Constituição de 1824 organizou Estado, mas
consolidou desigualdade
Outorgada em 25 de
março, a Constituição de 1824 completa 200 anos em 2024. A norma organizou o
Estado brasileiro, criou as bases do poder político nacional e estabeleceu um
amplo rol de direitos fundamentais. Porém, centralizou excessivamente os
poderes na figura do imperador, restringiu a participação política aos que
tinham dinheiro e consolidou a desigualdade racial.
Em 1808, a família
real portuguesa, temendo os avanços do imperador francês Napoleão, se refugiou
no Brasil, transferindo a capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves
para o Rio de Janeiro.
Depois de chegar ao
Rio, D. João VI passou a tomar diversas medidas que pavimentaram o caminho para
o processo de independência do Brasil, como a abertura dos portos às nações
amigas, o fim da proibição de indústrias, a construção de um sistema de tributação
centrado nas incidências sobre o comércio exterior e a criação dos cursos
universitários.
A convocação de
eleições para a primeira Assembleia Constituinte brasileira ocorreu em 3 de
junho de 1822, três meses antes da declaração de independência. O órgão foi
instalado em 3 de maio de 1823.
Contudo, a Assembleia
Constituinte foi dissolvida por D. Pedro I em 12 de novembro de 1823, no
episódio que ficou conhecido como a “Noite da agonia”. Destituída a
Constituinte, D. Pedro I reuniu dez cidadãos de sua confiança, que redigiram a
primeira constituição do Brasil, outorgada em 25 de março de 1824. Foi a
primeira e mais longeva Carta Magna da história do país — ficou em vigor por 67
anos.
O ministro aposentado
do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello aponta as características da
Constituição de 1824 no seu livro Constituição Federal Anotada (Saraiva), que
integra o catálogo da Biblioteca do Congresso dos EUA.
A Carta Imperial
instituiu a forma unitária de Estado, “com forte centralização
político-administrativa”, adotou a forma monárquica de governo e dividiu o
território do império do Brasil em províncias, cada uma administrada por um
presidente, nomeado pelo imperador e exonerável a critério do governante.
A norma definiu o
catolicismo como religião oficial, assegurando às demais religiões o culto
doméstico ou particular, desde que não fosse em templos públicos. Também
consagrou a separação dos poderes, estabelecendo quatro deles: Legislativo,
Judiciário, Executivo e Moderador.
O poder Legislativo
foi delegado à Assembleia Geral, órgão bicameral, composto pela Câmara dos
Deputados (eletiva e temporária) e pela Câmara dos Senadores ou Senado
(organizada por eleição provincial, designados os seus membros pelo imperador,
a partir de uma lista tríplice, e investidura vitalícia).
O voto era censitário.
Só poderiam votar aqueles que tivessem fortuna própria ou renda líquida, mínima
e anual de 100 mil-réis. Da mesma forma, só poderiam ser eleitos os candidatos
que cumprissem requisitos econômico-financeiros. Para ser eleitor de província,
era preciso ter renda mínima, líquida e anual de 200 mil-réis; deputados, renda
de 400 mil-réis; e senadores, renda de 800 mil-réis.
O poder Judiciário era
composto por juízes e jurados. O tribunal do júri tinha competência em matéria
penal e civil, nos casos determinados pelos códigos. Os magistrados eram
vitalícios, mas não tinham a garantia da inamovibilidade. Os Tribunais da Relação,
existentes em cada província, eram órgãos de segunda instância. O órgão de
cúpula do Judiciário no Império era o Supremo Tribunal de Justiça, cujos
membros (conselheiros) eram necessariamente magistrados togados, tirados das
relações provinciais por suas respectivas antiguidades.
Já os poderes
Moderador e Executivo foram concedidos ao imperador. “O primeiro, reconhecido
como ‘a chave de toda organização política’, foi delegado privativamente ao
monarca, para que, mediante o seu exercício, velasse sobre a preservação da
independência e a manutenção do equilíbrio e harmonia dos três outros poderes
políticos”, explica Celso de Mello.
O exercício do poder
Moderador legitimava a intervenção do imperador na esfera do Legislativo
(nomeando senadores, dissolvendo a Câmara dos Deputados, convocando
extraordinariamente a Assembleia Geral, sancionando e vetando as proposições
legislativas), do Executivo (nomeando e exonerando os ministros de Estado) e do
Judiciário (suspendendo os magistrados, exercendo a clemência soberana em
relação aos réus condenados por sentença).
“O imperador também
chefiava o poder Executivo, que exercia pelos seus ministros de Estado. Estes
eram responsáveis pelo desempenho de suas atribuições. A pessoa do monarca,
contudo, era inviolável e sagrada, não estando ele sujeito a responsabilidade
alguma”, detalha o ministro aposentado.
Influenciada pelas
Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789), a Constituição de 1824 tinha uma
ampla declaração de direitos. Os projetos de lei estavam submetidos ao poder de
sanção ou de veto do imperador, que tinha prazo de um mês para exercê-lo. O
veto não era absoluto, tinha efeito meramente suspensivo. Passadas duas
legislaturas (quatro anos cada uma), se o projeto fosse reapresentado e
novamente aprovado pela Assembleia Geral, ele seria automaticamente sancionado.
“Registre-se que, sob
esta Carta, e ao contrário das Constituições republicanas, estava previsto o
veto tácito, caracterizado pelo decurso, in albis [sem manifestações], do prazo
de um mês”, detalha Celso de Mello.
Ruptura com Portugal
Desde 1815, com a
instituição do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, e após todas as
transformações institucionais que resultaram da mudança da família real
portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808, Brasil e Portugal submetiam-se
praticamente a uma mesma ordenação política e jurídica, afirma André Rufino do
Vale, professor de Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino,
Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).
Com a Independência,
em 1822, tornou-se necessária a instituição de um ordenamento jurídico-político
exclusivamente brasileiro. Uma das principais medidas adotadas por D. Pedro I
para se libertar de Portugal foi a determinação de que quaisquer normas impostas
pelas cortes lusitanas somente teriam aplicabilidade em território brasileiro
se fossem previamente aprovadas pelo príncipe regente, aponta o docente.
Segundo Vale, a
Constituição de 1824, em diversos aspectos, representou uma ruptura com as
ordens jurídicas vigentes na época do Brasil colônia (como ordenações reais,
Direito Comum Europeu e Direito Canônico).
“Foi o primeiro
documento normativo na história brasileira a fundamentar uma ordem jurídica
para um Estado unitário com contornos territoriais definidos e soberania
política em relação a outras nações da época. Em segundo lugar, foi uma
Constituição nitidamente liberal, que, ao estabelecer de forma inovadora a
organização e divisão dos poderes estatais e proteger direitos, nos moldes das
constituições modernas de seu tempo, instituiu uma ordem jurídica completamente
diferenciada daquela vigente no período colonial”.
“Mesmo tendo
conformado uma forma de governo monarquista, com desenhos oriundos do
absolutismo prevalecente na época colonial, e assim distante do republicanismo
almejado pelas principais revoltas locais da segunda metade do Século XVIII
(como a Inconfidência Mineira de 1789), a Constituição de 1824 foi um documento
político avançado para o seu tempo”, avalia o constitucionalista.
Como nada na história
se rompe definitivamente de uma hora para a outra, a Carta Imperial tinha
bastante continuidade em relação às normas portuguesas, destaca a professora da
Universidade de Brasília Maria Pia Guerra, pesquisadora de História do Direito.
No entanto, a Constituição de 1824 promoveu importantes mudanças.
“O Direito do Antigo Regime
— como chamamos o Direito do Brasil colônia — era bastante plural e
fragmentado, mais próximo do saber dos juristas do que da vontade do
legislador. A Constituição de 1824, ao contrário, pretende-se um documento
normativo-legislativo que, progressivamente, refaz a hierarquia das normas
jurídicas. É um processo bastante longo de transformação, mas tem na
Constituição de 1824 uma peça essencial”, explica.
Por outro lado, o
colunista da ConJur Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, autor do livro Direito e
História — uma relação equivocada (Edições Humanidades), avalia que não houve
ruptura, pois os arranjos institucionais do Brasil colônia foram todos
praticamente mantidos.
“O processo (civil e
penal) permanece marcado pela influência dos praxistas e pelo uso de fórmulas
consagradas nas Ordenações Filipinas. O Direto Penal, por exemplo, persistiu
regido pelo odioso Livro V das Ordenações até a adoção do Código Penal do Império,
em 1830. Persistiam as regras sobre a escravidão. O sistema tributário mantinha
as linhas gerais do modelo que D. João transpôs para o Brasil, quando aqui
chegou em 1808. Não há uma ruptura radical. Mantivemos — basicamente — os
mesmos institutos jurídicos, o mesmo vocabulário. O modelo coimbrão de ensino
foi de algum modo mantido pelos Estatutos do Visconde de Cachoeira, que é o
verdadeiro organizador do ensino jurídico no Brasil”, diz Godoy.
Impacto da
Constituição
Ainda que fosse
produto do seu tempo, a Constituição de 1824 era atrasada em comparação às de
outros países, especialmente por estabelecer o voto censitário e manter a
escravidão no país, aponta o jurista Lenio Streck, professor de Direito
Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade
Estácio de Sá.
“Há coisas curiosas e
paradoxais na Constituição de 1824. É uma carta de seu tempo. Inspirou-se na
França e nos EUA. Mas ficou atrasada em relação a essas constituições. Mormente
no que diz respeito a falta de controle de constitucionalidade pelo Judiciário.
Quem (não) controlava a constitucionalidade era o poder Legislativo. Além
disso, ficou uma distância enorme entre o seu texto e a realidade. Por exemplo,
algo bizarro: aboliu as penas de açoites e galés, mas o Código Criminal do
Império as ‘recolocou’. E, como não havia efetivo controle de
constitucionalidade, ‘ficaram’ os açoites e galés. O voto censitário e a
escravidão, por si só, já mancham o Direito brasileiro do século XIX”.
A Constituição de
1824, redigida pelo Marquês de Caravelas, “foi a materialização jurídica da
revolução liberal que pôs fim ao antigo regime e organizou o Brasil
independente”, afirma Christian Edward Cyrill Lynch, professor do Instituto de
Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)
e presidente do Instituto Brasileiro de História do Direito (IBHD).
O desenho
institucional estabelecido pela Carta Imperial tentou equilibrar as exigências
de autoridade, decorrentes da necessidade de construção do Estado nacional, e
as de liberdade, oriundas das Revoluções Francesa e Americana. Com isso,
ressalta Lynch, consagrou uma “declaração generosa de direitos fundamentais” —
não por acaso, a norma só foi revogada em 1891, com a promulgação da
Constituição da República.
“A estabilidade
institucional brasileira adquirida a partir da década de 1840, com eleições
regulares e plena liberdade de imprensa, foi essencial para criar condições
para modernizar a atrasadíssima sociedade por meio de negociações legislativas,
notadamente pelo fim do tráfico de escravizados e da própria escravidão. A
estabilidade institucional e a liberdade de imprensa serviram de exemplo de uma
cultura liberal e civilista na República, que serviu desde então de padrão.
Além disso, a tradição liberal institucional contrabalançou tendências
autoritárias que se manifestaram no novo regime, reduzindo a duração e o
alcance dos intervalos autoritários, em comparação com outros países
latino-americanos”, analisa.
A criação do poder
Moderador foi uma distorção da teoria da separação dos poderes e gerou uma
forte centralização de atribuições no imperador, ressalta Ingo Sarlet,
professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul.
Além disso, diz, a
Constituição de 1824 foi a única da história do Brasil do tipo semirrígido.
Isso porque definia em que consistia a matéria constitucional propriamente
dita, sujeita a um processo mais rigoroso de alteração (mediante o
estabelecimento de limites formais à reforma constitucional), ao passo que o
restante do texto poderia ser alterado por meio do processo legislativo
ordinário.
O artigo 178
estabelecia que “é só Constitucional o que diz respeito aos limites, e
atribuições respectivas dos Poderes Políticos, e aos Direitos Políticos, e
individuais dos Cidadãos. Tudo o que não é Constitucional, pode ser alterado
sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordinárias”.
O controle de
constitucionalidade das leis era eminentemente político, tendo sido conferido
ao Legislativo. Aos juízes cabia apenas “declarar o direito”, de acordo com
Sarlet.
“A Carta Imperial
aderiu ao modelo constitucional francês revolucionário, extremamente cauteloso
(e mesmo resistente) em relação ao poder dos juízes, que, em geral, deveriam se
limitar a atuar como a ‘boca da lei’, de acordo com a visão privilegiada por Montesquieu.
A posição do Judiciário no âmbito da arquitetura político-institucional era,
portanto, bastante distinta daquela que vinha sendo engendrada na esfera do
constitucionalismo norte-americano (especialmente quando a Suprema Corte
assumiu a prerrogativa do controle de constitucionalidade das leis), situação
que veio a ser superada (ainda assim de modo gradual) apenas a contar da
proclamação da República”.
• Legado da Carta
Uma das marcas da
Constituição Imperial “é o abismo entre a abstração normativa e a realidade
social e institucional de então”, afirma Ingo Sarlet. Por mais que previsse um
extenso elenco de direitos civis e políticos, entre os quais a garantia da
isonomia, a Carta de 1824 vigeu por 67 anos — embora tenha atravessado fortes
instabilidades políticas e sociais — admitindo os privilégios da nobreza, o
voto censitário e o regime escravocrata.
Apesar disso, destaca
Sarlet, a Constituição de 1824 foi bem-sucedida em absorver e superar as
tensões entre o absolutismo e o liberalismo para se constituir no texto
fundador da nacionalidade brasileira e no ponto de partida para a nossa
maioridade constitucional.
O principal legado da
Constituição de 1824 para o ordenamento jurídico brasileiro é a concepção de
que a sociedade deve se organizar com base em uma ordem rígida, opina Arnaldo
Sampaio de Moraes Godoy.
“Com a República, e
com a adoção da fórmula dos três poderes, restou a questão: quem é, atualmente,
o poder Moderador? O Supremo? O Ministério Público? A Advocacia-Geral da União?
Alguns brutos chegaram a citar o Exército. As linhas mestras de um modelo centralizador
também ficaram bem-marcadas. Às províncias, deu-se pequena margem de poder, o
que se refletirá mais tarde na fixação do federalismo brasileiro, que veio de
cima para baixo. Há uma declaração de direitos (artigo 179) e uma interessante
fórmula que dividia as normas em formalmente constitucionais e materialmente
constitucionais. Essas últimas poderiam ser alteradas por leis constitucionais
(hoje, emendas), aquelas primeiras, por leis ordinárias”, diz Godoy.
A Carta Imperial
deixou dois grandes legados, analisa Maria Pia Guerra. O primeiro é a criação
do Estado brasileiro. “Embora exista uma tradição de pensamento, sobretudo
ligada a Raimundo Faoro, que argumenta existir uma tradição burocrática ibérica
no Brasil, os estudos de História do Direito nos últimos anos mostraram que o
aparato da burocracia e da administração (do Estado e do poder Executivo,
portanto), remontam sobretudo ao período pós-independência e à Constituição de
1824”.
O segundo legado da
Constituição de 1824 é a consolidação da desigualdade racial no país. “Embora a
escravidão fosse anterior, foi na vigência da Constituição — e por conta do
regime jurídico por estabelecido — que a escravidão assumiu sua face mais ‘industrial’,
mais extensa e intensa. De fato, a palavra ‘escravidão’ não está presente no
texto. Mas nem precisava: a definição de quem é o cidadão, quem pode votar e
ser votado, quem pode ser proprietário etc., estruturam um regime jurídico
baseado na desigualdade racial, com consequências até os dias de hoje”, afirma
Maria Pia Guerra.
Fonte: Por Sérgio
Rodas, em Consultor Jurídico
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