Os registros inéditos do SNI que espionou
mais de 300 mil brasileiros na ditadura
Nos primeiros dias de
março de 1985, pouco antes de José Sarney assumir a Presidência da República, o
temido Serviço Nacional de Informações (SNI) produziu um estudo sigiloso, “As
informações nos regimes democráticos” em que comparava a atuação de agências de
inteligência em democracias e em regimes totalitários, caso do próprio SNI.
Na avaliação do órgão,
empregar nas democracias “certos métodos” poderia levar a “violações do direito
individual e a prática de atos abusivos”. Além disso, o documento diz que as
buscas de informações estariam “sujeitas a opinião pública e legislação mais
liberais tornando-se difícil estabelecer um limite onde as ‘legítimas
aspirações do Estado terminam e começam os direitos de privacidade dos
cidadãos’”.
O documento fala mais.
Avalia que, justamente na ausência de opinião pública e de partidos políticos
de oposição, os Serviços de Informações podiam atuar sem nenhum “embaraço
ético” e sem “impedimento legal” nos regimes totalitários. E conclui: “Este é o
aspecto básico que diferencia os Serviços de Informações do mundo inteiro”.
Esse é apenas um
relatório de um conjunto de documentos inéditos encontrados no acervo do SNI
pela Agência Pública, custodiado hoje no Arquivo Nacional, que revelam como o
órgão se movimentou politicamente para manter suas atividades de arapongagem
mesmo após a saída do último general-ditador da Presidência da República.
<<<< Por
que isso importa?
Aos 60 anos da
ditadura militar, novos documentos jogam luz na atuação do maior órgão de
espionagem da ditadura ao fim do regime de exceção
Mais de 300 mil
brasileiros foram fichados durante a ditadura pelo SNI, muitos dos quais foram
presos, torturados e assassinados
·
O nascimento do “monstro”
Criado imediatamente
após o golpe de Estado de 1964, que completa 60 anos no próximo dia 31 de
março, o SNI se tornou rapidamente o centro do complexo aparato repressivo
estruturado pelos militares. Instituído pela Lei nº 4.341, de 13 de junho de
1964, o objetivo legalmente previsto para o órgão era “assessorar o Presidente
da República” em relação às atividades de informação e contra-informação”. Na
prática, os agentes do SNI desepenhavam todo tipo de ação vinculada à repressão
política, participando de operações de rua e de sessões de tortura.
O idealizador do SNI
foi o general Golbery do Couto e Silva, um dos principais articuladores do
golpe de 1964. Golbery chefiou o órgão no início do regime e foi sucedido por
militares que posteriormente chegariam ao centro do Poder Executivo federal,
como Emílio Garrastazu Médici e João Baptista de Oliveira Figueiredo,
evidenciando o peso político que o SNI possuía.
A historiadora
Priscila Brandão, autora do livro SNI
e Abin: uma leitura dos serviços secretos brasileiros ao longo do século XX,
explica que, após sua criação, o órgão se expandiu rapidamente. “O SNI vai,
igual a um polvo, se espalhando pelo Estado. Onde ele acha que precisa, ele
cria uma agência nova”, explica a historiadora. Logo, o serviço tinha braços
espalhados nos ministérios civis, nas universidades e nas empresas públicas,
além de se articular com os serviços de informações das três Forças Armadas,
com o Conselho de Segurança Nacional e com as secretarias de Segurança
estaduais.
Esse conjunto de
organismos de espionagem e repressão constituía uma rede altamente capilarizada
e autônoma de arapongagem. Com isso, o regime conseguia monitorar intensamente
toda e qualquer movimentação vista como uma ameaça à segurança nacional pelos militares.
Como a Doutrina de Segurança Nacional, substrato ideológico dos militares, era
baseada em uma visão de mundo altamente paranoica e autoritária, isso
significou, na prática, que praticamente todos os setores da sociedade foram
alvo de algum tipo de espionagem no período.
Um estudo feito
por especialistas do Arquivo Nacional de Brasília em 2008 chegou ao número de
mais de 300 mil brasileiros fichados durante a ditadura pelo SNI, muitos dos
quais foram presos, torturados e assassinados. Mas, com o fim do regime,
colocou-se a questão sobre o que fazer com o órgão. O próprio Golbery
vaticinou: “Criei um monstro”. A constatação revelava as dificuldades que a
nascente democracia teria para desmontar um aparelho tão poderoso, detentor de
dados sensíveis sobre todas as lideranças políticas do período.
·
“Entulho autoritário”,
SNI tentou sobrevida
No documento “Principais
abordagens da imprensa sobre o Sistema Nacional de Informações”, o SNI se
mostra incomodado com as críticas que se avolumavam na imprensa nacional sobre
o seu destino. Sem meias palavras, o órgão registra que “foi criado sob um
regime de censura que perdurou até 1977, imunizando-o contra críticas
públicas”. Segundo outro trecho, causava “descontentamento muito profundo aos
integrantes do SNI a intensa crítica ao órgão que, nos últimos anos, e agora
mais particularmente na transição do governo federal, vem sendo externada
através da imprensa”.
E o caminho apontado
no documento mostra o que o SNI planejava fazer: “o que importa é a mudança da
imagem pública”. A escolha dos arapongas, mostra o documento, não era a de
passar a atuar nos marcos do estado de direito. Mas, sim, encontrar formas de garantir
que sua “imagem pública” não fosse atingida.
Na redemocratização, a
ideia de que a saída da ditadura deveria ser feita sem rupturas era a
dominante. No período, defendeu-se uma “reconciliação” marcada pelo
“esquecimento” e sem “revanchismo” perante os crimes e atrocidades dos
militares.
As poucas iniciativas
que pediam medidas de reconhecimento das violências da ditadura ou reformas
institucionais – como projetos de lei que buscavam extinguir o SNI – eram
monitoradas de perto pelo órgão. É o que revelam relatórios que recebiam títulos como “Campanhas pela extinção do
Sistema Nacional de Informações e pela revogação de leis ditas ‘arbitrárias’,
movidas por organizações subversivas de ideologia comunista” ou “Campanhas
revanchistas e pela extinção do Sisni”.
Esses informes mostram
como a ideia de que o serviço deveria passar por reformas para se adequar aos
marcos da democracia era inconcebível pelos agentes, que entendiam essas
propostas como parte de uma grande campanha dos “subversivos”.
“As organizações
comunistas atuantes no Brasil vêm pregando em seus documentos, bem como em
todos os atos de que participam ou promovem, a extinção do Serviço Nacional de
Informações (SNI), a revogação da Lei de Segurança Nacional (LSN) e o
desmantelamento do Sistema Nacional de Informações (Sisni)”, sintetiza um desses relatórios.
Em um relatório mais detalhado, de maio de 1987, o SNI apontava que “o acompanhamento diário
da Grande Imprensa Nacional – GIN, revelou que são publicados artigos
relacionados com o Sisni”. O documento mostra que o serviço buscou identificar
possíveis fontes de jornalistas de veículos como a revista Veja,
a Folha de S.Paulo e o Jornal do Brasil.
Em dezembro de
1987, novo relatório listava artigos e reportagens publicadas pela Veja e
pelo Estadão sobre o envolvimento do SNI com a repressão
política da ditadura. “Os artigos em questão”, concluía o araponga autor do
informe, “pelas características com que se revestem, sobretudo quanto ao fato
de se tentar volver, ao momento atual, fatos atribuídos ao SNI no início da
década de 70, vêm desgastando a imagem do órgão”. Assim, o agente demonstrava
“preocupação quanto aos desdobramentos que poderão advir em decorrência dessa
campanha” que, segundo o documento, tentava “fomentar no seio da opinião
pública uma imagem negativa do Órgão —– com vistas ao seu total descrédito – em
que pese a relevância, seriedade e competência do trabalho de assessoramento
que este vem desenvolvendo”.
Ao longo da
redemocratização, já sob um governo civil, o SNI atuava não para se adequar aos
parâmetros democráticos do novo regime, mas sim para “neutralizar” o que eles
consideravam ameaças à sua imagem. Essa atuação ganharia contornos ainda mais
intensos durante a Assembleia Nacional Constituinte (ANC).
·
O lobby do SNI na
redemocratização
Entre os documentos
localizados pela Pública estão relatórios que comprovam como o
SNI buscou ativamente parlamentares que integravam a ANC para apresentar
propostas legislativas a serem incluídas na nova Constituição. Os próprios
parlamentares foram espionados pelo SNI durante a ANC.
Priscila Brandão
explica que, quando os trabalhos da ANC ainda estavam na fase das comissões
temáticas, o colegiado responsável por discutir temas de inteligência e defesa
ficou sob comando de Ricardo Fiúza, parlamentar próximo dos militares. “Nada do
que foi proposto fora do interesse deles foi aprovado”, sintetiza a
historiadora.
Ocorre que havia outra
frente de batalha: o colegiado em que seriam discutidos os direitos
fundamentais. Foi na Comissão da Soberania e dos Direitos do Homem e da Mulher
que se debateram os artigos que deveriam garantir o direito à privacidade, ao
sigilo de correspondência, e ao habeas data – instituto que
prevê que todo cidadão pode requisitar ao Estado as informações que os entes
públicos detêm sobre ele.
Naquele momento, em
junho de 1987, o SNI produziu um primeiro relatório com um teor semelhante ao de um estudo interno. Cada um
desses artigos era analisado e os agentes apresentavam diferentes sugestões, em
ordem de prioridade.
No artigo que
salvaguardava o “sigilo da correspondência e das comunicações em geral, salvo
autorização judicial”, o SNI sugeriu suprimir a expressão “salvo autorização
judicial”. Assim, buscava abrir caminho para manter a prerrogativa de, à
revelia de decisões do Poder Judiciário, poder interceptar comunicações
privadas.
A agência propunha
também eliminar o artigo que previa que “O Estado não poderá operar serviços de
informações sobre a vida íntima e familiar das pessoas”. Caso não fosse
possível suprimir todo o trecho, o SNI sugeria que se adicionasse, ao final da
redação, a seguinte ressalva: “salvo quando imprescindíveis à salvaguarda dos
maiores interesses da Nação”.
O SNI sugeriu, ainda,
a exclusão do artigo que previa o habeas data. Na justificativa
apresentada, os arapongas afirmavam que “a excessiva liberalidade para obtenção
de dados, disponíveis em órgãos do Estado, levaria ao perigo de tornar
vulneráveis às atividades sigilosas de interesse da Nação”.
Esse estudo feito pelo
SNI foi seguido pela implementação de uma estratégia de lobby e
atuação política da agência para fazer valer seus interesses.
Em agosto daquele ano
de 1987, a Constituinte já se encontrava em uma etapa posterior. Corriam os
trabalhos da Comissão de Sistematização, que tinha o objetivo de apresentar o
primeiro anteprojeto de texto para a nova Carta Magna. Nesse mês, o SNI produziu
um novo relatório, detalhando o lobby organizado pela agência.
Segundo o documento,
“durante a fase de apresentação de Emendas ao Anteprojeto da Comissão de
Sistematização”, o órgão “promoveu articulações com diversos Senadores e
Deputados Federais, com vistas a defender os interesses inerentes às suas
atividades”.
O texto detalha que
foram apresentadas 101 emendas por 13 constituintes, buscando suprimir ou
alterar 12 dispositivos do texto. O documento conclui que “como coroamento, no
Substitutivo do Relator, obteve-se resultados satisfatórios em 08
dispositivos”.
O relatório segue,
então, detalhando os artigos que o SNI tentou alterar. Para além daqueles já
presentes no estudo anterior, o documento revela um novo dispositivo que
incomodava os arapongas: o que declarava a tortura um crime de lesa-humanidade.
Por meio de uma articulação com o deputado Ottomar Pinto, um militar então
filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o SNI tentou excluir o texto
do anteprojeto de Constituição.
Mesmo obtendo
resultados “satisfatórios” nessa etapa, o SNI seguiu organizado para os
momentos seguintes da Constituinte.
Na virada de 1987 para
o ano seguinte, uma mudança importante ocorreu na Constituinte: o surgimento do
bloco suprapartidário intitulado Centrão. A articulação tinha como objetivo
barrar o que os parlamentares mais conservadores entendiam como excessos liberalizantes
do texto que se desenhava até aquele momento.
Assim como as Forças
Armadas, o SNI viu no Centrão um aliado de primeira hora. Entendendo a esquerda
como seu principal adversário na ANC, a agência passou a se articular
diretamente com o grupo. É o que revela um outro relatório, de janeiro de 1988, já após a conformação do Centrão e
apresentação de um primeiro anteprojeto pelo bloco.
Segundo o documento,
“o Projeto de Constituição do Centrão, apresentado sob a forma de Emendas, em
14 Jan de 88, atende aos interesses do Serviço”. Mas os arapongas faziam
ressalvas: “Não obstante, os seguintes dispositivos merecem algum reparo, pois
não atenderam integralmente às solicitações que fizemos”.
O órgão apontava, por
exemplo, que o artigo que determinava a garantia da proteção da vida privada
dos cidadãos representaria uma “inibição” à atividade policial. Já ao analisar
o texto que protegia a inviolabilidade das correspondências e das comunicações,
o relatório afirmava que ainda pretendia alterar os termos do artigo.
O trecho é revelador
de que o SNI seguiria atuando na derradeira etapa da Constituinte: a fase de
Plenário. Nos documentos localizados pela Pública, não há detalhes
de como operou o lobby nesse momento. Mas os relatórios evidenciam
como a agência buscou, até o último instante da Constituinte, eliminar do
futuro texto constitucional elementos basilares de um estado de direito – como
a garantia da proteção da intimidade e a inviolabilidade das comunicações
privadas.
Apesar de a nova Carta
Magna trazer algumas das garantias que o SNI queria simplesmente eliminar, a
agência sobreviveu à mudança de regime. “Nós passamos por uma transição
política e o poder civil não foi capaz de peitar o poder militar a ponto de
extinguir o SNI”, aponta Brandão.
Sua extinção ocorreria
apenas em 1990, nos primeiros dias do governo Collor. “Não necessariamente
porque o Collor tinha um grande projeto para a atividade de inteligência”,
esclarece a historiadora. “Quando Collor era candidato, o então chefe do SNI
deu um chá de cadeira de cinco horas nele. Então sua atitude de extinguir o SNI
está vinculada a uma vingança pessoal.”
Tampouco o contexto de
criação de um novo órgão de inteligência seria marcado por discussões profundas
sobre o tema. “A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) foi criada em 1999
como resultado de um debate congressual muito pobre”, explica Brandão. Inicialmente,
o governo Fernando Henrique Cardoso buscou estabelecer a agência por meio de
Medida Provisória em 1995. Diante de críticas do Congresso, apresentou um
Projeto de Lei em 1997. “Mas haverá pouquíssimos debates para se chegar à
redação final da lei”, registra a historiadora.
O resultado foi uma
lei caracterizada pela especialista como “muito ruim”, por trabalhar com um
conceito “extremamente amplo” sobre o que é a atividade de inteligência, o que
abriria caminho para distorções da atividade da agência. Além disso, Brandão explica
que, até hoje, a doutrina que o órgão segue é influenciada pelos termos da
Doutrina de Segurança Nacional da ditadura.
“Então esse é o grande
problema”, sintetiza Priscila Brandão. “Tem uma percepção do indivíduo, do
cidadão brasileiro como inimigo, como alguém que pode ter os seus direitos
desrespeitados.”
Fonte: Por Lucas
Pedretti, da Agencia Pública
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