Rios e igarapés secam na Terra Indígena
Yanomami
Com clima
tradicionalmente úmido, a Terra Indígena Yanomami (TIY) não costuma enfrentar
períodos de seca. Mesmo nos dois meses em que há um período de menos chuvas, as
precipitações ficam em torno de 200 milímetros – o que, para padrões da capital
roraimense, já é considerada estação chuvosa. Mas as mudanças climáticas e os
incêndios florestais vêm mudando essa história.
“Não tem uma gota de
água”, narra a enfermeira Clara Opoxina no dia 5 março. Em vídeo, ela está
diante de uma passagem improvisada, feita com galhos de árvores, tentando
atravessar por cima do que antes era um igarapé em Wathou, região das Serras.
As outras fontes de água ainda existentes ficam mais distantes ou estão
impróprias por causa da poluição do garimpo ilegal, conta a profissional da
saúde que também fala Yanomami. “O rio Mucajaí está inviável para consumo. Está
completamente amarelo ainda do garimpo.”
A enfermeira trabalha
há 12 anos na TIY e é indígena, descendente do povo Puri. Ela revela que a
falta de água compromete os atendimentos das equipes médicas. “Tem que caminhar
duas horas, aí assim, não dá, né, a gente faz um serviço ali de saúde, tem que
caminhar duas horas pra pegar água, pra cozinhar, pra beber, e até pra tomar
banho ali, tava muito ruim, porque são muitos Yanomami e mais a gente”, contou
Clara. Para continuar o atendimento, ela teve de pedir para mudar sua base para
uma região mais próxima de igarapés com água potável.
Segundo o geólogo
Fábio Wankler, professor doutor da Universidade Federal de Roraima (UFRR), o
fenômeno El Niño estendeu a área da estação seca para dentro do oeste do
território dos Yanomami. “O mês mais seco da região, considerando a série
histórica, é em torno de 200 milímetros. Os meses secos de Boa Vista variam de
100 a menos de 50 milímetros”, comparou. Para ele, o El Niño está afetando a
água superficial, ou seja, os rios de dentro da floresta, uma área que
normalmente não sofreria esse efeito ou não seria tão acentuada.Os rios mais
afetados pela seca são o Apiaú, Catrimani e Demini, de acordo com a Hutukara
Associação Yanomami (HAY).
“Uma situação muito
difícil na Terra Yanomami como toda, e principalmente os nossos rios, como rios
principais que a gente consome, rios grandes e rios pequenos”, contou à
Amazônia Real, Dário Kopenawa, vice-presidente da HAY e filho do xamã do povo
Yanomami, Davi Kopenawa. “Impactou bastante os nossos alimentos e também para
se alimentar através de águas. E os rios estão muito, muito secos, uma
dificuldade muito grande, está bastante difícil o que nós estamos enfrentando
hoje. É uma situação muito vulnerável.”
A seca excepcional na
região deve ser atribuída, principalmente, às mudanças climáticas causadas por
atividades humanas, como o desmatamento e o uso de combustíveis fósseis,
explica Wankler. Desde 2010, houve um aumento da temperatura média em Roraima,
resultando em maior evapotranspiração e déficit hídrico durante a estação seca.
O El Niño de 2023 exacerbou a situação, reduzindo a frequência e intensidade
das chuvas e afetando a reposição de água nos aquíferos.
“A redução da
frequência e intensidade das chuvas interfere na infiltração da água no solo e
consequentemente, na reposição da água subterrânea dos aquíferos que mantêm os
rios durante as fases de estiagem. Com o rebaixamento do nível freático, os
rios secam, comprometendo a biodiversidade e o modo de vida tradicional dos
povos originários”, explica o professor da UFRR.
Ramón Alves,
meteorologista da Fundação Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos
(Femarh), analisa que as chuvas devem iniciar em abril começando pelo sul de
Roraima e gradativamente vão subir “para o setor nordeste de Roraima”. A
previsão para o mês que vem é de 100 a 150 milímetros, no acumulado mensal. A
TIY fica localizada ao norte do Estado.
• Queimadas vieram de fora
A Hutukara entregou à
Amazônia Real um mapa alarmante, elaborado com dados do Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais (Inpe), evidenciando a origem do fogo que atingiu as
comunidades, outra ação humana que interfere na vida dos povos indígenas. O
documento, de 12 de março, revela uma preocupante concentração de pontos
vermelhos, indicativos de focos de queimadas, nas divisas entre os projetos de
assentamento dos municípios de Amajari, Alto Alegre, Mucajaí e Iracema.
Dário Kopenawa relatou
à reportagem que o fogo que já devastou parte de sua terra tem origem nas
fazendas próximas. “Estamos sofrendo hoje por causa de fogo chegado das
fazendas, uma situação muito perigosa. Apiaú, região do Xexena, Ajarani pegou
muito fogo e esse fogo chegou na Missão Catrimani e afetou bastante a
comunidade e as casas foram queimadas”, alertou.
Reinaldo Imbrozio,
pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e professor
da UFRR, corroborou as observações de Dário, atribuindo a origem dos incêndios
às propriedades rurais circunvizinhas. Ele destacou um padrão de desmatamento em
Roraima, patrocinado pelos assentamentos humanos a oeste do Lavrado.
“Quero lembrar mais
uma vez que boa parte desses focos que você se referiu aí tanto no Lavrado como
nas reservas florestais, a imensa maioria não foram dos indígenas, foi fogo
adentrando nas áreas indígenas”, enfatiza para Amazônia Real de frente para o seu
computador, com um monitoramento da Nasa aberto, na sede do Inpa em Boa Vista.
Imbrozio explicou que,
devido à combinação de fatores climáticos adversos, como a falta de chuvas,
vegetação seca e ventos fortes, o fogo se propaga rapidamente, dificultando os
esforços de contenção das chamas. O professor da UFRR explica que o caminho do
fogo na vegetação de Roraima percorre em linha “entre 500 metros a 1,5
quilômetro por dia”, e por isso, “não tem condição de apagar essas linhas
gigantescas”.
“Por mais que Ibama e
comunidades indígenas estejam apagando, não tem mais jeito, porque esse fogo
agora está linear. Não tem ser humano, ou quantidade de pessoas que apague esse
fogo. É uma situação similar, não igual, similar à de 1997, 1998”, lembrou Reinaldo.
A reportagem
questionou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária sobre o fogo
que saiu dos assentamentos. O órgão disse em nota que “o respeito ao meio
ambiente e o cumprimento da legislação ambiental são deveres dos beneficiários
da reforma agrária, que constam em cláusulas resolutivas nos documentos
expedidos pelo Incra. A comprovação da prática de crime ambiental poderá
resultar na retomada da parcela.”
Roraima permanece com
focos de calor acima da média. Conforme registros do Inpe, foram contabilizados
1.312 focos, até o dia 24 de março, superando a média mensal de 599. O Estado
já acumula 3.973 focos neste ano, comparado à média histórica para o mesmo
período, que é de 2.055. Fevereiro registrou números recordes desde 1998,
quando iniciou o acompanhamento, com 2.057 focos, consolidando-se como o Estado
mais afetado pelos incêndios.
Junior Hekurari,
presidente do Conselho de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kwana (Condisi-YY),
expressou preocupação com a situação, destacando que a seca extrema e a
escassez de água estão levando as comunidades a uma situação de desamparo. Ele
ressaltou que a falta de medidas efetivas para conter os incêndios e proteger
os recursos hídricos está colocando em risco a sobrevivência dos Yanomami.
“A seca está demais,
não tem mais rio, não tem mais água, muita queimação [incêndios]. Eu não sei o
que os Yanomami vão fazer nessa situação”, respondeu à Amazônia Real por
telefone. Ele estava esta semana em Surucucu, TIY. O presidente do Conselho de
Saúde Indígena Yanomami e Ye’kwana (Condisi-YY) e da associação Urihi
acompanhava no dia 19 de março a entrega de medicamentos para malária feita por
Weibe Tapeba, secretário da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena).
Haron Xaud, doutor em
sensoriamento e pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa) informou ao Instituto Socioambiental (ISA) que, à medida que as áreas
são repetidamente afetadas por incêndios, elas se degradam e podem afetar até
as nascentes de água de Roraima.
“As serras de Roraima,
principalmente as de cobertura vegetal florestal, têm muitas nascentes de água
que dependem da vegetação estar saudável e conservada. Se você tem uma intensa
mudança degenerativa na vegetação, para uma mesma quantidade de chuva que caia,
você vai ter mudanças na capacidade de captação, infiltração, velocidade de
passagem da água pelas bacias hidrográficas afetadas”, disse Xaud ao ISA.
Em Boa Vista, o Rio
Braco continua baixando. Na segunda-feira (25) a régua de medição da Companhia
de Águas e Esgotos de Roraima registra – 0,38 centímetros. Conforme o
acompanhamento do Serviço Geológico do Brasil (SGB), o pior nível já registrado
foi de -56,5 centímetros, em janeiro de 2016.
• Fumaça ameaça a saúde
Roraima tem registrado
níveis alarmantes de poluição atmosférica, sendo classificada como ‘péssima’
para a saúde. Nesta segunda-feira (25), o monitoramento da plataforma Selva, da
Universidade Estadual do Amazonas, apresentava variações entre 50 e 250 de
material particulado (PM 2.5). A plataforma Purple Air definiu a qualidade de
dois municípios de Roraima, sendo a capital Boa Vista e Amajari, como piores
que São Paulo e Vietnã – e remete ao drama vivenciado no fim do ano passado
pela população do Amazonas.
Uma densa fumaça
encobre desde o fim de semana a capital e outros municípios. Da orla de Boa
Vista não era possível ver neste fim de semana a Ponte dos Macuxi. O Conselho
Indígena de Roraima divulgou fotos da fumaça tóxica encobrindo o Sol nas
comunidades.A prefeitura da capital recomendou usar máscaras e pediu que a
população evite atividades ao ar livre. Os anúncios foram feitos durante uma
coletiva. Outras medidas devem ser adotadas ainda nesta segunda-feira pelo
prefeito que convocou reunião emergencial com secretários.
“As primeiras
recomendações já foram adotadas nas escolas e nos projetos sociais nesta
segunda-feira, para que se evite atividades ao ar livre. Até na hora das
refeições, as crianças vão permanecer dentro das salas de aula para evitar ao
máximo o contato com a fumaça. Também idosos do Projeto Cabelos de Prata foram
orientados para permanecer em casa. Outras medidas definidas pelo comitê serão
anunciadas ainda hoje”, diz trecho do comunicado enviado à imprensa.
Fonte: Amazônia Real
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