Philippe Scerb: Por que Lula e a esquerda
deveriam esquecer Bolsonaro
Se foi conveniente
para a disputa eleitoral e continua sendo para sensibilizar parte da sociedade
em defesa de um governo que busca ser o mais amplo possível, a polarização com
o bolsonarismo não é o melhor caminho para a reconstrução de um campo
progressista com vigorosas raízes populares
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Já era fim de tarde
quando voltava para casa de um almoço com amigos. Subindo a Avenida Rebouças,
cruzei com algumas pessoas de verde e amarelo, com bandeiras do Brasil e
camisas da seleção. Acabara há pouco na Avenida Paulista o ato em apoio e com a presença de Jair Bolsonaro, alvo de investigação
sobre a tentativa frustrada de golpe de Estado em 2022.
O que me chamou a
atenção não foi a quantidade de gente que descia a avenida. Que o ato seria
expressivo eu já imaginava. Mais relevante me pareceu o fato de que, dentre os
manifestantes, muitos paravam nos pontos de ônibus, iam embora em motos de
poucas cilindradas ou em carros fabricados há muito mais de uma década. Para
além dos senhores e senhoras que caminhavam como quem conhece bem os
cruzamentos dos Jardins, havia muitas pessoas de pele escura nas ruas. Aquilo
só me fez lembrar o que todos sabem e que, por vezes, parecemos querer
esquecer: parte importante da base que votou e segue apoiando Bolsonaro é
popular. Como dissera um amigo morador de Heliópolis poucos dias antes, “tem um
monte de bolsonarista na favela”.
Subindo a Rebouças
naquele domingo de sol, fui dominado pela convicção de que disputar setores
populares mobilizados pelo bolsonarismo é um imperativo para a esquerda. É
claro que alguns desses setores, movidos por ressentimentos das mais diversas
ordens, são hoje inalcançáveis. Quem aderiu a Bolsonaro como resistência a
transformações sociais cujo sentido é a igualdade, seja ela mais material ou
simbólica, não está sujeito a embarcar em um projeto cujo centro deveria ser
justamente a redução das desigualdades. Há, porém, quem tenha apoiado Bolsonaro
por razões que atravessam temas como a violência, a corrupção e a fé e que,
somente por isso, não deveria estar à margem de um programa que se pretenda
progressista e popular. Na esteira de uma longa crise econômica, que envolveu a
frustração de expectativas, o medo em relação ao futuro e se confundiu com
profunda desconfiança nos atores políticos tradicionais, é compreensível a
filiação quase desesperada a um programa que projeta algum grau de segurança,
física ou moral, por parte de quem se via carente de qualquer esperança.
As últimas pesquisas de opinião sobre o governo Lula só reforçam a importância de disputar
parte da base bolsonarista. Ninguém, pelo menos na esquerda, entendeu quando
saíram os resultados e se viu a queda na aprovação do governo, apesar de uma
situação econômica razoavelmente positiva. Uma das hipóteses especuladas
atribui o resultado ao aumento sazonal do preço de alguns alimentos. No
entanto, ela parece frágil para explicar uma queda significativa em meio a um
cenário surpreendentemente saudável em termos de crescimento e geração de emprego
e renda. Se olharmos com atenção para os setores em que a aprovação do governo
caiu, é flagrante a participação desproporcional dos evangélicos. Entre eles,
na capital paulista, Lula tinha 43% de ótimo ou bom em agosto de 2023, hoje tem
27%. Os evangélicos que consideram o governo ruim ou péssimo passaram de 37%
para 49%. Em comparação, a queda de ótimo ou bom entre católicos foi de 46%
para 42%,
Não parece ser
coincidência a menor aprovação do governo, as recentes críticas de Lula ao massacre perpetrado por Israel em Gaza,
sensível para boa parte do universo pentecostal, e a contraofensiva
bolsonarista diante do avanço das investigações do Poder Judiciário. Grupos que
até então consideravam o governo ótimo ou bom e regular deixaram de fazê-lo no
momento em que o bolsonarismo reagiu, o que leva a crer que eles não estão na
sua base mais fiel e orgânica, mas ocupam uma espécie de franja de sua esfera
de influência. Quando o movimento de extrema-direita aciona sua rede de mobilização
e, especialmente, o mundo evangélico, a imagem do governo é prejudicada.
Diversos teóricos e a
própria história já mostraram que um projeto político forte precisa de um
inimigo. A identidade de uma liderança ou de um campo é construída justamente
em torno da alteridade em relação a uma força adversária. No caso brasileiro, a
conciliação lulista revelou seus limites quando, na defensiva, não pôde se
apoiar numa base incapaz de distinguir suas virtudes em relação a um sistema
que o atacava. Bolsonaro, nesse sentido, cumpriu muito bem o papel do
antagonismo necessário à recondução de Lula ao governo federal. As ameaças
repetidas ao arranjo democrático, de um lado, e a associação aos valores mais
reacionários, de outro, tornaram natural uma polarização que permitiu atrair ao
polo de centro-esquerda setores liberais para quem Lula sempre foi a última
opção para derrotar o autoritarismo.
Se foi conveniente
para a disputa eleitoral e continua sendo para sensibilizar parte da sociedade
em defesa de um governo que busca ser o mais amplo possível, porém, a
polarização com o bolsonarismo não é o melhor caminho para a reconstrução de um
campo progressista com vigorosas raízes populares. E essa é a provocação à qual
este texto se presta: a esquerda e o governo Lula deveriam abrir mão do
antagonismo alimentado quase por reflexo com o campo liderado por Bolsonaro e
recuperar a alteridade com uma direita liberal enfraquecida política e
socialmente – por mais contraintuitivo que isso possa parecer.
Polarizar com o
bolsonarismo é eficaz e ainda pode ser muito útil do ponto de vista eleitoral.
No entanto, resulta em dois problemas. Em primeiro lugar, os ataques
recorrentes a ele só fazem reforçar um campo cuja sobrevivência também depende
do antagonismo e que se beneficia da ideia de que é perseguido por um sistema
corrompido e alheio aos interesses e valores do cidadão comum, cuja
representação Bolsonaro tenta monopolizar. Quando Lula, o campo progressista e
as instituições, notadamente o Poder Judiciário, avançam sobre Bolsonaro e seus
aliados, sua existência se justifica cada vez mais aos olhos de quem se
identifica com pelo menos uma de suas dimensões conservadoras. Em segundo
lugar, o conflito com o bolsonarismo de maneira reiterada aliena os segmentos
populares que não compõem seu núcleo mais duro de sustentação, mas orbitam seu
arco de influência. Ao atacar Bolsonaro, Lula reforça um conflito com toda a
sua base potencial, inclusive expressivas camadas populares, que por diversos
motivos – muitas vezes ligados ao apego a instituições e valores tradicionais,
se identificam mais com o ex do que com o atual presidente.
A esquerda e o governo
federal deveriam abrir mão de uma polarização que se mostrou incapaz de
mobilizar a sociedade. Setores médios que poderiam se engajar na luta contra o
bolsonarismo têm depositado suas esperanças em um Poder Judiciário que já
demonstrou estar comprometido com a responsabilização daqueles que atentaram
contra a democracia e se contentam com um governo de “reconstrução” nacional
desprovido de grandes projetos de país ou significativas perspectivas de
transformação. A melhor maneira de derrotar a extrema direita não parece ser
por meio de um conflito direto que só faz reforçar o antagonismo entre ela e o
campo progressista.
Para não repetir os
erros da primeira experiência petista no governo federal, contudo, algum tipo
de conflito e inimigo são necessários. E eles podem ser encontrados a partir de
uma agenda econômica progressista, sobretudo em um momento de fragilidade da
direita tradicional, historicamente alinhada aos interesses do mercado. É
verdade que a margem de manobra de um governo cuja correlação de forças na
sociedade e em um Congresso fortalecido em sua sanha fisiológica não é
confortável. No entanto, avanços concretos já aconteceram até aqui, com a
retomada de importantes programas sociais e vitórias pontuais contra os
interesses do capital, como no caso da controversa recuperação do voto de
desempate no Carf, que derrubou um arranjo que beneficiava empresas em detrimento
da União. Assim como avanços com forte componente simbólico.
Com efeito, a disputa
de Lula com o Banco Central acerca da diminuição da taxa de juros no ano
passado é um bom exemplo de antagonismo com o mercado financeiro. O inimigo não
tem contornos nem um nome bem definido, mas, mesmo que de forma subjetiva, a população
entende que há um conflito que opõe um governo criticado por sua agenda
progressista e grandes bancos apoiados pela imprensa e a direita tradicional.
Não seria absurdo pensar que isso contribuiu para a popularidade de Lula ao
longo do ano, inclusive entre camadas populares, evangélicas ou não. As frentes
de batalha que poderiam dar corpo a esse novo (ou velho) antagonismo são
diversas e incluem, por exemplo, o recente debate sobre a distribuição ou não
dos dividendos da Petrobras. Quando o governo se opõe à distribuição massiva de
dividendos a acionistas, a esquerda deveria explorar o tema para divulgar o que
está em jogo e de que lado está a gestão. Este ano, outras batalhas virão
acerca do volume dos gastos públicos e do caráter progressivo ou não da
regulamentação da reforma tributária, por exemplo.
Oportunidades não
faltarão para a esquerda e o governo Lula reforçarem a imagem de um programa
popular na economia que encontra resistência de setores agarrados a uma ordem
que privilegia a renda do capital em detrimento daquela proveniente do
trabalho. Nessa seara, seria muito difícil o engajamento do bolsonarismo de tal
maneira a formar um bloco coeso com a direita liberal. Não só a economia é
especialmente lateral no espírito e no programa bolsonaristas, como defender
explicitamente a agenda do mercado pode desmobilizar e afastar camadas
populares que a extrema direita quer manter próximas. O fenômeno do populismo
conservador que governa diferentes países e é força política relevante em
vários outros é ambíguo quanto à sua agenda econômica. De aspiração e bases
muitas vezes populares, ele não pode defender a agenda neoliberal cujo fracasso
foi crucial para o seu surgimento. Poder monopolizar a crítica ao programa
neoliberal e apontar alternativas no sentido de maior redistribuição é um
privilégio que a esquerda brasileira não deveria deixar de explorar.
Não se trata de
negligenciar os obstáculos que uma ofensiva econômica por parte do governo Lula
encontraria. As opções até aqui foram de avanços e recuos, de maneira a não
queimar pontes com o mercado e manter condições mínimas de governabilidade em
meio a negociações diuturnas com um Congresso consciente de seu poder e
ambicioso nas suas exigências. A chefia do Ministério da Fazenda nas mãos de
Fernando Haddad é o maior símbolo da postura comedida de Lula. No entanto, o
mercado não parece estar nos seus melhores dias para resistir a um programa que
avance no sentido da ampliação de direitos sociais e de uma agenda mais voltada
para o crescimento e a redistribuição de renda. Depois da Covid-19 e da onda de
políticas de estímulo à indústria ao redor do mundo, das medidas de Biden no
sentido de maiores investimentos públicos e redistribuição de renda e mesmo do
consentimento recuado diante dos avanços tímidos, mas concretos, do governo
Lula, o campo liberal não está em posição de força. Quanto ao Congresso, carente
de uma agenda alternativa que tenha alguma adesão na sociedade a ponto de ser
abertamente vocalizada, ele pode ter num programa econômico popular o maior
desafio para seguir colocando a faca no pescoço de um governo cuja aprovação
tenderia a crescer. Com um bolsonarismo que, apesar de ainda se mostrar
enraizado e influente, está nas cordas, de um lado, e uma direita liberal
fragilizada politicamente, de outro, parece haver margem para algum grau de
avanço.
Ignorar
constrangimentos e uma correlação de forças pouco confortável seria ingênuo e
um exercício menos comprometido com a mudança da realidade e mais preocupado
com o voluntarismo de quem escreve. O objetivo aqui não é defender uma
radicalização inconsequente por parte de uma liderança cujo perfil é
sabidamente inclinado ao consenso e ao reformismo lento. Não parece, porém,
fruto de mero desejo a possibilidade de adoção de uma agenda político-econômica
mais ousada na sua face popular. Fazê-lo é um meio de engajar mais aqueles que
já estão entre os que apoiam Lula. Mas sobretudo de disputar e, quem sabe,
trazer de volta para esse campo muitos dos que se desiludiram com um programa e
um estilo político que foi assimilado a um sistema que o PT historicamente
prometera combater. O sucesso não é garantido, mas a tentativa não parece
demasiado arriscada diante de um campo de extrema direita que teria dificuldade
de capitalizar um eventual insucesso de uma agenda que eles teriam problemas em
combater.
Em um momento em que a
esquerda ao redor do mundo foi assimilada à ordem e um tipo difuso de populismo
reacionário ocupou o espaço da contestação e da ruptura, projetos progressistas
têm sofrido para reatar laços relevantes com as camadas populares. Ao apostar
em pautas de fácil apelo em meio às incertezas da vida, como segurança,
religião, família e imigração, a extrema direita passou a oferecer um sentido,
uma ideia de nação para muitos que tinham cedido à desesperança de sociedades
atomizadas e desprovidas de qualquer projeto coletivo. Tratar de temas tão
caros a esses mesmos setores, como trabalho, renda, qualidade de serviços
públicos e justiça social parece uma maneira de o campo progressista voltar a
ter um espírito eminentemente popular. Evitar o conflito público e direto com
um campo que não devemos alimentar e escolher os momentos de avançar pode fazer
com que alguns dos que em 25 de fevereiro estiveram na Paulista voltem a
simpatizar com quem mostra estar ao seu lado; o lado dos de baixo.
Fonte: Diplomatiqué
Brasil
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