quarta-feira, 27 de março de 2024

Philippe Scerb: Por que Lula e a esquerda deveriam esquecer Bolsonaro

Se foi conveniente para a disputa eleitoral e continua sendo para sensibilizar parte da sociedade em defesa de um governo que busca ser o mais amplo possível, a polarização com o bolsonarismo não é o melhor caminho para a reconstrução de um campo progressista com vigorosas raízes populares

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Já era fim de tarde quando voltava para casa de um almoço com amigos. Subindo a Avenida Rebouças, cruzei com algumas pessoas de verde e amarelo, com bandeiras do Brasil e camisas da seleção. Acabara há pouco na Avenida Paulista o ato em apoio e com a presença de Jair Bolsonaro, alvo de investigação sobre a tentativa frustrada de golpe de Estado em 2022.

O que me chamou a atenção não foi a quantidade de gente que descia a avenida. Que o ato seria expressivo eu já imaginava. Mais relevante me pareceu o fato de que, dentre os manifestantes, muitos paravam nos pontos de ônibus, iam embora em motos de poucas cilindradas ou em carros fabricados há muito mais de uma década. Para além dos senhores e senhoras que caminhavam como quem conhece bem os cruzamentos dos Jardins, havia muitas pessoas de pele escura nas ruas. Aquilo só me fez lembrar o que todos sabem e que, por vezes, parecemos querer esquecer: parte importante da base que votou e segue apoiando Bolsonaro é popular. Como dissera um amigo morador de Heliópolis poucos dias antes, “tem um monte de bolsonarista na favela”.

Subindo a Rebouças naquele domingo de sol, fui dominado pela convicção de que disputar setores populares mobilizados pelo bolsonarismo é um imperativo para a esquerda. É claro que alguns desses setores, movidos por ressentimentos das mais diversas ordens, são hoje inalcançáveis. Quem aderiu a Bolsonaro como resistência a transformações sociais cujo sentido é a igualdade, seja ela mais material ou simbólica, não está sujeito a embarcar em um projeto cujo centro deveria ser justamente a redução das desigualdades. Há, porém, quem tenha apoiado Bolsonaro por razões que atravessam temas como a violência, a corrupção e a fé e que, somente por isso, não deveria estar à margem de um programa que se pretenda progressista e popular. Na esteira de uma longa crise econômica, que envolveu a frustração de expectativas, o medo em relação ao futuro e se confundiu com profunda desconfiança nos atores políticos tradicionais, é compreensível a filiação quase desesperada a um programa que projeta algum grau de segurança, física ou moral, por parte de quem se via carente de qualquer esperança.

As últimas pesquisas de opinião sobre o governo Lula só reforçam a importância de disputar parte da base bolsonarista. Ninguém, pelo menos na esquerda, entendeu quando saíram os resultados e se viu a queda na aprovação do governo, apesar de uma situação econômica razoavelmente positiva. Uma das hipóteses especuladas atribui o resultado ao aumento sazonal do preço de alguns alimentos. No entanto, ela parece frágil para explicar uma queda significativa em meio a um cenário surpreendentemente saudável em termos de crescimento e geração de emprego e renda. Se olharmos com atenção para os setores em que a aprovação do governo caiu, é flagrante a participação desproporcional dos evangélicos. Entre eles, na capital paulista, Lula tinha 43% de ótimo ou bom em agosto de 2023, hoje tem 27%. Os evangélicos que consideram o governo ruim ou péssimo passaram de 37% para 49%. Em comparação, a queda de ótimo ou bom entre católicos foi de 46% para 42%,

Não parece ser coincidência a menor aprovação do governo, as recentes críticas de Lula ao massacre perpetrado por Israel em Gaza, sensível para boa parte do universo pentecostal, e a contraofensiva bolsonarista diante do avanço das investigações do Poder Judiciário. Grupos que até então consideravam o governo ótimo ou bom e regular deixaram de fazê-lo no momento em que o bolsonarismo reagiu, o que leva a crer que eles não estão na sua base mais fiel e orgânica, mas ocupam uma espécie de franja de sua esfera de influência. Quando o movimento de extrema-direita aciona sua rede de mobilização e, especialmente, o mundo evangélico, a imagem do governo é prejudicada.

Diversos teóricos e a própria história já mostraram que um projeto político forte precisa de um inimigo. A identidade de uma liderança ou de um campo é construída justamente em torno da alteridade em relação a uma força adversária. No caso brasileiro, a conciliação lulista revelou seus limites quando, na defensiva, não pôde se apoiar numa base incapaz de distinguir suas virtudes em relação a um sistema que o atacava. Bolsonaro, nesse sentido, cumpriu muito bem o papel do antagonismo necessário à recondução de Lula ao governo federal. As ameaças repetidas ao arranjo democrático, de um lado, e a associação aos valores mais reacionários, de outro, tornaram natural uma polarização que permitiu atrair ao polo de centro-esquerda setores liberais para quem Lula sempre foi a última opção para derrotar o autoritarismo.

Se foi conveniente para a disputa eleitoral e continua sendo para sensibilizar parte da sociedade em defesa de um governo que busca ser o mais amplo possível, porém, a polarização com o bolsonarismo não é o melhor caminho para a reconstrução de um campo progressista com vigorosas raízes populares. E essa é a provocação à qual este texto se presta: a esquerda e o governo Lula deveriam abrir mão do antagonismo alimentado quase por reflexo com o campo liderado por Bolsonaro e recuperar a alteridade com uma direita liberal enfraquecida política e socialmente – por mais contraintuitivo que isso possa parecer.

Polarizar com o bolsonarismo é eficaz e ainda pode ser muito útil do ponto de vista eleitoral. No entanto, resulta em dois problemas. Em primeiro lugar, os ataques recorrentes a ele só fazem reforçar um campo cuja sobrevivência também depende do antagonismo e que se beneficia da ideia de que é perseguido por um sistema corrompido e alheio aos interesses e valores do cidadão comum, cuja representação Bolsonaro tenta monopolizar. Quando Lula, o campo progressista e as instituições, notadamente o Poder Judiciário, avançam sobre Bolsonaro e seus aliados, sua existência se justifica cada vez mais aos olhos de quem se identifica com pelo menos uma de suas dimensões conservadoras. Em segundo lugar, o conflito com o bolsonarismo de maneira reiterada aliena os segmentos populares que não compõem seu núcleo mais duro de sustentação, mas orbitam seu arco de influência. Ao atacar Bolsonaro, Lula reforça um conflito com toda a sua base potencial, inclusive expressivas camadas populares, que por diversos motivos – muitas vezes ligados ao apego a instituições e valores tradicionais, se identificam mais com o ex do que com o atual presidente.

A esquerda e o governo federal deveriam abrir mão de uma polarização que se mostrou incapaz de mobilizar a sociedade. Setores médios que poderiam se engajar na luta contra o bolsonarismo têm depositado suas esperanças em um Poder Judiciário que já demonstrou estar comprometido com a responsabilização daqueles que atentaram contra a democracia e se contentam com um governo de “reconstrução” nacional desprovido de grandes projetos de país ou significativas perspectivas de transformação. A melhor maneira de derrotar a extrema direita não parece ser por meio de um conflito direto que só faz reforçar o antagonismo entre ela e o campo progressista.

Para não repetir os erros da primeira experiência petista no governo federal, contudo, algum tipo de conflito e inimigo são necessários. E eles podem ser encontrados a partir de uma agenda econômica progressista, sobretudo em um momento de fragilidade da direita tradicional, historicamente alinhada aos interesses do mercado. É verdade que a margem de manobra de um governo cuja correlação de forças na sociedade e em um Congresso fortalecido em sua sanha fisiológica não é confortável. No entanto, avanços concretos já aconteceram até aqui, com a retomada de importantes programas sociais e vitórias pontuais contra os interesses do capital, como no caso da controversa recuperação do voto de desempate no Carf, que derrubou um arranjo que beneficiava empresas em detrimento da União. Assim como avanços com forte componente simbólico.

Com efeito, a disputa de Lula com o Banco Central acerca da diminuição da taxa de juros no ano passado é um bom exemplo de antagonismo com o mercado financeiro. O inimigo não tem contornos nem um nome bem definido, mas, mesmo que de forma subjetiva, a população entende que há um conflito que opõe um governo criticado por sua agenda progressista e grandes bancos apoiados pela imprensa e a direita tradicional. Não seria absurdo pensar que isso contribuiu para a popularidade de Lula ao longo do ano, inclusive entre camadas populares, evangélicas ou não. As frentes de batalha que poderiam dar corpo a esse novo (ou velho) antagonismo são diversas e incluem, por exemplo, o recente debate sobre a distribuição ou não dos dividendos da Petrobras. Quando o governo se opõe à distribuição massiva de dividendos a acionistas, a esquerda deveria explorar o tema para divulgar o que está em jogo e de que lado está a gestão. Este ano, outras batalhas virão acerca do volume dos gastos públicos e do caráter progressivo ou não da regulamentação da reforma tributária, por exemplo.

Oportunidades não faltarão para a esquerda e o governo Lula reforçarem a imagem de um programa popular na economia que encontra resistência de setores agarrados a uma ordem que privilegia a renda do capital em detrimento daquela proveniente do trabalho. Nessa seara, seria muito difícil o engajamento do bolsonarismo de tal maneira a formar um bloco coeso com a direita liberal. Não só a economia é especialmente lateral no espírito e no programa bolsonaristas, como defender explicitamente a agenda do mercado pode desmobilizar e afastar camadas populares que a extrema direita quer manter próximas. O fenômeno do populismo conservador que governa diferentes países e é força política relevante em vários outros é ambíguo quanto à sua agenda econômica. De aspiração e bases muitas vezes populares, ele não pode defender a agenda neoliberal cujo fracasso foi crucial para o seu surgimento. Poder monopolizar a crítica ao programa neoliberal e apontar alternativas no sentido de maior redistribuição é um privilégio que a esquerda brasileira não deveria deixar de explorar.

Não se trata de negligenciar os obstáculos que uma ofensiva econômica por parte do governo Lula encontraria. As opções até aqui foram de avanços e recuos, de maneira a não queimar pontes com o mercado e manter condições mínimas de governabilidade em meio a negociações diuturnas com um Congresso consciente de seu poder e ambicioso nas suas exigências. A chefia do Ministério da Fazenda nas mãos de Fernando Haddad é o maior símbolo da postura comedida de Lula. No entanto, o mercado não parece estar nos seus melhores dias para resistir a um programa que avance no sentido da ampliação de direitos sociais e de uma agenda mais voltada para o crescimento e a redistribuição de renda. Depois da Covid-19 e da onda de políticas de estímulo à indústria ao redor do mundo, das medidas de Biden no sentido de maiores investimentos públicos e redistribuição de renda e mesmo do consentimento recuado diante dos avanços tímidos, mas concretos, do governo Lula, o campo liberal não está em posição de força. Quanto ao Congresso, carente de uma agenda alternativa que tenha alguma adesão na sociedade a ponto de ser abertamente vocalizada, ele pode ter num programa econômico popular o maior desafio para seguir colocando a faca no pescoço de um governo cuja aprovação tenderia a crescer. Com um bolsonarismo que, apesar de ainda se mostrar enraizado e influente, está nas cordas, de um lado, e uma direita liberal fragilizada politicamente, de outro, parece haver margem para algum grau de avanço.

Ignorar constrangimentos e uma correlação de forças pouco confortável seria ingênuo e um exercício menos comprometido com a mudança da realidade e mais preocupado com o voluntarismo de quem escreve. O objetivo aqui não é defender uma radicalização inconsequente por parte de uma liderança cujo perfil é sabidamente inclinado ao consenso e ao reformismo lento. Não parece, porém, fruto de mero desejo a possibilidade de adoção de uma agenda político-econômica mais ousada na sua face popular. Fazê-lo é um meio de engajar mais aqueles que já estão entre os que apoiam Lula. Mas sobretudo de disputar e, quem sabe, trazer de volta para esse campo muitos dos que se desiludiram com um programa e um estilo político que foi assimilado a um sistema que o PT historicamente prometera combater. O sucesso não é garantido, mas a tentativa não parece demasiado arriscada diante de um campo de extrema direita que teria dificuldade de capitalizar um eventual insucesso de uma agenda que eles teriam problemas em combater.

Em um momento em que a esquerda ao redor do mundo foi assimilada à ordem e um tipo difuso de populismo reacionário ocupou o espaço da contestação e da ruptura, projetos progressistas têm sofrido para reatar laços relevantes com as camadas populares. Ao apostar em pautas de fácil apelo em meio às incertezas da vida, como segurança, religião, família e imigração, a extrema direita passou a oferecer um sentido, uma ideia de nação para muitos que tinham cedido à desesperança de sociedades atomizadas e desprovidas de qualquer projeto coletivo. Tratar de temas tão caros a esses mesmos setores, como trabalho, renda, qualidade de serviços públicos e justiça social parece uma maneira de o campo progressista voltar a ter um espírito eminentemente popular. Evitar o conflito público e direto com um campo que não devemos alimentar e escolher os momentos de avançar pode fazer com que alguns dos que em 25 de fevereiro estiveram na Paulista voltem a simpatizar com quem mostra estar ao seu lado; o lado dos de baixo.

 

Fonte: Diplomatiqué Brasil

 

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