quarta-feira, 27 de março de 2024

Caso Marielle: como investigação revela os tentáculos do crime organizado no mundo político

Câmara dos Deputados, Assembleia Legislativa, Câmara Municipal, Tribunal de Contas do Estado do Rio. Em cada uma dessas instituições, atua um Brazão, clã que teve dois membros, Chiquinho e Domingos, presos no domingo (24/3) no âmbito da investigação das mortes de Marielle Franco e Anderson Gomes.

Entre o fim de 2023 e início de 2024, na prefeitura do Rio de Janeiro, a Secretaria Especial de Ação Comunitária também teve Chiquinho como titular.

Para este ano, os Brazão já preparam a renovação: o jovem Kaio Brazão, de 22 anos, deve concorrer para vereador, tentando garantir a sobrevivência do clã político, agora sob investigação policial.

A presença ostensiva em instituições públicas indica a pujança da máquina política fundada por Domingos Brazão em 1996, quando se elegeu pela primeira vez vereador pelo antigo PL. Ela não é a única do gênero a atuar no Estado, mas tem características próprias.

Uma é seu forte enraizamento na Zona Oeste do Rio, a partir da Taquara, bairro da região de Jacarepaguá, com assistencialismo, prestação de favores e serviços sociais em áreas com presença de milícias.

Outra particularidade é a forte proximidade com agentes do Estado — policiais, por exemplo. A terceira é sua penetração, por meios legais, em instituições públicas, como os vários níveis do Legislativo — às vezes, importante para a governabilidade, abrindo espaço no Executivo.

Não foi por acaso que o então candidato à reeleição, governador Cláudio Castro (PL) elogiou Chiquinho em discurso na campanha passada.

Também não foi sem motivo que o prefeito Eduardo Paes foi a um evento de pré-lançamento da candidatura de Kaio Brazão recentemente.

Os dois eventos foram gravados em vídeo, que circularam nas redes sociais e aplicativos de mensagem depois que a Polícia Federal prendeu Chiquinho e Domingos Brazão na manhã do domingo.

A nomeação do deputado federal para a Secretaria Municipal no fim do 2023 — ele pediu demissão no começo de fevereiro — foi outro sinal da força da família.

Atualmente, a estrutura política do clã inclui:

  • Chiquinho Brazão, deputado federal;
  • Manoel Inácio (conhecido como Pedro) Brazão, deputado estadual;
  • Waldir Rodrigues Moreira Júnior (sem parentesco direto, mas ligado politicamente à família e conhecido como Waldir Brazão), vereador;
  • Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio, após carreira parlamentar.

Chiquinho e Manoel se elegeram pelo União Brasil; Waldir não tem filiação, segundo seu perfil no site da Câmara. Domingos chegou ao cargo na corte de Contas em 2015, com apoio do seu último partido, o MDB de Sérgio Cabral Filho. O governador era Luiz Fernando Pezão.

Para o cientista político Ricardo Ismael, da PUC-RJ, embora tráfico e milícia de outros Estados também atuem politicamente, a situação no Rio e Janeiro tem particularidades que a tornam única.

Aqui, observa, a presença de traficantes e milicianos na política é “muito mais forte” do que em outros Estados.

O pesquisador ressalta que, em território fluminense, ocorre a confluência da política institucional com a dominação de territórios por milicianos e a influência desses grupos no aparelho de Estado, fortalecendo-os.

Para ele, as investigações do caso Marielle Franco desvendaram uma grande vulnerabilidade do sistema político e partidário local.

“Não se pode naturalizar que uma das pessoas presas tivesse influência na Polícia Civil”, afirmou. “O outro [preso] é deputado federal… Não se pode achar tudo isso natural ou normal.”

Além de Chiquinho e Domingos Brazão, o ex-chefe de polícia do Estado do Rio Rivaldo Barbosa também foi preso preventivamente neste domingo (24/3).

Os Brazão negam qualquer participação no caso. A BBC News Brasil ainda não conseguiu contato com a defesa de Barbosa.

·        Estado e prefeitura dizem apoiar investigações

Procurados pela BBC News Brasil, o governo do Rio e a prefeitura da capital responderam com notas de apoio às investigações do caso Marielle.

Sem comentar o discurso de apoio de Cláudio Castro a Chiquinho Brazão na campanha de 2022, o governo estadual divulgou o seguinte texto:

“O Governo do Estado vem desde cedo acompanhando a operação da Polícia Federal, inclusive três delegados da Subsecretaria de Inteligência da Polícia Civil, escolhidos em comum acordo com a PF, acompanharam as diligências que envolvem dois delegados e um comissário.”

“O desfecho do brutal assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes é um passo importante para enfrentarmos o crime organizado em nosso estado. A participação, seja qual for, de agentes públicos neste crime, será rigorosamente apurada para que sejam punidos exemplarmente.”

“A Corregedoria Geral Unificada, sob a liderança do desembargador Antônio José Ferreira Carvalho, vai apurar a conduta destes policiais com o devido rigor necessário. Continuamos apoiando as instituições para o desfecho final desse crime!”

Já a prefeitura do Rio, também sem comentar a presença de Eduardo Paes no evento de Kaio Brazão, afirmou, por escrito, o seguinte:

"A Prefeitura do Rio informa que o Partido Republicanos, ao estabelecer aliança com a administração municipal, escolheu no final de 2023 o deputado federal Chiquinho Brazão como representante da legenda para ocupar a Secretaria de Ação Comunitária. Quando surgiram especulações sobre o caso, foi solicitada ao partido a indicação de um nome para substituí-lo e ele foi exonerado no início de 2024. A Prefeitura do Rio reforça seu apoio às investigações sobre o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes e espera que o caso seja elucidado pela Justiça."

¨      Miliciano infiltrado no PSol ajudou a planejar morte de Marielle

O planejamento da morte de Marielle Franco, assassinada em 14 de março de 2018, envolveu um miliciano infiltrado no Partido Socialismo e Liberdade (PSol). De acordo com relatório final da Polícia Federal (PF), Laerte Silva de Lima se filiou à sigla cerca de um ano antes da execução da vereadora e era responsável por “levantar informações internas” da legenda.

Segundo delação premiada de Ronnie Lessa, um dos executores de Marielle, Laerte alertou Domingos Brazão, um dos mandantes do crime preso neste domingo (24/3), de que a vereadora estaria pedindo para a população das regiões de atuação dos irmãos Brazão que não aderissem a “novos loteamentos situados em áreas de milícia”.

Durante as investigações, a PF constatou que, no período em que antecede a morte de Marielle, Laerte manteve “intensa comunicação” com o Major Ronald, miliciano indicado como um dos autores intelectuais do assassinato. Laerte é membro da milícia de Rio das Pedras e tinha ligação estreita com o Escritório do Crime — quadrilha de matadores de aluguel que atua na Zona Oeste do RJ.

A motivação para matar Marielle teria surgido de informações fornecidas por Laerte, que indicavam que a vereadora teria se tornado em um “obstáculo” aos interesses dos mandantes do crime. Isso porque o miliciano se infiltrou no PSol, inicialmente, para levantar dados gerais sobre os políticos do partido, já que os irmãos Brazão têm histórico de rivalidade com parlamentares da sigla.

Meses após a infiltração, Laerte começou a municiar os Brazão com informações sobre a atuação política de Marielle e o nome da vereadora se tornou alvo dos milicianos. “Domingos Brazão passou a ser mais específico sobre os obstáculos que a vereadora poderia representar. São feitas referências a reuniões que a vereadora teria mantido com lideranças comunitárias da região das Vargens, na Zona Oeste Rio de Janeiro, para tratar de questões relativas a loteamentos de milícia”, destaca o relatório da PF.

“Mencionou-se que, por conta de alguma animosidade, haveria um interesse especial da vereadora em efetuar este combate nas áreas de influência dos Brazão, dado que seria oriundo das ações de infiltração de Laerte”, relatou Lessa na delação. Os irmãos Brazão chegaram a ser alertados da possibilidade de Laerte estar inventando informações para “prestar contas” de sua infiltração no PSol, o que poderia levar a um “superdimensionamento das ações políticas de Marielle” em relação ao combate aos loteamentos ilegais.

 

Ø  "Sensação de dever cumprido", diz Cidinha após prisão de Domingos Brazão

 

Cidinha Campos comentou nesta segunda-feira (25), no Show do Clóvis Monteiro, da Super Rádio Tupi, a prisão de Domingos Brazão. A comunicadora da Tupi e ex-deputada teve uma série de confrontos com Brazão ao longo dos anos, sempre apontando a ligação dele com o crime.

O conselheiro do TCE foi preso no domingo (24) com seu irmão, o deputado federal Chiquinho Brazão, e o ex-chefe da Polícia Civil, Rivaldo Barbosa. Eles são apontados como mentores intelectuais do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em 2018.

“Sensação de dever cumprido. Durante todo meu período na Alerj sempre me opus a ele (Brazão). A primeira denúncia que fiz foi em 2004. Já tinha perdido as esperanças, pensei que nunca fosse vencer apesar das minhas denúncias de que ele era um bandido perigoso e matador. Marielle não é a única pessoas que ele mandou matar”, afirmou em entrevista ao comunicador Clóvis Monteiro.

Cidinha sempre apresentou relatórios sobre ações criminosas de Brazão, mas nunca conseguiu que casos de corrupção e assassinatos fossem apurados.

·        Ameaça de morte contra Cidinha

O relatório final da Polícia Federal que detalha a investigação, inclusive, cita a ex-deputada Cidinha Campos ao falar sobre ameaças públicas de morte de Domingos Brazão a rivais.

A comunicadora chegou a registrar boletim de ocorrência contra Brazão, na Polícia Civil do Rio de Janeiro, por ameaça. Em 2014, Cidinha acusou Brazão de, numa reunião, ter dito que a mataria.

“Ele me chamou de puta, vagabunda e disse que mandava matar vagabundo, mas vagabunda, não. Mas que tinha vontade de me matar”, disse Cidinha Campos, à época, no plenário da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).

 

Ø  Deputados bolsonaristas não se comprometem com defesa de Chiquinho Brazão no plenário da Câmara

 

Parlamentares bolsonaristas afirmam que ainda não têm definição sobre como vão votar na sessão que deve decidir sobre a manutenção da prisão do deputado federal Chiquinho Brazão na Câmara dos DeputadosO deputado é suspeito de ser um dos mandantes do assassinato da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em 2018, e foi preso neste domingo, 24.

A defesa de Chiquinho Brazão foi procurada neste domingo, mas não se manifestou. No último dia 20, em nota, ele se disse “surpreendido por especulações que buscam lhe envolver no crime”.

Supremo Tribunal Federal (STF) tem o prazo de 24 horas para comunicar oficialmente a prisão de Brazão à Câmara, e então a Casa deve analisar a situação em plenário na próxima sessão legislativa, que ocorre na terça-feira, 26.

A líder da minoria na Câmara, deputada Bia Kicis (PL-DF), disse que antes de decidir sobre o voto, a oposição ao governo Lula precisa analisar os “requisitos constitucionais”. Ao Estadão, a deputada afirmou ainda que, para ela, “parece que ele não poderia ser preso”.

A deputado Carla Zambelli (PL-SP) disse que está “estudando o caso”, “verificando como se deu a prisão, pois não foi em flagrante”.

A prisão preventiva foi adiantada para este domingo, segundo a PF, por indícios de que a família dos investigados planejava deixar o País nos próximos dias.

O deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) disse que ainda está analisando e “não formou convencimento” sobre o voto.

Já o deputado Junio Amaral (PL-MG) citou o caso do deputado Daniel Silveira, dizendo que naquela ocasião, que, segundo ele, “nem crime foi”, o Congresso “abriu mão da Constituição para assinar uma prisão de parlamentar”e que, agora, no que qualifica como “um crime gravíssimo”, votará para manter a prisão.

O ex-deputado, conhecido por quebrar a placa com o nome de Marielle, foi condenado por defender pautas golpistas. Em um vídeo publicado nas redes sociais, em fevereiro de 2021, ele atacou e ofendeu ministros, falou em dar uma “surra” nos magistrados, defendeu o golpe militar de 1964 e o AI-5 (ato mais duro da ditadura).

Em post na rede social X (antigo Twitter), o senador Flávio Bolsonaro disse que “a polícia parece ter dado passos importantes para solucionar a morte de Marielle Franco” e deseja que “a Justiça possa continuar com seu trabalho e que dê uma solução definitiva para o caso”.

O irmão, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que terá voto na Casa para decidir sobre a manutenção da prisão, usou a rede social para postar um vídeo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em que o petista associa Bolsonaro a milicianos “responsáveis diretos por morte de Marielle”.

Para que a Câmara confirme a prisão do deputado, é preciso o apoio da maioria absoluta dos parlamentares da Casa, ou seja, 257 votos. A votação é aberta, e a resolução com o que for decidido é promulgada na própria sessão.

Devido à urgência, um parecer deverá ser apresentado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara sobre a prisão, e a manutenção decidida diretamente no plenário. A defesa do deputado fala por três vezes durante a análise – antes da leitura do parecer, após a leitura e depois da discussão. Cada manifestação da defesa dura 15 minutos.

A regra sobre os deputados decidirem sobre a prisão está prevista no artigo 53, inciso 2º da Constituição Federal, que diz que a partir da expedição do diploma, “os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente sem prévia licença de sua Casa”.

Caso Chiquinho Brazão também perca o mandato de deputado federal, quem assume a vaga na Câmara é o suplente Ricardo Abrão (União-RJ). Na noite deste domingo, Brazão foi expulso no União Brasil.

 

Fonte: BBC News Brasil/Correio Braziliense/Agencia Estado

 

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