A 'tempestade perfeita' que explica
explosão de casos de dengue no Brasil
De janeiro de 2024 até
agora, o Brasil registrou mais de 2,3 milhões de casos prováveis de dengue.
Esse número supera —
em mais de 500 mil — todos os diagnósticos da doença no ano passado inteiro.
Também simboliza a
pior crise sanitária relacionada ao vírus transmitido pelo mosquito Aedes
aegypti desde o início da série histórica do Ministério da Saúde, a partir do
ano 2000.
A pior temporada de
dengue havia sido em 2015, quando o país teve 1,68 milhão de casos prováveis.
Na sequência, vinha 2023, com 1,65 milhão.
Mas o que explica esse
cenário de 2024?
Segundo especialistas
ouvidos pela BBC News Brasil, uma "tempestade perfeita" — que engloba
mudanças climáticas, fenômenos meteorológicos, subtipos de vírus e falhas de
políticas públicas — ajuda a entender a epidemia atual.
De acordo com sua
avaliação, é necessário lançar um conjunto de estratégias para mitigar os
riscos e evitar que os números continuem elevados — ou sejam ainda piores de
2025 em diante.
Um vírus de diferentes
faces
Para entender os
desafios de lidar com a dengue, é preciso antes conhecer alguns detalhes sobre
o vírus por trás dessa doença.
O patógeno tem quatro
versões diferentes, que são conhecidas pelas siglas Denv-1, Denv-2, Denv-3 e
Denv-4.
Na prática, isso
significa que uma mesma pessoa pode ter dengue quatro vezes na vida.
Ela pode ser picada
por um Aedes aegypti que carrega o Denv-1, por exemplo — e, após a recuperação,
ficar imune contra esse subtipo específico do vírus.
Mas, caso seja picada
por um mosquito que carrega o Denv-2, o Denv-3 ou o Denv-4, pode desenvolver a
doença uma segunda vez (e uma terceira ou quarta).
Essa característica da
dengue cria uma dinâmica específica de transmissão, cujos padrões se repetem
mais ou menos a cada cinco anos.
É frequente que uma
determinada região ou cidade seja acometida por um subtipo específico do vírus
durante uma ou algumas temporadas de calor.
Passado um tempo,
quando a maior parte da população já foi infectada — e, portanto, está
protegida contra aquele subtipo —, os casos tendem a baixar por uma espécie de
imunidade coletiva — até que outra versão se dissemine e dê início a um novo
ciclo de transmissão.
Esse tipo de fenômeno
parece ter ocorrido no último verão.
"Tudo sugere que
houve uma inversão dos vírus circulantes nas cidades que são, historicamente,
atingidas pela dengue, como Rio de Janeiro e São Paulo", resume o
pesquisador em saúde pública Leonardo Bastos, da Fundação Oswaldo Cruz
(FioCruz), que coordena o InfoDengue, uma plataforma pública que reúne
estatísticas e análises sobre a doença no país.
"Em lugares em
que antes predominava o Denv-1, o Denv-2 passou a circular com mais
intensidade, ou vice-versa."
Ao mesmo tempo, houve
um aumento da circulação do Denv-3 e do Denv-4, que não apareciam com grande
intensidade no Brasil há décadas, acrescenta a infectologista Raquel Stucchi,
professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Ou seja: esse
rearranjo de versões virais, que pegam uma grande parcela da população
desprotegida e sem imunidade, é o primeiro ingrediente que ajuda a entender a
atual situação sanitária.
Mas não é suficiente
para explicar todo o cenário.
·
Um mosquito que ganha terreno
O segundo elemento da
lista envolve uma espécie de expansão de território do Aedes aegypti.
Em artigo de revisão
publicado em 14 de março no periódico acadêmico Nature Reviews Microbiology, o
virologista brasileiro William M. de Souza, professor da Universidade do
Kentucky, nos Estados Unidos, resumiu os efeitos das mudanças climáticas e das
atividades humanas nas doenças transmitidas por vetores (como é o caso da
dengue).
"Primeiro,
precisamos destacar a mudança demográfica. As pessoas moram cada vez mais em
áreas urbanas, e o Aedes é um mosquito que vive nas cidades", destaca
Souza.
"Ou seja, com um
número maior de indivíduos concentrados em um espaço pequeno, há uma chance
ampliada de o mosquito conseguir transmitir mais e mais."
Soma-se a isso o fato
de a expansão das cidades brasileiras acontecer na maioria das vezes de uma
forma desordenada e desigual, sem saneamento básico ou coleta de lixo.
Isso, por sua vez,
também representa uma boa notícia para o mosquito, que encontra um vasto número
de reservatórios de água parada para botar os ovos, se reproduzir e perpetuar
os ciclos de transmissão e infecção.
"A especulação
imobiliária diminui áreas de mata e aumenta os criadouros do Aedes em regiões
domésticas e urbanas", resume Stucchi, que também integra a Sociedade
Brasileira de Infectologia.
Para piorar, todo esse
fenômeno é catapultado no Brasil e no mundo pelas mudanças climáticas, que
geram aumento da temperatura média e alterações nos regimes de chuvas.
"Historicamente,
as zonas temperadas do planeta, como partes dos Estados Unidos e Europa, não
tinham a circulação de vetores transmissores de doenças. Eles ficavam restritos
às regiões tropicais", explica Souza.
Mas isso mudou
recentemente: o Aedes foi flagrado em partes dos Estados Unidos, como a
Flórida, e na região do Mediterrâneo, como na Itália e França.
"No Brasil, os
Estados do Sul não sofriam com surtos ou epidemias de dengue. Mas as mudanças
climáticas geraram condições favoráveis para o mosquito nesta região",
destaca Bastos, da FioCruz.
"Com toda uma
população vulnerável à dengue, os casos explodiram ali nos últimos anos."
Além das mudanças
climáticas, o verão de 2023/2024 teve outro agravante: um El Niño muito
intenso.
O fenômeno
meteorológico relacionado às águas do Oceano Pacífico fez os termômetros
subirem ainda mais e alterou o regime de chuvas nos últimos meses.
Como o calor deixa os
Aedes mais ativos, isso potencializa sua reprodução.
Neste contexto, a
questão da chuva é uma faca de dois gumes.
Por um lado, pancadas
d’água frequentes criam novos criadouros para o mosquito. Por outro, secas
estimulam que as pessoas mantenham em casa reservatórios de água, muitos deles
sem nenhuma proteção.
"Juntos, todos
esses fatores criaram uma tempestade perfeita que leva ao panorama atual da
dengue", diz Bastos.
O especialista destaca
que as curvas de casos de dengue em alguns Estados brasileiros durante o verão
foi diferente do esperado.
Geralmente, os
diagnósticos começam a subir entre o final de fevereiro e o começo de março,
quando as chuvas ficam mais frequentes e intensas.
Mas, em lugares como
São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal, as infecções começaram a se
multiplicar a partir do final de dezembro, com um pico no meio de fevereiro.
"Já o Nordeste,
que não sofreu tanto os efeitos do El Niño, não apresentou essa curva. Os casos
estão elevados por lá, mas estão crescendo agora, como o esperado",
acrescenta o pesquisador da FioCruz.
Onde erramos e como
podemos melhorar
Questionados pela BBC
News Brasil sobre o que fazer agora para lidar com surtos e epidemias de dengue
no futuro, os especialistas são unânimes em afirmar que não existe uma
"bala de prata" para resolver a questão.
"Já passamos do
ponto em que seria possível reduzir o impacto da dengue. Agora, temos que
mitigar o problema ou agir para que a situação piore o mínimo possível",
analisa Souza.
Segundo os
pesquisadores, os surtos frequentes e os números crescentes de casos indicam
que as campanhas de conscientização sobre a dengue não estão funcionando.
Eliminar os pratinhos
dos vasos de planta, limpar as calhas do telhado entupidas e tampar caixas
d’água são atitudes importantíssimas para evitar criadouros do Aedes.
Porém, por mais que
essa recomendação seja reforçada há anos, não está surtindo os resultados
esperados, uma vez que o mosquito continua a assombrar, com cada vez mais
intensidade, as temporadas de calor.
"Nossa
comunicação sobre as doenças infecciosas no geral nunca foi boa e tem deixado a
desejar", opina Bastos.
Em paralelo às
campanhas públicas, as estratégias de controle do transmissor ganharam novas
ferramentas.
Uma delas é o Método
Wolbachia, que libera mosquitos Aedes com uma bactéria no intestino capaz de
bloquear a transmissão do vírus da dengue para as pessoas.
Já o tradicional
fumacê, que joga inseticidas em uma determinada região, tem se tornado
ineficaz, apontam os especialistas.
Isso porque os
mosquitos desenvolveram uma resistência ao veneno — e as substâncias químicas
utilizadas podem ser danosas a outras espécies, como algumas abelhas.
Para evitar surtos e
epidemias devastadores no futuro, Souza vê a necessidade de um planejamento de
longo prazo.
"Sabemos que os
casos aumentam nos meses mais quentes, entre dezembro e março. Mas as
estratégias de controle e prevenção devem acontecer o ano todo, até porque os
ovos do mosquito permanecem no ambiente", explica ele.
Já Bastos entende que
o Brasil precisa melhorar a vigilância genética sobre o vírus causador da
doença.
"Poderíamos
monitorar os subtipos de vírus que estão circulando para saber se há alguma
modificação na dinâmica e o que pode ser feito a partir daí", resume ele.
Já Stucchi acredita
que é preciso mudar como organizamos as cidades — desde o manejo de lixos e do
saneamento básico até a construção civil.
"Para evitar
outros surtos não apenas de dengue, mas também de chikungunya, febre amarela e
outras viroses, precisamos olhar com mais cuidado a exploração imobiliária em
áreas florestais", diz a infectologista.
"O poder público
também precisa investir em educação, além de vistoriar e agir nos terrenos
abandonados, na coleta de lixo e na eliminação de esgotos a céu aberto."
Uma novidade recente
nesse campo foi a aprovação da Qdenga, uma vacina desenvolvida pela
farmacêutica japonesa Takeda.
Ela foi incorporada no
Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Ministério da Saúde — porém, por uma
restrição de doses, a campanha de imunização atual inclui apenas grupos
específicos de cidades selecionadas.
"Além disso, a
vacina só pode ser aplicada em pessoas de 4 a 60 anos. Por ora, não há
indicação de uso justamente para aqueles públicos que têm uma taxa de
mortalidade maior pela dengue, como as crianças pequenas e os idosos",
observa Stucchi.
"Precisamos de
vacinas efetivas e seguras que cubram as faixas etárias mais acometidas."
A médica também
reforça a necessidade de desenvolver remédios específicos contra a dengue — até
o momento, o tratamento envolve apenas aliviar os sintomas, repousar e
caprichar na hidratação.
"A dengue sempre
afetou mais os países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Agora que ela
começa a aparecer na França, Itália e Estados Unidos, é possível que tenhamos
mais investimentos para o desenvolvimento de drogas antivirais. Pelo menos, é a
nossa esperança."
Fonte: BBC News Brasil
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