Como Testemunhas de Jeová foram vigiadas e
punidas na ditadura: 'Maus exemplos contra interesses nacionais'
Em 1974, em
plena ditadura militar no Brasil, a carta de uma mãe à professora do seu
filho chegou às mãos do Exército.
"Aproveito para
lhe pedir também por consciência religiosa que isente o Fábio de qualquer
participação em festas que sejam alusivas ao dia da Pátria. Saudação à Bandeira e Hino Nacional, enfim, tudo que for
idolatria", dizia a mãe.
Ela era seguidora das
Testemunhas de Jeová, e sua carta foi incluída em um dossiê sobre esse grupo
cristão que foi alvo de vários documentos, reuniões e até infiltrações de
agentes do regime militar.
O grupo, criado na segunda metade do século 19 nos Estados Unidos, leva à risca o ensinamento de Jesus Cristo de que seu reino
"não faz parte deste mundo".
Na prática, desde o
início do século 20, não fazer "parte deste mundo" tem se traduzido,
para esses fiéis, na abstenção em eleições, na recusa ao alistamento militar e
na não idolatria a símbolos nacionais — esses dois últimos exemplos se revelaram
"pedras nos coturnos" dos militares brasileiros na ditadura.
"A recusa da
participação a qualquer homenagem à Pátria e aos Símbolos Nacionais é uma
infiltração negativa e insidiosa nos alicerces do sentimento cívico-patriótico
e com repercussões na segurança nacional", conclui o documento de 1974 do
Ministério do Exército sobre o grupo religioso que incluía a carta daquela mãe.
Em acervos públicos
como o do Arquivo Nacional, há dezenas de documentos antes confidenciais da
ditadura sobre as Testemunhas de Jeová, boa parte deles escritos na década de
1970 e focados no Estado de São Paulo e na região Sul.
Para o historiador
Grimaldo Zachariadhes, coordenador do Núcleo de Estudos Sobre o Regime Militar
(NERM), a perseguição ao grupo religioso mostra a "amplitude" da
repressão durante a ditadura — mesmo que, nesse caso específico, ela não se
refletisse em tortura e mortes.
"A direita e os
setores conservadores também foram vítimas da ditadura militar. As Testemunhas
de Jeová são um caso emblemático disso", aponta Zachariadhes, doutor em
história pela Fundação Getulio Vargas (FGV).
"Eles sofreram
perseguição por justamente serem conservadores ao extremo. Eles são mais
conservadores do que os setores que apoiavam a ditadura."
Zachariadhes conta
que, no período, as Testemunhas de Jeová foram vigiadas, seus líderes foram
interrogados e seus filhos passaram por constrangimentos nas escolas, às vezes
até mesmo chegando a ter a matrícula impedida.
·
Tensão nas escolas
Os documentos da
ditadura revelam que um dos pontos mais sensíveis entre o regime e a religião
estava nas escolas.
Alguns diretores de
colégios e burocratas da educação registraram esse tipo de conflito.
Em 1970, o fato de
três crianças não terem usado fitinhas verde-amarelas durante a Semana da
Pátria (1º a 7 de setembro) fez uma diretora enviar um relatório que chegou ao
Ministério do Exército com os nomes desses alunos.
O documento lista
também os nomes de dois estudantes que haviam faltado às aulas naquela semana.
A localidade da escola não está identificada.
"Esta diretoria
lamentou muitíssimo haver uma organização religiosa, como 'Testemunhas de
Jeová', que confunde com idolatria veneração e respeito incondicional pelo
nosso Torrão Natal [pátria]", escreveu a diretora.
Em uma carta enviada
em 1971 ao delegado da 4ª Junta de Alistamento Militar, o diretor de uma escola
em Santo André (SP) pede orientação sobre casos de pais que estavam impedindo
os filhos de participarem de "atividades cívicas".
Ele sugere o
"enquadramento" dos pais sob a Lei de Segurança Nacional. Na carta, o
diretor diz que sua escola vinha sendo "forçada à aplicação de todas as
penalidades previstas em lei aos alunos desobedientes incorrigíveis", como
"advertência, repreensão, suspensão e [...] eliminação".
No mesmo ano, um
informe do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) relata outro episódio nas
escolas primárias: além dos conflitos entre famílias de Testemunhas de Jeová e
professores, os filhos desses religiosos estariam zombando dos estudantes que cumpriam
as atividades patrióticas.
"Chega a ponto
dessas crianças ridicularizarem aquelas que prestam o culto à Bandeira, ao Hino
Nacional e demais símbolos", diz o informe.
Em 1974, um documento
do Ministério do Exército apresentou o receio de que a postura das Testemunhas
de Jeová poderia levar a outros alunos "maus exemplos, contrários aos
interesses nacionais, podendo, inclusive, criar um grupo de antipatriotas".
O Anuário das
Testemunhas de Jeová de 1974, enviado pela organização à BBC News Brasil, traz
também relatos de casos de expulsões de alunos Testemunhas de Jeová das escolas
a partir de 1969.
Mas o documento
interno afirma que, após negociações e até uma reunião no Ministério da
Educação, os casos de expulsões começaram a diminuir a partir de 1971.
Grimaldo Zachariadhes
afirma que a ditadura brasileira tinha bastante capilaridade, o que chegava
também às escolas, principalmente as públicas.
"Era muito comum
nas escolas ter algum militar participando, tomando conta, fazendo vigia",
diz.
"A rede de
montada pelos órgãos de informação era muito eficiente e ampla. Tinha desde
funcionários mais diretos a pessoas que concordavam [com o regime] e
delatavam".
Para o historiador,
esse exemplo demonstra o clima de "paranoia" gerado pelo regime.
"Os militares no
Brasil não foram tão enfáticos na violência como no Chile e na Argentina, mas
eles usaram muito a psicologia do medo. Isso acaba criando uma paranoia que é
muito eficiente", afirma.
"E nossa ditadura
foi extremamente burocrática. Você não tem na América do Sul nenhuma outra
ditadura que tenha tanta documentação quanto os nossos órgãos de
informação."
Outra questão que
despertava a preocupação do regime era a recusa ao alistamento militar.
Alguns documentos
oficiais reconhecem que, de acordo com a Constituição, cidadãos podiam ser
eximidos do serviço militar por conta de convicções religiosas, mas os
militares demonstravam temor com a dimensão que esse tipo de recusa poderia
tomar.
Um relatório de 1972
do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) em Santos (SP) avaliou que
essa recusa das Testemunhas de Jeová serviria "de ótimo e maravilhoso
argumento para o ingresso de milhares de adeptos" ao grupo religioso, pois
"nenhuma mãe gostaria de ver seu filho pegar em armas para matar os seus
irmãos e muito menos morrer numa guerra".
De acordo com a
assessoria de imprensa das Testemunhas de Jeová no Brasil, o governo do
marechal Arthur da Costa e Silva publicou em 1967 um decreto com instruções
detalhadas para a isenção do serviço militar por convicções religiosas. A BBC
News Brasil não conseguiu acessar este documento.
Entretanto, era comum
que, diante dessa recusa, os jovens perdessem seus direitos políticos. Embora
fosse um período ditatorial, havia eleições para alguns cargos, apesar de
fortemente controladas pelos militares.
"Essa situação
perdurou até o fim do regime militar", disse a representação das
Testemunhas de Jeová sobre a cassação dos direitos políticos.
Embora alguns
documentos da época citem o risco de infiltração por meio de uma organização
religiosa estrangeira, cuja sede estava nos Estados Unidos, essa não se mostrou
a maior das preocupações dos militares brasileiros com as Testemunhas de Jeová.
·
Agente conta ter se
infiltrado como 'verdadeiro adepto'
O autor desse
relatório, não identificado no documento, também relata ter ingressado na
comunidade das Testemunhas de Jeová como "verdadeiro adepto, tomando parte
ativa em suas reuniões públicas e particulares".
O agente afirma ter
observado muitas pessoas humildes entre os adeptos, o que as faria de
"instrumento para sustentar uma doutrina esquisita, que procura destruir o
senso de brasilidade dos nossos patrícios".
Há vários documentos
escritos por setores militares em diferentes partes do país contando a história
das Testemunhas de Jeová e reproduzindo publicações do grupo. Outros relatam o
monitoramento da organização e de encontros locais.
Um informe registrado
pelo Ministério da Aeronáutica, de 1971, por exemplo, afirma que "o ritual
'Testemunhas de Jeová', mais conhecidos como 'Crentes', está infestando o
interior de São Paulo".
Já um pedido de busca
da Superintendência da Polícia Federal em Santa Catarina solicitou, em 1978,
que fossem investigados "quais os líderes da seita Testemunhas de Jeová na
área deste órgão e qual seu verdadeiro interesse em alienar os jovens".
O documento pede
também a apuração de fatos que pudessem possibilitar a "decretação de
ilegalidade da citada seita".
De acordo com os
historiadores Bruna Hanime e Grimaldo Zachariadhes, não há notícias de que as
Testemunhas de Jeová tenham de fato se tornado proscritas, ou seja, ilegais no
Brasil durante a ditadura civil-militar — algo que aconteceu com o grupo
durante outro período autoritário no Brasil, o Estado Novo.
Também não há
registros conhecidos de Testemunhas de Jeová que tenham sido torturadas ou
mortas na ditadura.
Em relação a prisões,
há notícias de que ao menos detenções temporárias aconteceram.
O advogado Manoel
Martins, então com 88 anos, relatou em 2012 à Comissão Nacional da Verdade ter
sido preso com cerca de 1,8 mil pessoas em um estádio em Niterói (RJ) logo no
início da ditadura, em abril de 1964.
Ele relatou que, por
18 dias, o estádio foi o "terror implantado", e os presos precisavam
ir ao banheiro acompanhados "por um soldado com metralhadora".
Além de operários,
professores e camponeses, o advogado relatou que entre os presos em Niterói
estavam também fiéis das Testemunhas de Jeová.
·
Resistência?
Em 1971, os militares
receberam um documento de três páginas com esclarecimentos por parte da
Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, o órgão de representação legal
das Testemunhas de Jeová no Brasil.
A sociedade assegurou
que suas funções eram "essencialmente religiosas" e
"caritativas".
"A Sociedade
Tôrre de Vigia não proíbe que certas pessoas, quer das Testemunhas de Jeová,
quer não, participem em certos atos cívicos", disse a organização na
época, apontando apenas “esclarecer” o que está nas "Escrituras
Sagradas".
"Assim sendo, é
fácil compreender que a Sociedade não proíbe, nem pode proibir alguém de cantar
o hino nacional, saudar a bandeira ou prestar serviço militar. A decisão sobre
êsses assuntos tem que ser pessoal [...]", continua.
Apesar dessa
colocação, a historiadora Bruna Hanime pontua que, tanto no passado quanto no
presente, ainda que a organização afirme que seus adeptos têm liberdade, a
pressão social para que cumpram seus preceitos é forte.
"Se eu falar para
você que existe [a liberdade], eu vou estar indo contra pesquisas da
antropologia e das ciências da religião que mostram a morte social que é dada a
essas pessoas [que não seguem os preceitos", diz Hanime, que tem vários
parentes seguindo a religião, embora ela mesma não seja adepta e nunca tenha
sido batizada nessa fé.
O Anuário das
Testemunhas de Jeová de 1974 relata que, pelo menos desde 1972, pareceu
aumentar o número de líderes religiosos sendo convocados pelo Serviço Nacional
de Informações (SNI) para depor.
"[...] Todas as
entrevistas seguiam certo padrão, sendo feitas perguntas sobre a base de nossa
posição neutra, por que as Testemunhas de Jeová não cantam o hino nacional nem
saúdam a bandeira, e assim por diante", diz o documento da organização
religiosa.
Após esses episódios,
a organização pediu audiências com autoridades do SNI, o que pareceu dar certo.
"Ambas audiências
resultaram ser informativas e foram conduzidas numa atmosfera amigável. Acha-se
que as autoridades em todos os níveis estão melhor familiarizadas com as
testemunhas de Jeová e com nossa obra e com nossa posição bíblica", relata
o documento de 1974.
Zachariadhes confirma
que, com o tempo, a preocupação dos militares com as Testemunhas de Jeová foi
se dissipando.
"No final, eles
perceberam que não tinha ali nenhum contexto de subversão maior", aponta o
historiador.
Um informe da agência
regional de São Paulo do SNI de 1971 já demonstrava essa percepção.
"Tendo-se em
vista o conteúdo filosófico da doutrina em questão bem como o fanatismo de que
se investem seus cultores fica logicamente afastada a possibilidade de virem os
mesmos sofrer infiltrações dos agentes esquerdizantes", diz o texto.
Para Zachariadhes, no
período, as Testemunhas de Jeová demonstraram resistência ao "não abrir
mão da fé deles".
O historiador avalia
que o grupo "talvez seja a denominação religiosa mais perseguida no século
20 por ditaduras".
As Testemunhas de
Jeová foram perseguidas no Holocausto, no regime salazarista em Portugal, na
ditadura militar argentina e na União Soviética, entre outros episódios.
Atualmente, a
denominação sofre perseguição na Rússia, cuja Suprema Corte baniu a religião do país em 2017 por considerá-la
uma organização "extremista". Desde
então, houve dezenas de casos de invasões a casas, prisões e sentenças contra
Testemunhas de Jeová.
Hanime explica que a
perseguição faz há muito tempo parte da trajetória desse grupo cristão — e, na
verdade, faz parte da própria formação do fiel.
"As Testemunhas
de Jeová olham a questão da perseguição como um elemento que vai legitimar que
elas são a verdadeira religião", diz a historiadora, que no mestrado na
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) fez uma pesquisa sobre o grupo
religioso.
"Eles falam que o
fim dos tempos vai ser consagrado a partir do momento que houver de fato uma
proibição total da divulgação das ideias religiosas do mundo inteiro",
explica.
Uma característica
central dessa religião é a crença de que o fim do mundo está próximo, a partir
de um entendimento bastante literal do livro do Apocalipse, da Bíblia.
"Eles são
preparados desde sempre a terem essa postura de se sacrificar pela religião, de
continuar a pregação de qualquer forma que for necessária. Não existe no idioma
Testemunha de Jeová você ficar sem pregar de casa em casa", exemplifica a pesquisadora.
Carro usado em 1936
pelas Testemunhas de Jeová na cidade de São Paulo para tocar discursos em
lugares com grandes aglomerações de pessoas
Hanime afirma que,
nesses vários episódios de repressão, as Testemunhas de Jeová atuaram
clandestinamente.
De acordo com a
historiadora, durante o Estado Novo, as Testemunhas de Jeová foram declaradas
ilegais entre 1940-1947 e, novamente, em 1949 — só voltando a ter suas
atividades aceitas e reconhecidas oficialmente em 1957 por decisão do então
presidente Juscelino Kubitschek.
Segundo a organização
religiosa, em 1939, 20 pessoas foram presas em São Paulo, onde ficaram detidas
por um dia no Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS). Elas
foram acusadas de perturbar a ordem pública ao divulgar folhetos dizendo que o
governo de Deus era a única solução para a humanidade.
"A gente vê que
eles [no Estado Novo] vão olhar as Testemunhas de Jeová como um corpo
alienígena norte-americano infiltrado no Brasil. É um grupo que não vai se
submeter ao Estado forte, que não se submete aos governos civis e que tem um
poder distribuição de impressos muito forte", aponta Hanime.
"Isso é visto
como uma ameaça por parte não só do governo brasileiro, mas de muitos outros
países."
Mas a historiadora
afirma que, quando sua fé não é ameaçada, as Testemunhas de Jeová são
"discretas".
"Eles não têm uma
postura de instigar conflitos. Eles procuram obedecer à ordem vigente, no
sentido de ordem pública, desde que não cerceiem as liberdades deles em questão
de pregação", aponta.
Para ela, de fato as
Testemunhas de Jeová são neutras na política, o que é demonstrado pela
abstenção nas eleições e pela ausência de seus líderes em entrevistas para a
imprensa, em debates públicos e na própria política — ela diz ser
"impossível" imaginar um membro do clero se candidatando para um
cargo eletivo.
"Qualquer
associação com direita ou esquerda é totalmente mal vista, por conta justamente
dessa política de não fazer parte do mundo", explica Hanime.
Entretanto, isso não
quer dizer que esses religiosos estejam completamente alheios ao resto do
mundo. A pesquisadora exemplifica isso com a aversão que a denominação
demonstrou à internet nos anos 2000 e com a conhecida rejeição a transfusões de
sangue.
Hanime reconhece que
as Testemunhas de Jeová são também conservadoras nos costumes, opondo-se, por
exemplo, ao casamento homossexual e demonstrando desconfiança do ambiente
universitário.
"Elas não adotam
esse discurso muito escancarado de ódio às minorias, a questões de
diversidade", diz, comparando com alguns pastores de igrejas evangélicas
que participam ativamente da política.
"Eles não apoiam,
olham como sinal dos últimos tempos [a abertura à diversidade sexual]. Mas esse
discurso raivoso não é tão presente assim", completa a historiadora.
Em nota, a assessoria
de imprensa das Testemunhas de Jeová afirma que elas "respeitam e cooperam
com as autoridades", mas "não tomam qualquer partido em movimentos
separatistas, protestos, conflitos civis, campanhas políticas ou ações que visam
influenciar ou mudar governos".
"Elas respeitam
os símbolos nacionais e os governos representados por eles. No entanto, creem
que somente Deus merece sua devoção sagrada", continua.
"Além da
neutralidade política, as Testemunhas de Jeová não participam em guerras porque
desejam aplicar a advertência bíblica de ‘não aprender mais a guerra’ (Isaías
2:4) Elas também querem seguir o mandamento de Jesus: 'Ame o seu próximo como a
si mesmo'", completa a organização religiosa.
Fonte: BBC News Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário