Ditadura: Após 21 anos, Comissão de Anistia
julga primeira reparação coletiva a indígenas
Instalada no final do
governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2002, a Comissão de Anistia, órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos que tem por
objetivo reconhecer e reparar os danos causados pela ditadura militar, fará o primeiro julgamento de reparação coletiva da história,
no próximo dia 2 de abril. Na pauta estão dois casos envolvendo povos
indígenas: os Guarani-Kaiowá (Mato Grosso do Sul) e os Krenak (Minas Gerais).
Em entrevista
à Agência Pública, o procurador do Ministério Público Federal (MPF) em
Minas Gerais Edmundo Antonio Dias Netto, autor do requerimento de anistia ao
povo Krenak – o primeiro de reparação coletiva, apresentado à comissão há nove
anos –, explica a relevância do julgamento inédito e narra o histórico de
omissão do Estado brasileiro para responder às violações contra os indígenas,
que sofrem até hoje consequências do regime militar.
“O Estado brasileiro
precisa confrontar-se com a gravidade das violações que cometeu contra os povos
indígenas no nosso país. Reconhecer esses malfeitos é o primeiro passo para uma
reparação”, destacou o procurador. Ele explica que além do pedido de desculpas
– uma das formas de reparação presentes na atuação da comissão –, é possível
que sejam emitidas recomendações para outros entes federativos e órgãos
públicos, que poderão “atuar para o desvendamento da verdade e preservação da
memória, para a adoção de medidas de não repetição e reformas institucionais”.
Durante a ditadura
militar, os Krenak foram torturados, presos e submetidos a maus-tratos,
trabalho forçado e ao deslocamento compulsório de seu território. Três
episódios marcaram os ataques contra eles nessa época: a criação da Guarda
Rural Indígena (Grin); a instalação do Reformatório Krenak, que era um presídio
para indígenas, em Resplendor (MG); e o deslocamento forçado de índios para a
fazenda Guarani, no município de Carmésia (MG), que também funcionou como
centro de detenção arbitrária de indígenas após a extinção do Reformatório
Krenak.
O pedido de reparação
ao povo Krenak ficou parado na Comissão de Anistia durante os governos de Dilma
Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB). Em 2022, na gestão de Jair Bolsonaro (PL),
foi indeferido. “Isso ocorreu no contexto dos enormes retrocessos na proteção
de direitos humanos que o nosso país viveu. Viveu porque o nosso passado
autoritário se faz presente ainda hoje, como todos nós sabemos e pudemos
presenciar nos últimos anos”, observou Dias Netto.
A reparação coletiva
defendida pelo MPF desde 2015 só se tornou possível em março do ano
passado, após uma mudança no regimento interno da Comissão de Anistia. Até
então, o órgão previa apenas a reparação individual às vítimas da ditadura.
Outra alteração no regimento da comissão permitiu também a revisão de decisões
que já tinham sido indeferidas, como o caso dos Krenak.
Além do requerimento
de reparação à Comissão de Anistia, o MPF move uma Ação Civil Pública contra a
União, o estado de Minas Gerais e contra o major reformado da Polícia Militar
de Minas Manoel dos Santos Pinheiro. Conhecido como capitão Pinheiro, ele foi
personagem-chave nas denúncias de violações de direitos humanos contra os
Krenak, mas morreu em 2023 sem ser julgado na esfera criminal pelo crime de
genocídio, pelo qual foi acusado.
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Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
·
Em março de 2015, o
senhor apresentou um pedido de anistia coletiva do povo Krenak que será julgado
em abril pela Comissão de Anistia. Gostaria que o senhor explicasse a
importância histórica dessa reparação.
O Estado brasileiro
precisa confrontar-se com a gravidade das violações que cometeu contra os povos
indígenas no nosso país. Reconhecer esses malfeitos é o primeiro passo para uma
reparação. Para além do pedido de desculpas – que é uma das formas de reparação
possíveis na atuação da Comissão de Anistia –, há também a possibilidade de que
a comissão emita recomendações para outros entes federativos e para órgãos
públicos que podem, ao cumprir o que lhes seja recomendado, atuar para o
desvendamento da verdade e preservação da memória, para a adoção de medidas de
não repetição e reformas institucionais, assim como para a reparação traduzida
em formas de satisfação às coletividades que sofreram as violações, cometidas
no contexto da ditadura militar.
·
Por que só agora, nove
anos depois, o caso será analisado?
O pedido de anistia
política dos Krenak foi apresentado em março de 2015 ao então ministro da
Justiça [José Eduardo Cardozo], quando ainda havia o entendimento geral de que
a anistia política somente deveria ser concedida em caráter individual. Nessa
época, a Comissão de Anistia, que ainda integrava a estrutura do Ministério da
Justiça, havia anistiado politicamente, em 2014,16 indígenas da etnia
Suruí-Aikewara, mas essa anistia tinha sido concedida em caráter individual.
Já o pedido que
apresentei em 2015 pelo MPF trouxe uma nova interpretação, que considerava a
possibilidade de concessão de anistia política a título coletivo. Seja pelo
sentido do artigo 232 da Constituição de 1988, seja pela forma de
auto-organização dos povos indígenas, seja pela cosmovisão indígena, seja
porque estamos falando de bens que têm titularidade coletiva, faz mais sentido
pensar em formas de reparação coletivas, para violações que foram sentidas por
todo um determinado grupo, como no caso das graves violações cometidas contra
os Krenak.
Nessa mesma linha, de
que a afetação diz respeito a toda a coletividade, a 6ª Câmara de Coordenação
do MPF – que é o colegiado do Ministério Público Federal que coordena a atuação
na promoção dos direitos indígenas e dos demais povos e comunidades tradicionais
– emitiu, em abril de 2017, uma nota técnica sobre a possibilidade de concessão
de anistia política a título coletivo, considerando o caso concreto dos Krenak.
Mas, em 2017, já
vivíamos um momento de instabilidade política e a Comissão de Anistia, enquanto
órgão do Poder Executivo, não avançou na interpretação que ainda conferia a
esse tema. Na verdade, o requerimento de anistia política coletiva do povo
Krenak, que já estava parado desde que foi apresentado em 2015 [governo Dilma
Rousseff], continuou sem andamento no governo seguinte [de Michel Temer], até
que foi indeferido em 2022 [durante a gestão de Jair Bolsonaro]. Obviamente,
isso ocorreu no contexto dos enormes retrocessos na proteção de direitos
humanos que o nosso país viveu. Viveu porque o nosso passado autoritário se faz
presente ainda hoje, como todos nós sabemos e pudemos presenciar nos últimos
anos.
Em março do ano
passado, a atual composição da Comissão de Anistia alterou seu regimento
interno, assegurando o direito de requerer a reconsideração das decisões da
comissão, com o objetivo de restaurar a legalidade administrativa dos
procedimentos que tivessem resultado no indeferimento dos pedidos que traziam.
O novo regimento da Comissão de Anistia passou também a prever de modo expresso
a possibilidade de anistia coletiva.
·
O que motivou a
mudança do regimento interno da Comissão de Anistia? Gostaria que o senhor me
contasse, se possível, os bastidores da mobilização, tanto do Ministério
Público como do povo Krenak junto ao governo federal para que fosse feita essa
alteração.
É importante dizer que
o mérito da alteração de entendimento da Comissão de Anistia é exclusivamente
de seus integrantes, que inclusive passaram a contar com uma comissionada
indígena, a dra. Maíra Pankararu [primeira indígena a compor a Comissão de Anistia].
Essa evolução da interpretação sobre as formas possíveis de concessão de
anistia política é um passo que precisava ser dado já há muito tempo, desde
antes do primeiro requerimento de anistia coletiva, apresentado pelo MPF em
2015, no caso Krenak. Isso só se tornou possível pelo envolvimento da
presidenta da Comissão de Anistia, professora Eneá de Stutz e Almeida, e dos
demais comissionados.
É claro que a abertura
para a alteração do regimento interno da Comissão de Anistia é uma decorrência
do novo ambiente político que vivemos, embora seja um ambiente que carregue,
como se pode observar, a marca da crescente complexidade brasileira e do mundo
atual, o que por vezes carrega contradições que trazem alguma perplexidade.
·
O que motivou o
Ministério Público Federal a pedir a anistia ao povo Krenak à Comissão de
Anistia no contexto de 2015? Foi após o relatório da Comissão Nacional da
Verdade? Gostaria que o senhor contasse sobre o histórico desse processo.
O relatório final dos
trabalhos da Comissão Nacional da Verdade é de 10 de dezembro de 2014. A essa
altura, o fato é que já tramitava um inquérito civil instaurado no MPF aqui em
Belo Horizonte, a partir da representação de um cidadão, tratando das graves
violações que foram cometidas pela ditadura militar contra o povo indígena
Krenak. Já havíamos, inclusive, ouvido vários indígenas na Terra Indígena
Krenak e na Terra Indígena Maxakali, seja com relação ao Reformatório Krenak e
ao deslocamento forçado para a fazenda Guarani, seja no que diz respeito à
Guarda Rural Indígena.
O relatório final dos
trabalhos da Comissão Nacional da Verdade constituiu um elemento a mais no
conjunto das provas apresentadas pelo MPF, seja no requerimento de anistia
coletiva [de março de 2015], seja na Ação Civil Pública, ajuizada em dezembro
de 2015, contra a União Federal, o estado de Minas Gerais, a Funai [atual
Fundação Nacional dos Povos Indígenas], a Ruralminas [fundação estadual que
depois veio a ser extinta] e contra o capitão Manoel dos Santos Pinheiro, em
que postulamos medidas mais amplas de reparação, de desvendamento da verdade,
preservação da memória e implementação de medidas de não repetição.
Esse reforço trazido
pela menção ao caso Krenak no relatório final dos trabalhos da CNV foi
utilizado também na denúncia criminal oferecida pelo MPF, em outubro de 2019,
contra o capitão Pinheiro, pelo crime de genocídio.
Mas, nessas três
perspectivas – administrativa, cível e criminal –, o conjunto probatório das
graves violações cometidas contra o povo Krenak é muito amplo, mesmo que a
denúncia criminal, após recebida pela Justiça Federal em Governador Valadares,
depois tenha sido trancada, por questões de interpretação jurídica, pelo
Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
·
O senhor poderia
resumir quem foi o capitão Pinheiro, falecido em setembro do ano passado, e por
que ele foi denunciado por crime de genocídio?
Em suma, ele foi
denunciado por genocídio porque, ao viabilizar a instalação do presídio Krenak,
o funcionamento da Guarda Rural Indígena (Grin) e o deslocamento forçado para a
fazenda Guarani, o capitão Pinheiro submeteu o grupo étnico Krenak a condições
de existência capazes de ocasionar sua destruição física total ou parcial, além
de ter ensejado um processo de profunda traumatização psicossocial coletiva dos
Krenak. Ele foi a pessoa que encarnou os atos de Estado que resultaram nos
episódios emblemáticos que sintetizaram essas graves violações.
O capitão Pinheiro
ocupava a dupla posição de chefe da Ajudância Minas-Bahia [uma instância
regional da Funai que abrangia o território Krenak naquela época] e de
comandante-geral da Grin, porque uma portaria da presidência da Funai, datada
de 1969, estabelecia que o comando-geral da Grin seria exercido pelo chefe da
Ajudância Minas-Bahia. Quem tinha sido nomeado chefe dessa instância regional
da Funai? O capitão Manuel dos Santos Pinheiro.
Em 2015, eu estive com
ele para ouvi-lo em Congonhas do Campo (MG), município onde ele morava, quando
eu estava instruindo o inquérito civil que resultou na Ação Civil Pública, mas
ele fez uso do direito de permanecer em silêncio e não respondeu a nenhuma
pergunta. Quando ele me viu assinando o termo de declarações – canhoto que sou
–, ele falou: “Ah, o senhor é esquerdista”. Foi a única coisa que disse.
·
Mas, com a morte do
capitão Pinheiro, o processo criminal contra ele foi extinto, certo?
Sim. Já na esfera
civil, na Ação Civil Pública, pedimos que fosse declarada a relação jurídica
que ele, Manuel dos Santos Pinheiro, tinha com a União, a Funai e o estado de
Minas Gerais, e essa declaração – que foi feita por sentença – traz ínsita a
responsabilidade dele por essas graves violações de direitos dos povos
indígenas. Isso tem um significado importante, na medida em que o desvendamento
da verdade e a preservação da memória constituem um dos eixos basilares da
justiça de transição, para que possamos – quem sabe um dia – superar no país
esse passado de autoritarismo.
·
Quais outras medidas
de reparação previstas em decisões judiciais no âmbito da Ação Civil Pública já
foram cumpridas?
A União reuniu e
sistematizou toda a documentação relativa às graves violações aos direitos
humanos dos povos indígenas, que dizem respeito à instalação do Reformatório
Krenak, à transferência forçada para a fazenda Guarani e ao funcionamento da
Guarda Rural Indígena, disponibilizando essa documentação na internet. A União
apresentou nos autos uma nota informativa sobre o cumprimento desse ponto da
sentença.
·
Como estão as
negociações com o governo federal para o cumprimento das outras medidas de
reparação?
A Ação Civil Pública
foi julgada em 2021 [os réus da ação foram condenados pela juíza federal do
caso], mas a Funai conseguiu junto ao Tribunal um efeito suspensivo em sua
apelação. Um grande anseio dos Krenak – porque o território é verdadeiramente
essencial para os povos indígenas –, por exemplo, deferido pela juíza federal
do caso e que se encontra suspenso por causa da decisão favorável ao efeito
suspensivo pedido pela Funai, é a concretização da demarcação do território de
Sete Salões (MG), que tem inclusive um valor espiritual para os Krenak.
No ano passado, três
indígenas Krenak e eu nos reunimos com a presidenta da Funai, Joênia Wapichana,
para falar justamente sobre a necessidade de destravar esse processo e de levar
adiante a conclusão dos trabalhos de identificação e delimitação do território.
Nós tivemos essa reunião no sentido de sensibilizá-la da importância da
implementação desses pontos da sentença. Ela nos ouviu, disse que estudaria o
caso, mas o fato é que ainda permanece vigente o efeito suspensivo que a Funai
obteve junto ao Tribunal.
·
O senhor também foi um
dos procuradores a atuar no caso envolvendo o rompimento da barragem de
rejeitos em Mariana, mais uma violência contra o povo Krenak. O senhor pode
resumir o impacto desse desastre para os Krenak?
Não atuo mais no
processo de reparação desse desastre causado pela Vale, pela BHP Billiton e
pela Samarco, de modo que vou me limitar ao período em que atuei, e que incluiu
o do ajuizamento, em março de 2016, da Ação Civil Pública de reparação, que se
tornou conhecida como a ACP de R$ 155 bi – valor da causa à época –, formulada
a várias mãos pelo grupo que então atuava no caso. Um dos pontos da ação era
justamente a reparação aos povos indígenas, entre eles o povo indígena Krenak.
É possível traçar
alguns paralelos materiais. Por exemplo, de 1972 a 1980, por causa do
deslocamento forçado para a fazenda Guarani, os Krenak ficaram impedidos de
realizar rituais culturais junto ao Watu – que é a forma que eles chamam o rio
Doce –, uma entidade sagrada para eles. Em novembro de 2015, com o desastre do
rompimento da barragem do Fundão, o rio foi morto pelas mineradoras e isso teve
também o efeito de impedir essa convivência do povo Krenak com o seu rio
sagrado e a realização de rituais às suas margens.
Há outras aproximações
materiais possíveis. Quando os Krenak foram forçados a se deslocar para a
fazenda Guarani, fazendeiros da região do médio rio Doce se apossaram de suas
terras e devastaram seu território tradicional. Já em 2015, com o desastre da Vale,
da BHP e da Samarco, uma nova devastação ambiental veio com os rejeitos da
mineração. Então, em ambos os casos, o povo Krenak sentiu a devastação
ambiental e a impossibilidade de conviver com o seu Watu.
Embora os contextos
sejam diferentes, o regime militar de 1964-1985 – que também era empresarial,
já que apoiado por macroempresas da época – causou ao povo Krenak feridas
profundas, que nem haviam cicatrizado, quando foram reabertas pela lama da
mineração das empresas Vale, BHP Billiton e Samarco.
Fonte: Por Alice
Maciel, da Agência Pública
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