Desde os tempos coloniais, passando pelo Império, a velha República, o Estado Novo e outros de cariz liberal ou conservador, o Brasil sempre foi governado, até o advento da ditadura de 1964, por forças conservadoras, ressalvados alguns hiatos, como o próprio momento em que ocupava o poder o democrata, patriota e trabalhista João Goulart, derrubado por tentar abrir caminhos a reformas estruturais de base e à consolidação da soberania nacional. Mas uma ditadura aberta, terrorista, fascista, foi implantada em 1964. Fosse apenas um manejo conservador, o golpe militar de 60 anos atrás teria malogrado um ano depois, quando lideranças civis conservadoras que ajudaram a desfechá-lo rebelaram-se ao perceber que os generais vieram para ficar, como aliás advertira o Partido Comunista do Brasil nos primeiros documentos que lançou para analisar o caráter do novo regime. 

O golpe militar de 1964 foi uma viragem reacionária na vida política nacional, em que as classes dominantes, mancomunadas com o imperialismo estadunidense, lançaram mão do poder de fogo das forças armadas para esmagar a maré montante da luta popular por democracia, direitos sociais e soberania nacional. Tentada em outras ocasiões, a reviravolta política de sentido reacionário só foi possível porque prevaleceu a tendência malsã predominante nas forças armadas brasileiras desde sempre e até hoje não contida - o militarismo. Esta tendência, este vício, esta doença congênita da instituição militar brasileira é eivada de profundo sentido antidemocrático, antipopular e anticomunista, travestido de nacionalismo, mas como se viu, um nacionalismo de fancaria, porquanto a ditadura militar de 1964 serviu como vassala do imperialismo estadunidense.

A ditadura dos generais impôs, em conluio com os centros econômicos e financeiros do imperialismo, um modelo econômico antipopular e entreguista, contrário ao desenvolvimento do país e ao bem-estar social. O golpe de 1964 abriu um longo período calamitoso para o povo brasileiro.  O modelo econômico imposto pelo regime era antipopular e entreguista. O desenvolvimento do país foi prejudicado em prol de interesses neocolonialistas. 

É injusto, além de ser um erro político, não passar a limpo este passado porque ele está vivo entre nós nos arreganhos fascistas do ex-ocupante do Planalto com sua horda de milicianos, do lumpensinato, e os chacais fardados que até ontem ocupavam elevados cargos na cúpula das Forças Armadas e postos-chave no governo. 

A memória desses eventos sombrios serve como um lembrete de que a democracia e os direitos humanos devem ser protegidos e valorizados. A história nos ensina a nunca esquecer as consequências devastadoras da tirania e da violência das Forças Armadas. 

A história do Brasil não pode ser escrita sem o devido reconhecimento dos crimes cometidos durante a ditadura, e a responsabilidade das forças armadas nesse contexto deve ser encarada com frontalidade. 

Somente através do reconhecimento e da responsabilização dos responsáveis é que poderemos verdadeiramente construir uma sociedade  justa e democrática. A memória das vítimas e a luta por justiça não podem ser esquecidas, e cabe a esta e às gerações vindouras garantir que as lições daquele período sejam aprendidas e que tais atrocidades nunca mais se repitam.

As Forças Armadas têm a obrigação de se retratar e as forças democráticas o dever de apagar da Constituição qualquer possibilidade de interferência das corporações militares na vida política nacional. Extirpar o militarismo como tendência política, abolir a excrescência da GLO, fechar todas as portas ao golpismo são tarefas a realizar. 

As Forças Armadas devem desculpas ao povo e a nação e não as instituições que elas golpearam e vilipendiaram.  

Não é por revanchismo que os patriotas e democratas rememoram os acontecimentos desencadeados a partir de 31 de março e 1º de abril de 1964, mas para extrair lições pedagógicas que eduquem as gerações vindouras e preparem o país para construir um sistema democrático em que o povo seja efetivamente dono do poder, capaz de soerguer instituições suficientemente fortes para conjurar e se for necessário esmagar ações militaristas como as de 60 anos atrás. E no mister de analisar, é preciso transparência e frontalidade para designar os fatos como eles são. 

O regime militar no Brasil foi um período de grande impacto na história do país. As marcas desse período ainda são sentidas na sociedade brasileira, tanto na esfera política e econômica quanto nas relações internacionais. É importante analisar esse período de forma crítica e reflexiva, para entender seus efeitos, aprender com seus crimes e reunir forças para lutar por uma democracia autêntica. 

 

Fonte: Fórum

 

Nenhum comentário: