60 anos do golpe: “Para nós, sobreviventes,
não é passado”, diz ex-ministra presa e torturada
O golpe de 1964, berço da ditadura civil-militar brasileira que censurou, perseguiu, torturou, prendeu e
assassinou defensores da democracia até 1985, está prestes a completar 60
anos. Anualmente, em 1º de abril, entidades da sociedade civil realizam
atos e atividades para rememorar os anos de chumbo com o objetivo de homenagear
as vítimas e fazer um exercício de memória.
Apesar da necessidade
de se relembrar o golpe de Estado e, assim, evitar que erros do passado sejam
repetidos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou
em entrevista recente que não quer “remoer o passado”. A declaração
veio em resposta a uma pergunta sobre como lidaria com possíveis celebrações
dos 60 anos do golpe por parte de integrantes das Forças Armadas - a exemplo do
Clube Militar, que já marcou, para o dia 31 de março, um almoço de
comemoração.
"Os generais que
estão hoje no poder eram crianças naquele tempo. Alguns acho que não tinham nem
nascido ainda (...) O que eu não posso é não saber tocar a história para
frente, ficar remoendo sempre, ou seja, é uma parte da história do Brasil que a
gente ainda não tem todas as informações, porque tem gente desaparecida ainda,
porque tem gente que pode se apurar. Mas eu, sinceramente, eu não vou ficar
remoendo e eu vou tentar tocar esse país para frente", prosseguiu o
mandatário.
Para além de dizer que
não quer “remoer o passado”, o presidente teria orientado seus ministérios
a não realizarem eventos oficiais alusivos aos 60 anos do golpe civil-militar.
A ideia seria “apaziguar” a relação com os militares e não tocar em “feridas”
que poderiam tensionar a tentativa de reaproximação.
A postura de Lula com
relação ao tema vem gerando críticas por parte de entidades de direitos
humanos, políticos de esquerda e sobreviventes do regime civil-militar, a
exemplo de Eleonora Menicucci, ex-ministra de Políticas para Mulheres do governo Dilma Rousseff e que, durante a ditadura, foi perseguida, presa e
torturada pelos militares.
Doutora em ciência
política e professora titular sênior da Unifesp, Menicucci era - e segue
sendo - militante de esquerda nos anos 70 quando foi presa e ficou na
mesma cela que Dilma, no Presídio Tiradentes, em São Paulo (SP).
Em entrevista
à Fórum, a ex-ministra sustentou que é preciso rememorar o passado para
que as novas gerações entendam o que realmente aconteceu na ditadura
civil-militar brasileira.
"Como ex-presa
política e torturada, e tendo pautado minha vida pela consolidação da
democracia, acredito que devemos lembrar o passado para não esquecê-lo e,
principalmente, para que não se repita nunca mais. 60 anos de 1964 64 só
merece ser lembrado para que não seja ocultado, apagado e esquecido",
pontua Eleonora Menicucci.
Segundo a ex-ministra,
a ditadura civil-militar "não é passado, principalmente, para nós, como
eu, sobreviventes".
"Lembrar
e sobretudo falar significa contar um período de nossa história onde vida
humanas foram sacrificadas, assassinadas, torturas, presas e exilada com sangue
na defesa de uma jovem democracia. Falar é necessário não só para
que não se repita, mas para que as novas gerações possam conhecer a
verdadeira história de luta de uma geração de 1968".
"Ditadura e
tortura nunca mais. Lutemos pelo aperfeiçoamento da radicalidade da democracia
sem concessões. Nossos governantes sabem disso. A democracia é uma jovem e
velha mulher", finaliza.
·
Adriano Diogo: não rememorar golpe é
"contradição" de Lula
O ex-deputado
estadual Adriano Diogo, que
participou da resistência armada à ditadura militar, foi preso, torturado e,
depois, ajudou a fundar o PT, disse em entrevista à Fórum que a Lula em evitar eventos alusivos ao aniversário do
golpe de 1964 não é exatamente nova.
O ex-parlamentar, que
já presidiu a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, relembra que, em
2010, Lula foi contrário a mudar a Lei da Anistia - isto é, defendeu, de certa
maneira, o entendimento de que os crimes cometidos na ditadura eram conexos e recíprocos:
“Tanto os crimes cometidos pela resistência ao regime militar, como daqueles
que participaram na repressão e na defesa do regime militar”.
O petista chama
atenção para o fato de que não sabe que “tipo de pressão” o presidente estaria
sofrendo para tomar tal atitude. Adriano Diogo relembra, contudo, que Lula teve
papel fundamental para o fim da ditadura civil-militar e que foi graças à sua eleição
em 2022 que o Brasil não sofreu um novo golpe de Estado. Neste sentido, o
ex-deputado avalia que o presidente cai em contradição.
“Eu, que
sou do PT, que vim da resistência, atribuo a Lula a enorme tarefa que ele teve
de derrotar a ditadura. E foi exatamente em 1979, que através das greves, da
fundação do PT, que a ditadura foi derrotada definitivamente, embora ela
tivesse acabado em 1985. E, agora, nós só estamos aqui nessa situação porque o
Lula e o povo brasileiro derrotaram o Bolsonaro, pois, senão, nós estaríamos
numa outra ditadura. Então, é uma enorme contradição. Às vezes, eu tendo a
achar que, entre escolher o passado ou o presente, ele escolheu enfrentar o
presente, que é a tentativa do golpe do Bolsonaro”, assevera.
Adriano Diogo, no
entanto, afirma esperar que Lula reconsidere sua posição e compareça aos atos
democráticos que serão realizados pela sociedade civil em 31 de março, como a
Caminhada do Silêncio, que acontece todos os anos em diferentes capitais do
país.
Ø
Há 60 anos o golpe militar impôs um regime
facínora no Brasil. Por José Reinaldo Carvalho
A ferida que a
ditadura militar, instaurada por um golpe de Estado há 60 anos, abriu no
organismo nacional, malgrado o tempo transcorrido, ainda não cicatrizou. A
ditadura militar provocou danos duradouros e indeléveis na vida nacional, que
não se apagam com discursos, decretos nem perorações negacionistas.
A ditadura militar foi
um regime criminoso, facínora, comandado por facínoras, um regime que atentou
gravemente contra a democracia, os direitos do povo e a soberania nacional. Um
regime cujos métodos principais para o exercício do poder foram a violência, a
mistificação e o engodo. O período de 21 anos em que durou aquele regime foi
marcado por graves violações aos direitos humanos e às liberdades
democráticas.
Os crimes cometidos
durante a ditadura militar não foram atos isolados, mas uma política de Estado
sob o estrito comando de oficiais graduados das Forças Armadas.
Diversos relatórios e
investigações ao longo dos anos comprovaram a extensão dos abusos cometidos
durante o regime militar. O relatório final da Comissão Nacional da Verdade,
por exemplo, apresentado em 2014, trouxe à tona uma série de violações de direitos
humanos, incluindo execuções, torturas, ocultações de cadáveres e perseguições
políticas.
Entre os episódios
mais marcantes desse período está o caso emblemático da Guerrilha do Araguaia,
onde mais de uma centena de guerrilheiros foram assassinados pelas forças
militares. Muitos corpos nunca foram encontrados, e suas famílias seguem em uma
busca incessante por justiça e por informações sobre o paradeiro de seus entes
queridos.
Em todas as suas
etapas o regime militar foi uma guerra contra o povo, com o recurso frequente
ao terror de Estado, porque é disso que se trata quando se tortura e assassina
presos políticos. Enfatizo: em todas as etapas, incluindo a "distensão"
do general Geisel - verdugo de patriotas, democratas, jovens guerrilheiros e
dirigentes de organizações revolucionárias - e a "abertura" do último
general-presidente, o atrabiliário João Figueirêdo.
Na execução da guerra
contra o povo e a nação foram invocados falsos pretextos para esconder os
inconfessáveis objetivos de submeter o Brasil aos desígnios imperialistas dos
Estados Unidos e a aspiração dos generais a se perpetuarem no poder. Para dar o
golpe, desfraldaram falsas bandeiras - lutar contra a corrupção, sanear a
economia, impedir a "subversão", a "república
sindicalista", a "ameaça comunista". Disseram que o golpe era
apenas um movimento "redentor" e prometeram a democracia, mas logo
ficaram evidentes os propósitos continuístas. Foi com falsos pretextos também
que promoveram uma razia entre as forças democráticas, patrióticas,
revolucionárias, nos movimentos sindicais e estudantis, entre intelectuais e os
militares genuinamente legalistas, democratas e defensores da soberania do
país. Ao declarar guerra ao povo, a ditadura militar adotou uma política de
extermínio da oposição democrática-popular e da esquerda. Em determinado
momento, a partir de finais de 1968, os generais implantaram um regime de
terror. Aquele regime atentou contra o estado de direito, tolheu as mais
elementares liberdades democráticas, desencadeou o terrorismo cultural, impôs a
censura à imprensa, às artes, à atividade científica e acadêmica, violou a
independência e harmonia entre os Poderes, manietando o Judiciário e o
Legislativo, perseguiu, prendeu e torturou dezenas de milhares de brasileiros,
indiciou em inquéritos policial-militares mais de dez mil pessoas. Assassinou
434 combatentes pela democracia.
Sucederam-se os atos
arbitrários até que a ditadura se fascistizou por completo e o Brasil viveu
mais de uma década sob o terror de Estado.
A responsabilidade
política não pode ser diluída. Os crimes propriamente ditos foram cometidos
pelas forças armadas reacionárias que agiram como instrumento das classes
dominantes e do imperialismo estadunidense. Portanto, não é justo analisar o
caráter do golpe como uma mera ação das forças conservadoras, como se em 1º de
abril de 1964 tivesse sido instaurado no país um regime
"civil-militar" e não uma ditadura militar fascista.
Desde os tempos
coloniais, passando pelo Império, a velha República, o Estado Novo e outros de
cariz liberal ou conservador, o Brasil sempre foi governado, até o advento da
ditadura de 1964, por forças conservadoras, ressalvados alguns hiatos, como o
próprio momento em que ocupava o poder o democrata, patriota e trabalhista João
Goulart, derrubado por tentar abrir caminhos a reformas estruturais de base e à
consolidação da soberania nacional. Mas uma ditadura aberta, terrorista,
fascista, foi implantada em 1964. Fosse apenas um manejo conservador, o golpe
militar de 60 anos atrás teria malogrado um ano depois, quando lideranças civis
conservadoras que ajudaram a desfechá-lo rebelaram-se ao perceber que os
generais vieram para ficar, como aliás advertira o Partido Comunista do Brasil
nos primeiros documentos que lançou para analisar o caráter do novo
regime.
O golpe militar de
1964 foi uma viragem reacionária na vida política nacional, em que as classes
dominantes, mancomunadas com o imperialismo estadunidense, lançaram mão do
poder de fogo das forças armadas para esmagar a maré montante da luta popular
por democracia, direitos sociais e soberania nacional. Tentada em outras
ocasiões, a reviravolta política de sentido reacionário só foi possível porque
prevaleceu a tendência malsã predominante nas forças armadas brasileiras desde
sempre e até hoje não contida - o militarismo. Esta tendência, este vício, esta
doença congênita da instituição militar brasileira é eivada de profundo sentido
antidemocrático, antipopular e anticomunista, travestido de nacionalismo, mas
como se viu, um nacionalismo de fancaria, porquanto a ditadura militar de 1964
serviu como vassala do imperialismo estadunidense.
A ditadura dos
generais impôs, em conluio com os centros econômicos e financeiros do
imperialismo, um modelo econômico antipopular e entreguista, contrário ao
desenvolvimento do país e ao bem-estar social. O golpe de 1964 abriu um longo
período calamitoso para o povo brasileiro. O modelo econômico imposto
pelo regime era antipopular e entreguista. O desenvolvimento do país foi
prejudicado em prol de interesses neocolonialistas.
É injusto, além de ser
um erro político, não passar a limpo este passado porque ele está vivo entre
nós nos arreganhos fascistas do ex-ocupante do Planalto com sua horda de
milicianos, do lumpensinato, e os chacais fardados que até ontem ocupavam
elevados cargos na cúpula das Forças Armadas e postos-chave no governo.
A memória desses
eventos sombrios serve como um lembrete de que a democracia e os direitos
humanos devem ser protegidos e valorizados. A história nos ensina a nunca
esquecer as consequências devastadoras da tirania e da violência das Forças
Armadas.
A história do Brasil
não pode ser escrita sem o devido reconhecimento dos crimes cometidos durante a
ditadura, e a responsabilidade das forças armadas nesse contexto deve ser
encarada com frontalidade.
Somente através do
reconhecimento e da responsabilização dos responsáveis é que poderemos
verdadeiramente construir uma sociedade justa e democrática. A memória
das vítimas e a luta por justiça não podem ser esquecidas, e cabe a esta e às
gerações vindouras garantir que as lições daquele período sejam aprendidas e
que tais atrocidades nunca mais se repitam.
As Forças Armadas têm
a obrigação de se retratar e as forças democráticas o dever de apagar da
Constituição qualquer possibilidade de interferência das corporações militares
na vida política nacional. Extirpar o militarismo como tendência política,
abolir a excrescência da GLO, fechar todas as portas ao golpismo são tarefas a
realizar.
As Forças Armadas
devem desculpas ao povo e a nação e não as instituições que elas golpearam e
vilipendiaram.
Não é por revanchismo
que os patriotas e democratas rememoram os acontecimentos desencadeados a
partir de 31 de março e 1º de abril de 1964, mas para extrair lições
pedagógicas que eduquem as gerações vindouras e preparem o país para construir
um sistema democrático em que o povo seja efetivamente dono do poder, capaz de
soerguer instituições suficientemente fortes para conjurar e se for necessário
esmagar ações militaristas como as de 60 anos atrás. E no mister de analisar, é
preciso transparência e frontalidade para designar os fatos como eles
são.
O regime militar no
Brasil foi um período de grande impacto na história do país. As marcas desse
período ainda são sentidas na sociedade brasileira, tanto na esfera política e
econômica quanto nas relações internacionais. É importante analisar esse período
de forma crítica e reflexiva, para entender seus efeitos, aprender com seus
crimes e reunir forças para lutar por uma democracia autêntica.
Fonte: Fórum
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