Na transição entre Caatinga e Cerrado,
povos tradicionais se unem para resgatar frutas nativas
À sombra do umbuzeiro,
Maria Neves conta a Maria José que umbu maduro é feito mulher às margens de
parir: tem urgência. “O umbu não tem feriado, é igual tirar leite, é todo dia”,
diz Maria Neves Almeida, caaatingueira da comunidade de Furado da Roda, no município
de Porteirinha.
Maria José dos Santos,
conhecida por Zezé naqueles vales semiáridos do norte de Minas Gerais,
concorda. “Você tá ali, debaixo da natureza, colhendo. Não tem riqueza melhor,
não tem saúde melhor.”
Zezé, liderança
extrativista na região, conta que por décadas o sustento do agricultor familiar
vinha do algodão. Com a infestação do bicudo-do-algodoeiro, um tipo de besouro,
na década de 1990, tudo mudou. “Quando a gente viu o algodão virar desse jeito,
a gente achou que era o fim da picada, todo mundo ia morrer de fome”, diz.
Mas foi em campo
minado por peste que as comunidades tradicionais do norte mineiro acharam
esperança num gosto e cheiro esquecidos na infância: as frutas nativas.
“Chega nesse tempo,
todo mundo tá colhendo as frutas e a cooperativa transforma em polpa. De lá pra
cá, a melhora foi muito grande”, diz Zezé. “Para a gente colher o algodão, era
a custo de veneno. Morreu muita gente intoxicada. Hoje o pessoal trabalha com
as frutas sem veneno. Então, a saúde é outra. Já aproveita aquelas frutas,
guarda pra tomar um suco natural, né? Hoje é assim, o pessoal largou a vida do
refrigerante.”
Na área de transição
entre Caatinga e Cerrado, caatingueiros, geraizeiros, veredeiros, quilombolas e
indígenas vêm resgatando frutas nativas como o umbu, o buriti, o coquinho-azedo
e o pequi. Este último guarda a fama de “carne do sertão”, pela riqueza de
nutrientes e proteínas que guarda na polpa.
Além de gerar renda e
melhorar a saúde dos povos tradicionais, a valorização das frutas tem
beneficiado a saúde dos biomas: famílias e biodiversidade mantêm seus pés
plantados num território ameaçado pela pecuária, pela cultura carvoeira, pela
monocultura de eucalipto e soja e por crescentes projetos de usinas solares
fotovoltaicas de grande porte.
Em atividade desde
2003, a Cooperativa Grande Sertão — em colaboração com universidades,
cooperativas locais e o apoio financeiro de parceiros como o WWF e a Fundação
Banco do Brasil — é a principal compradora da produção de frutas dos pequenos
agricultores num raio de 600 quilômetros, abrangendo 36 municípios, mais de 280
cooperados e cerca de 2 mil famílias.
• Carne do sertão
“A gente criou o olhar
no Cerrado. A gente já anda olhando aquelas frutas que vão produzir de agora
para frente. Anda visando se tá florindo, se vai dar produção boa”, conta Jorge
Martins Corrêa, quilombola nascido e criado na década de 1960 no Quilombo da
Onça, hoje com cerca de 45 famílias vivendo da agricultura familiar e do
extrativismo em Januária. “Depois que a gente pegou esse conhecimento, hoje a
gente tá sempre colhendo pra estar vendendo, né? O coquinho, o buriti, o cajuí,
o pequi.”
“O norte de Minas
passou depois da década de 1970 por um plantio de eucalipto gigante, em que foi
derrubado o Cerrado de uma maneira muito agressiva. Com isso, a gente veio
perdendo vegetação, biodiversidade e água. Como que você retira a sua carne do
sertão?”, diz Sarah de Mello Teixeira, que cuida de relações
interinstitucionais do Núcleo do Pequi, rede de associações e cooperativas
parceiras em 16 municípios do norte de Minas Gerais, que fortalece a cadeia
produtiva do pequi.
Em 1992, a sociedade
civil se organizou e pressionou para a criação da lei que torna o pequizeiro
imune de corte. Em 2001, quase 10 anos mais tarde, uma lei estadual criou o
Programa Pró-Pequi, que valoriza a cadeia produtiva do fruto, desde a coleta
até a comercialização. O incentivo na compra de produtos da agricultura
familiar por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa
Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) também tiveram e têm grande importância
para devolver a essa fruta nativa do Cerrado seu lugar de destaque e dar
segurança aos extrativistas — que, por vezes, têm na safra do pequi a principal
renda do ano.
“Nós chegamos a quase
700 mil quilos de pequi processados na última safra”, diz José Fabio Soares,
engenheiro de alimentos e técnico da Cooperativa Grande Sertão, referindo-se à
safra de dezembro de 2022 a fevereiro de 2023. “O que foi processado converteu-se
em óleo, em pequi congelado e em polpa.”
A cooperativa
ambiciona subir das 40 mil dúzias de pequi comercializadas atualmente para 200
mil dúzias nos próximos dois anos. Estima-se que em 2020 circularam mais de 50
milhões de reais com o extrativismo do pequi no norte de Minas.
Sarah destaca que a
comercialização do pequi mineiro no Ceasa de Goiânia já deu mais dinheiro do
que abóbora e coco, e ficou próximo da laranja.
“O extrativismo vai
render muito mais do que um metro de carvão e vai render todos os anos”, diz
Adailton Lopes Viana, presidente da Associação dos Usuários da Sub-bacia do Rio
dos Cochos (Assusbac), que foi fundada em 2003 e tem o pequi como principal produto.
“E aí você pode plantar mais um pé de pequi, mais dois, mais três e trazer isso
para próximo do seu quintal, próximo da sua propriedade. A partir do momento em
que você começa a enxergar o pequi como um potencial, você não vai querer
desmatar, você vai querer aumentar a população.”
• Uma porta, uma janela e um órgão
Quem garante metade da
renda mensal da família do Pedro é o coquinho-azedo.
“Os outros 50% a gente
se vira, a gente cria uma galinha, cria um porquinho, planta uma rocinha,
planta um milho”, conta Pedro Pereira da Mota. “Depois que apareceu a
cooperativa, a extração do coquinho ficou bem melhor. Agora a gente já pega e
já entrega na cooperativa; a cooperativa passa pra frente, paga a gente e é um
preço bom.”
Sueli Rodrigues Santos
também integra a Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativistas do Vale
do Peruaçu (Cooperuaçu), e o dinheiro da primeira safra de coquinho-azedo que
vendeu facilitou seu trabalho. “Na época, eu peguei uns 300 ou 400 reais, aí eu
pensei: ‘sabe o que eu vou fazer com esse dinheiro? Vou comprar uma
bicicleta’”. A bicicleta ajudou na coleta do coquinho na safra seguinte.
O coquinho-azedo, com
safra mais forte entre outubro e dezembro, é usado em polpa para suco e para
cerveja. A Cooperuaçu tem como principal
compradora a Cooperativa Grande Sertão, que leva o coquinho e outras variedades
de frutas para a fábrica de polpa, onde mais de 200 toneladas de frutas nativas
e algumas variedades de frutas de quintal são processadas por ano. Também os
indígenas Xakriabá cultivam o coquinho-azedo em São João das Missões e vendem
para a Grande Sertão.
“Agora a gente faz
dinheiro com o que a gente desperdiçava”, diz Wanderlandia da Silva Rodrigues,
agricultora que agora trabalha na fábrica de polpa da Grande Sertão, no
município de Mirabela, e já ganhou bastante vendendo caixas de manga. Uma
porta, uma janela e um órgão musical — seu sonho de consumo — estão entre as
compras que fez com o dinheiro do seu trabalho. Seus cinco filhos trabalharam
também na fábrica. Uma das filhas é engenheira de alimentos e está pesquisando
sobre o óleo de pequi para a tese de doutorado.
Erguer a cozinha,
colocar piso no chão ou comprar um armário são relatos constantes das mulheres
extrativistas sobre suas conquistas em todo o norte mineiro.
Zenita Lopes
Rodrigues, por exemplo, atua como mobilizadora junto aos veredeiros que coletam
a fruta dos buritizeiros no município de Brasília de Minas. “Muita gente não
tinha nem um fogão a gás, e através do trabalho com o buriti conseguiu, né?”,
diz a líder, que visita os produtores e
armazena as raspas do buriti em sua casa.
Depois, a Grande
Sertão leva a produção para Montes Claros, continua com o beneficiamento e
vende o óleo para uso cosmético. Para além da beleza, o buriti ganha gosto nas
mãos de Zenita. “Tem mês que eu entrego mais de 500 doces lá na cidade.”
• Tempo de maturar
As mudanças climáticas
e a escassez de água têm impactado as safras de muitas frutas, inclusive a do
buriti. Como as árvores dependem da umidade, há locais em que as veredas secam
e as árvores morrem. Araras e periquitos também têm sido mais assíduos nas
palmeiras, provavelmente pela escassez de outros alimentos, destruindo grande
parte dos frutos. As safras têm tido período mais longo, mas com menor
abundância. As veredas aguardam as chuvas para, só então, maturar e dispersar
as sementes.
“O cacho está todo
formado. Se não choveu, ele fica em dormência esperando para amadurecer”,
explica Neucy Aparecido Fagundes, agrônomo e técnico da Grande Sertão. “Eu tô
falando como se eu estivesse na cabeça do buritizeiro, né? Mas, se o clima tá
seco, a planta vai entender que aquele fruto vai cair no chão e não vai
prosperar.”
Quase metade do
Cerrado já foi desmatado. Artigo publicado em novembro de 2023 aponta que as
bacias hidrográficas do Cerrado estão secando e perdendo a capacidade de
abastecer alguns dos principais rios brasileiros, como o São Francisco, o
Madeira e o Tocantins. A mudança da cobertura do solo é um dos motivos
“O Cerrado é o pai das
águas. Das 12 principais bacias hidrográficas [do Brasil], oito nascem ou
recebem água do Cerrado”, diz Kolbe Soares, especialista em conservação do
WWF-Brasil. “Então, o bioma tem uma importância super estratégica em termos de
recursos hídricos.”
Rios se fazendo
intermitentes e nascentes ressequidas fazem parte do cenário cotidiano dos
agricultores familiares. É fácil atravessar pontes sobre rios do passado, hoje
inexistentes.
“O Rio Pandeiros é um
importante afluente do Rio São Francisco que contribui muito com a fauna, com
os peixes do São Francisco. E ele é um rio que ano após ano tem reduzido a sua
vazão”, diz Ernane Ronie Martins, professor da Universidade Federal de Minas
Gerais. “Imagina um rio do porte do São Francisco perdendo um afluente que é
biologicamente um dos mais importantes na bacia?”
É flagrante na região
o aumento de perfuração de poços artesianos. “Hoje toda comunidade que antes
usava recurso hídrico de um rio ou de um córrego tem que perfurar um poço”, diz
Kolbe.
Bastante suscetível às
mudanças climáticas, que acelera sua desertificação, a Caatinga é o terceiro
bioma mais desmatado do Brasil. Artigo mostra que a expansão da agricultura, da
pecuária e do desmatamento tem causado mudanças drásticas no bioma.
Diante do cenário, o
resgate das frutas nativas com o fortalecimento dos povos tradicionais em seus
territórios, mantendo a vegetação em pé, tem cada vez mais importância.
“Hoje uma pessoa não
pensa mais em derrubar alguma árvore frutífera, que pode estar trazendo a renda
para ela. Então, isso é muito bom”, diz Valdomiro da Mota Brito, tesoureiro da
Cooperuaçu. “Eu não tenho dúvida de que nós prestamos um serviço para a humanidade.
Isso aqui que nós estamos vendendo não é só fruta. Nós estamos vendendo uma
qualidade de vida que também não é só pra nós. É pro mundo, né?”
Fonte: Mongabay
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