As
crianças de Gaza “perceberam que os seus pais já não podem protegê-las das
bombas e da fome”
Um menino sujo e
desgrenhado, que não tem nem 10 anos, apanha punhados de macarrão e feijão misturados
com sujeira, poeira e restos de plástico, num campo perto da cidade de Gaza,
após a passagem de um dos aviões que lança comida. Há embalagens que chegam
inteiras ao solo e outras que explodem ao entrar em contato com o solo e seu
conteúdo acaba espalhado. Concentrado e alheio à comoção ao seu redor, o menino
rapidamente coloca na mochila esfarrapada o saque da escola, onde não consegue
ir há cinco meses, e corre para o local onde sua família está refugiada.
Vários vídeos gravados
por jornalistas locais mostram há dias este tipo de imagens, um claro reflexo
da miséria e da fome, das tarefas improváveis que as crianças estão a assumir e
dos riscos que correm todos os dias para poderem comer. “Eles estão emaciados,
magros, assustados e muito cansados. E estão morrendo de fome, de desidratação
e doenças como a diarreia”, resume James Elder, porta-voz da Unicef, que está
atualmente em Gaza, numa entrevista telefônica ao El País. Não é a primeira vez
que ele entra na Faixa de Gaza desde Outubro, quando começaram os
bombardeamentos isralenses, mas a destruição física e a deterioração das
condições de vida das pessoas, especialmente das crianças, que ele vive nestes
dias deixaram-no “oprimido por uma terrível sentimento de perda.”
“Trabalho na ONU há 20
anos e nunca vi tamanho nível de destruição em lugar nenhum”. “A profundidade
do horror vivido em Gaza ultrapassa a nossa capacidade de descrevê-lo”, afirmou
o porta-voz. “Hoje em dia tenho visto as lágrimas de mães exaustas e desesperadas,
que agarram na sua mão e dizem que não têm como dar comida aos filhos. Você
acaba chorando com eles”, acrescenta.
E acima de tudo,
sublinha o porta-voz, está o desamparo dos mais pequenos. “Quando um menino ou
uma menina percebe que seus pais não podem mais protegê-los das bombas e da
fome, algo muito profundo se quebra dentro deles. É isso que está a acontecer
nas famílias de Gaza e pode ser lido nos olhos das crianças”, descreve Elder,
de Rafah, no sul deste território palestino, onde jornalistas estrangeiros não
estão autorizados a entrar.
A Unicef acredita que
todas as famílias de Gaza saltam refeições diariamente e que os adultos estão a
reduzir as suas rações para que as crianças possam comer. No norte da Faixa, a
desnutrição aguda duplicou num mês e afeta agora uma em cada três crianças com
menos de dois anos de idade. Em Rafah, onde entra a pouca ajuda humanitária que
Gaza recebe, esta percentagem desce para 10%, segundo dados desta agência da
ONU, que estima que pelo menos 23 meninos e meninas morreram em Gaza devido à
desnutrição e desidratação nas últimas semanas. Dados do Ministério da Saúde de
Gaza, controlado pelo movimento islâmico palestino Hamas, elevam este número
trágico a mais de 30 crianças.
“No norte da Faixa, as
cenas são de partir o coração. No hospital que pudemos visitar na quinta-feira,
Kamal Adwan, há casos muito graves de crianças desnutridas que não sabemos
realmente se ainda lá estarão amanhã. Mães e avós não saem do seu lado e não
param de chorar. As incubadoras estão cheias de bebês e as mães dão à luz
prematuramente devido ao stress da guerra. “É exasperante”, ele cita. De acordo
com os últimos dados da ONU, apenas 12 dos 36 hospitais de Gaza estão
funcionando parcialmente.
·
Centenas de caminhões
Na segunda-feira
passada, foi lançada a última Classificação de Fase Integrada (ICF, em
espanhol, IPC, em inglês), uma ferramenta independente e reconhecida
mundialmente que mede a segurança alimentar e nutricional e da qual participam
várias organizações da ONU, incluindo a Unicef alertou que 50% da população de
Gaza 2,2 milhões de habitantes enfrentam uma extrema falta de acesso aos
alimentos . A análise concluiu que a fome no norte do território é “iminente” e
chegará entre agora e maio se nada mudar, embora haja dados que indiquem que já
poderá estar a ocorrer.
“Falar sobre a fome,
agora ou dentro de algumas semanas, pode fazer sentido do ponto de vista
político, mas para as crianças de Gaza não faz diferença. Aqui as pessoas estão
morrendo de fome, as crianças estão morrendo de fome, e isso se deve a decisões
de quem está no poder”, denuncia Elder.
O inconfundível ruído
de fundo dos drones israelenses não desaparece em nenhum momento da entrevista.
“É assim dia e noite. É também uma tortura para as crianças, que sabem que
estes drones podem matá-las a qualquer momento”, afirma.
O experiente
porta-voz, que recentemente esteve no Sudão, devastado pelo conflito, e onde
cerca de 40% da população, ou seja, 19 milhões de pessoas, já enfrenta uma fome
aguda, recusa-se a comparar tragédias. Mas ele insiste que Gaza é um caso sem
precedentes. “Em termos da percentagem da população que passa fome e do curto
período de tempo em que isso aconteceu, é algo nunca visto desde que os estudos
da CIF começaram, há 20 anos. Além disso, neste caso, centenas de caminhões
cheios de alimentos, medicamentos e bens de primeira necessidade estão a 10
quilómetros de onde estou agora”, do outro lado da fronteira, no lado egípcio
da passagem de Rafah, sublinha. “Centenas de caminhões. Eu os vi há alguns dias
com meus próprios olhos. Isso dá outro aspecto a esta crise”, insiste. “Em
Gaza, estão a ser batidos os mais tristes recordes de escuridão da humanidade:
percentagem da população que sofre de fome, número de bombardeamentos,
magnitude da devastação das infra-estruturas, número de pessoas que perderam um
ente querido…”, acrescenta.
De acordo com a
análise do CIF, todos em Gaza estão com fome neste momento. Esta semana, o Alto
Representante da UE para os Negócios Estrangeiros, Josep Borrell, acusou Israel
de ser responsável pela “fome” em Gaza e de a utilizar como “arma de guerra”. Israel
lançou uma ofensiva militar contra a Faixa após o ataque dos milicianos do
Hamas, que governa de fato Gaza, que em 7 de outubro mataram cerca de 1.200
pessoas e fizeram 250 reféns, após se infiltrarem no território isralense,
segundo dados oficiais. A resposta militar contra Gaza causou mais de 31 mil
mortes, a maioria delas mulheres e crianças, segundo dados do Ministério da
Saúde palestino.
·
Rescaldo para a vida
Metade da população da
Faixa é menor de idade. Estas crianças não têm acesso a suplementos
nutricionais ou, em muitos casos, a cuidados médicos básicos. Ana Islas Ramos,
especialista em nutrição da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e
a Agricultura (FAO), que também participa na classificação de insegurança
alimentar publicada esta semana, explica que quando um adulto está em situação
de fome, quando não tem nada para comer, podem sobreviver cerca de 70 dias, mas
as crianças são mais vulneráveis porque ainda estão em crescimento e “atingem
fases de desnutrição grave muito mais cedo”. “Depende das reservas anteriores,
mas em duas ou três semanas já atingem uma desnutrição grave”, calcula, em
entrevista a este jornal.
Antes de Outubro, dois
terços da população de Gaza recebiam ajuda humanitária para alimentação, sob a
forma de alimentos ou subsídios. A desnutrição infantil aguda neste território
sujeito ao bloqueio israelense desde 2007 não atingiu 1%.
“Quando começa a
faltar comida, começam a ser utilizadas as reservas de gordura, que podem durar
mais ou menos um mês, depois são utilizadas as reservas de proteínas, e aí
começamos a comer o nosso próprio corpo. Isso é desnutrição aguda grave. As
crianças ficam letárgicas, o cérebro não se desenvolve porque não há energia
suficiente e essas consequências podem durar para sempre”, detalha.
De acordo com os
últimos dados da ONU, apenas 12 dos 36 hospitais de Gaza estão funcionando
parcialmente. Desde o início da guerra, foram registados 300.000 casos de
infecções respiratórias e 200.000 casos de diarreia aguda potencialmente fatal.
Desde o início da
guerra, registaram-se 300 mil casos de infecções respiratórias e 200 mil casos
de diarreia aguda, potencialmente fatais se atingirem um corpo debilitado pela
fome, segundo dados do Ministério da Saúde de Gaza. “É um ciclo vicioso. As crianças
comem desesperadamente tudo o que encontram, quer seja saudável ou não, quer
tenham as mãos limpas ou não. Por estarem fracos, seu sistema imunológico está
baixo e eles ficam doentes. Essas diarreias causam desidratação e desnutrição
ainda mais graves”, explica Islas.
Se houver um
cessar-fogo esta noite em Gaza, a recuperação física destas crianças poderá ser
rápida, graças aos suplementos que lhes poderão ser administrados se a ajuda
humanitária entrar sem limites e os serviços de saúde forem restaurados na
Faixa. “Se as crianças não atingirem aquela fase de desnutrição aguda em que os
seus órgãos se deterioram, em duas ou três semanas muito do que lhes acontece
agora pode ser apagado”, diz Islas. “Os bebês ficam mais preocupados porque aos
dois ou três meses de idade, semanas sem alimentação adequada é muito tempo
para eles.”
Ø
Irlanda vai se juntar ao caso da África do
Sul na denúncia contra o 'genocídio' de Israel em Gaza
A novidade foi
anunciada via comunicado emitido nesta quarta-feira (27) pelo Ministério das
Relações Exteriores da Irlanda.
No informativo, Dublin
anunciou que se juntará ao caso da África do Sul na Corte Internacional de
Justiça (CIJ) contra as "ações genocidas" de Israel na Faixa de Gaza.
"O ministro das
Relações Exteriores e ministro da Defesa, Micheál Martin TD [Teachta Dála,
membro da câmara baixa do Parlamento irlandês] anunciou que a Irlanda intervirá
no caso iniciado pela África do Sul contra Israel ao abrigo da Convenção do Genocídio
no Tribunal Internacional de Justiça [TIJ]", informa o comunicado.
"Cabe ao tribunal
determinar se está sendo cometido genocídio. Mas quero ser claro ao reiterar o
que disse muitas vezes nos últimos meses; o que vimos em 7 de outubro em Israel
e o que estamos vendo em Gaza agora representa a violação flagrante do direito
humanitário internacional em grande escala", disse o ministro das Relações
Exteriores, citado no comunicado.
·
Processo
Diante de um conflito
que deve continuar "por muitos meses", segundo o próprio
primeiro-ministro de Israel, a Autoridade Nacional Palestina (ANP) pediu que a
CIJ acelere o julgamento do processo movido pela África do Sul contra Tel Aviv.
Em dezembro do ano
passado, o país sul-africano acionou o órgão da Organização das Nações Unidas
(ONU), acusando Israel de atos genocidas contra a população da Faixa de Gaza.
Os bombardeios diários em todo o território, que tem cerca de 2,3 milhões de pessoas,
já provocaram a morte de mais de 21,6 mil palestinos em menos de três meses.
O processo na CIJ
alega "supostas violações de Israel de suas obrigações nos termos da
Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (a Convenção de
Genocídio) em relação aos palestinos na Faixa de Gaza", conforme
comunicado da entidade.
A África do Sul e a
ANP, que também responde pela Cisjordânia, que tem outros 3,2 milhões de
habitantes, são signatários da convenção.
"O que a África
do Sul apresentou, baseando-se no Artigo 9 da convenção e na violação de Israel
dos Artigos 2 e 3, está totalmente alinhado com os deveres das nações para
evitar a prática desse crime", disse a ANP, que pediu uma resposta rápida
da Corte às acusações para evitar ainda mais atos que possam ser enquadrados
como genocidas.
Fonte: Por Beatriz Lecumberi, em El País / IHU/Sputnik Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário