Zélio, o Caboclo das Sete Encruzilhadas: o
'fundador da umbanda' que não é bem aceito por umbandistas atuais
Se a tentativa era
criar uma espécie de mito da religião nacional por excelência, elementos
simbólicos não faltam na história de como o médium fluminense Zélio Fernandino
de Moraes (1891-1975) teria criado a umbanda.
A começar pela data:
15 de novembro de 1908. Sim, um 15 de novembro, aniversário da Proclamação da
República, data portanto da criação do Brasil contemporâneo.
E também pela
história: no transe vivido por Zélio, ele teria dialogado com espíritos de
negros e indígenas e, por fim, incorporado um padre jesuíta italiano que havia
pregado no Brasil colonial e que, em Portugal, mais tarde, foi acusado de
bruxaria.
Mais simbólico do
sincretismo cultural, étnico e religioso do Brasil, impossível.
Por outro lado, e é
esse o ponto que vem sendo revisto e muito criticado por pesquisadores
contemporâneos da umbanda. Considerar Zélio o precursor dessa religião é também
resultado de um processo de embranquecimento — é negar que a umbanda já vinha
sendo praticada por negros oriundos da África e seus descendentes em solo
brasileiro, é entregar a primazia da religião afrobrasileira a um homem branco.
"Não é um assunto
novo: a história de Zélio como fundador da umbanda vem sendo questionada. Eu
não o considero fundador da umbanda porque a umbanda é muito anterior a
isso", crava o sociólogo Lucas de Lucena Fiorotti, autor da página Abrindo
a Gira, no Instagram.
"Ele se tornou
uma figura importante em função do embranquecimento [da umbanda]. Ele é
importante para um tipo de umbanda, que no passado queriam chamar de
'espiritismo de umbanda'. Quem o celebra como fundador da umbanda não tem
culpa. A culpa é do projeto de país", acrescenta Fiorotti.
Para o historiador
Guilherme Watanabe, pai de santo do terreiro Urubatão da Guia, em São Paulo e
membro fundador do Coletivo Navalha, Zélio é "a representação de uma
grande construção histórica", do "mito de fundação que, a partir dos
anos 1960, começa a se fazer no Rio". "Uma grande mentira",
sentencia.
·
O que teria acontecido
em 1908
Filho de uma família
tradicional de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio, Zélio estava se
preparando para seguir carreira militar na Marinha quando foi acometido por uma
paralisia. Ele tinha 17 anos. Acamado por alguns dias, teria declarado que "amanhã
estarei curado" e, de fato, no dia seguinte levantou-se como se nada
houvesse acontecido.
Diante da surpresa dos
médicos, os familiares decidiram recorrer a padres católicos — que também não
souberam explicar o que havia sucedido ao jovem.
Para a família, Zélio
sofria de distúrbios espirituais. Então, por indicação de um amigo, levaram-no
até a Federação Espírita do Estado do Rio de Janeiro, então sediada em Niterói.
O médium presidente da
entidade teria organizado uma sessão espírita, com Zélio à mesa. Na ocasião,
conforme relatos da época, houve a manifestação de espíritos de ancestrais
africanos, os chamados "pretos-velhos", e indígenas, os "caboclos".
O dirigente da sessão,
então, teria classificado tais espíritos como "atrasados" — em uma
visão preconceituosa sobre tudo aquilo que não tivesse raízes europeias.
Solicitou então que eles se retirassem. Foi quando Zélio acabaria incorporando
uma entidade, o chamado "Caboclo das Sete Encruzilhadas", em defesa
dos pretos-velhos e dos caboclos. E disse que se ali não houvesse espaço para
que negros e indígenas "cumprissem sua missão", ele, o tal caboclo,
fundaria no dia seguinte um novo culto — na casa de Zélio.
Seria então 15 de
novembro de 1908. E, para muitos, se trata do marco fundador da umbanda, como
uma nova religião do Brasil.
A partir do episódio,
Zélio e o Caboclo das Sete Encruzilhadas seriam identidades indissociáveis. De
acordo com o médium, a entidade seria a manifestação do padre jesuíta italiano
Gabriel Malagrida (1689-1761), um missionário que chegou a andar pelo Brasil
catequizando indígenas e, mais tarde, acusado de bruxaria e heresia, foi morto
pela fogueira da Inquisição em Lisboa.
"Ele é caboclo
mas, dentro do mito, também é um padre jesuíta. O que cria uma disforia total,
uma loucura promovida pelo processo de embranquecimento [da umbanda]", diz
Fiorotti.
Segundo a narrativa de
Zélio, na "última existência física", Deus teria concedido a
Malagrida "o privilégio de nascer como caboclo brasileiro".
Com esse caldo
cultural multiétnico, estava criado o mito da fundação da umbanda.
·
'Embranquecimento'
Conforme explica o
sacerdote de umbanda David Dias, pesquisador em ciência da religião na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a história de Zélio
pode ser vista sob duas óticas.
"A primeira traz
sua vida contada por meio dos manuais de umbanda e mantida pela sua família, a
qual assegura sua memória até os dias de hoje. Já a segunda é contada por meio
de um mito de criação onde cada um que conta aumenta uma ponta, deixando na
história contada uma lenda de existência questionável", pondera ele.
Dias lembra que um dos
relatos atesta que, entre a consulta médica, o conselho dos padres e a famosa
sessão espírita, Zélio teria sido levado a uma benzedeira do Rio. E fora ela,
incorporando um preto-velho, que dera a sentença: àquele jovem seria reservada
uma grande missão pela frente.
O pesquisador ressalta
que há ainda um fato importante que só reforça a ideia de que muitos detalhes
não tenham passado de ficção para azeitar uma mitologia da fundação.
"Na ata de 15 de
novembro de 1908 da citada federação [espírita] não há registros destes fatos,
o nome do dirigente da suposta sessão não confere com a história, nem mesmo o
nome de Zélio se faz presente", afirma Dias.
Por fim, ele lembra
ainda que a figura do Caboclo das Sete Encruzilhadas também apresenta
"incongruências".
Segundo especialistas,
a história de Zélio como fundador da umbanda foi uma construção que passou a
tomar forma nos anos 1960, quando o médium já era idoso.
Em 1961, a jornalista
e umbandista Lilia Ribeiro publicou pela primeira vez essa versão no jornal
informativo Macaia, ligado à Tenda de Umbanda Luz, Esperança e Caridade, da
qual ela era dirigente.
Após a morte de Zélio,
essa narrativa se consolidou. Em dezembro de 1978, por exemplo, a revista
Planeta, publicação da Editora Três que hoje não circula mais, trouxe uma
grande reportagem intitulada Como surgiu a umbanda em nosso país: 70º
aniversário de uma religião brasileira, na qual todos os elementos dessa
mitologia fundadora estavam presentes.
Fiorotti acredita que
então Zélio se torna "uma figura importante para a umbanda
hegemônica".
Mas que tudo seria um
esforço sistêmico para apagar as raízes realmente africanas — e anteriores ao
século 20.
"Há indícios de
que já havia práticas de umbanda muito semelhantes tanto em ritualística quanto
em estética ao que acontece hoje muito antes de 1908", diz ele.
"Essa umbanda que
tem Zélio como fundador é uma umbanda muito associada ao espiritismo em si. Mas
há diversos autores que se sentem contemplados por essa narrativa e eles são
pessoas fortemente associadas ao espiritismo e a algumas ideias esotéricas,
místicas. Fogem da vivência do terreiro de fato. A estrutura umbandista já
existia no século 19."
Watanabe lembra que a
própria palavra umbanda vem das línguas quimbundo e umbundu da África Central e
"significa algo como arte ou maneira de curar".
"É uma palavra
que existe há muito tempo e, como sendo arte ou maneira de curar, se trata de
uma prática medicinal e espiritual feita por um médico feiticeiro",
contextualiza.
"Algo que já era
praticado por centro-africanos desde muito tempo atrás e, a partir da diáspora,
do tráfico de escravizados, acaba sendo trazido ao Brasil. Por isso, no Rio de
Janeiro do século 19 já havia diversas casas de feiticeiros africanos."
Para Fiorotti, a
mitologia de Zélio é, na verdade, a tentativa do "embranquecimento da
umbanda, dentro da ideia da democracia racial, de que não há racismo no Brasil,
de que as relações raciais são simétricas".
"Essa umbanda do
Zélio está na esteira desse país que começa a se pensar como mestiço para
disfarçar os problemas das relações sociais", aponta.
Assim, Zélio teria
sido "usado" como "uma história privilegiada para encarnar a
umbanda da democracia racial", enfatiza o pesquisador.
E a consolidação desse
estilo deixou como legado uma série de "descaracterização das divindades,
dos orixás, dos espíritos".
"Por exemplo, ao
dizer que um caboclo, que é indígena, pode ser um branco. Ou dizendo que um
preto-velho pode ser uma pessoa branca. São absurdos. Mas a partir dessa
umbanda [de Zélio], isso passou a ser possível", exemplifica.
"Zélio é a
história de um homem branco classe média que se apropria da cultura dos
centro-africanos e seus descendentes", resume o historiador Watanabe.
"Além disso, apaga e invisibiliza a cultura dos centro-africanos ao se
dizer fundador de algo que, na verdade, já existia."
E de onde vêm as sete
encruzilhadas? A resposta está na própria ideia umbandista do que é uma
encruzilhada.
"É um conceito:
estar na encruzilhada, ao contrário do que as pessoas costumam pensar, é
desejável. Porque tudo é feito de caminhos. Um caminho reto, sem
possibilidades, não é desejável. O desejável é estarmos na encruzilhada, onde
não há caminho fechado", explica o sociólogo Fiorotti.
"Sete
encruzilhadas, assim, é o infinito de possibilidades", conclui ele.
Fonte: BBC News Brasil
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