quinta-feira, 28 de março de 2024

Constituição de 1824 organizou Estado, mas consolidou desigualdade

Outorgada em 25 de março, a Constituição de 1824 completa 200 anos em 2024. A norma organizou o Estado brasileiro, criou as bases do poder político nacional e estabeleceu um amplo rol de direitos fundamentais. Porém, centralizou excessivamente os poderes na figura do imperador, restringiu a participação política aos que tinham dinheiro e consolidou a desigualdade racial.

Em 1808, a família real portuguesa, temendo os avanços do imperador francês Napoleão, se refugiou no Brasil, transferindo a capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves para o Rio de Janeiro.

Depois de chegar ao Rio, D. João VI passou a tomar diversas medidas que pavimentaram o caminho para o processo de independência do Brasil, como a abertura dos portos às nações amigas, o fim da proibição de indústrias, a construção de um sistema de tributação centrado nas incidências sobre o comércio exterior e a criação dos cursos universitários.

A convocação de eleições para a primeira Assembleia Constituinte brasileira ocorreu em 3 de junho de 1822, três meses antes da declaração de independência. O órgão foi instalado em 3 de maio de 1823.

Contudo, a Assembleia Constituinte foi dissolvida por D. Pedro I em 12 de novembro de 1823, no episódio que ficou conhecido como a “Noite da agonia”. Destituída a Constituinte, D. Pedro I reuniu dez cidadãos de sua confiança, que redigiram a primeira constituição do Brasil, outorgada em 25 de março de 1824. Foi a primeira e mais longeva Carta Magna da história do país — ficou em vigor por 67 anos.

O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello aponta as características da Constituição de 1824 no seu livro Constituição Federal Anotada (Saraiva), que integra o catálogo da Biblioteca do Congresso dos EUA.

A Carta Imperial instituiu a forma unitária de Estado, “com forte centralização político-administrativa”, adotou a forma monárquica de governo e dividiu o território do império do Brasil em províncias, cada uma administrada por um presidente, nomeado pelo imperador e exonerável a critério do governante.

A norma definiu o catolicismo como religião oficial, assegurando às demais religiões o culto doméstico ou particular, desde que não fosse em templos públicos. Também consagrou a separação dos poderes, estabelecendo quatro deles: Legislativo, Judiciário, Executivo e Moderador.

O poder Legislativo foi delegado à Assembleia Geral, órgão bicameral, composto pela Câmara dos Deputados (eletiva e temporária) e pela Câmara dos Senadores ou Senado (organizada por eleição provincial, designados os seus membros pelo imperador, a partir de uma lista tríplice, e investidura vitalícia).

O voto era censitário. Só poderiam votar aqueles que tivessem fortuna própria ou renda líquida, mínima e anual de 100 mil-réis. Da mesma forma, só poderiam ser eleitos os candidatos que cumprissem requisitos econômico-financeiros. Para ser eleitor de província, era preciso ter renda mínima, líquida e anual de 200 mil-réis; deputados, renda de 400 mil-réis; e senadores, renda de 800 mil-réis.

O poder Judiciário era composto por juízes e jurados. O tribunal do júri tinha competência em matéria penal e civil, nos casos determinados pelos códigos. Os magistrados eram vitalícios, mas não tinham a garantia da inamovibilidade. Os Tribunais da Relação, existentes em cada província, eram órgãos de segunda instância. O órgão de cúpula do Judiciário no Império era o Supremo Tribunal de Justiça, cujos membros (conselheiros) eram necessariamente magistrados togados, tirados das relações provinciais por suas respectivas antiguidades.

Já os poderes Moderador e Executivo foram concedidos ao imperador. “O primeiro, reconhecido como ‘a chave de toda organização política’, foi delegado privativamente ao monarca, para que, mediante o seu exercício, velasse sobre a preservação da independência e a manutenção do equilíbrio e harmonia dos três outros poderes políticos”, explica Celso de Mello.

O exercício do poder Moderador legitimava a intervenção do imperador na esfera do Legislativo (nomeando senadores, dissolvendo a Câmara dos Deputados, convocando extraordinariamente a Assembleia Geral, sancionando e vetando as proposições legislativas), do Executivo (nomeando e exonerando os ministros de Estado) e do Judiciário (suspendendo os magistrados, exercendo a clemência soberana em relação aos réus condenados por sentença).

“O imperador também chefiava o poder Executivo, que exercia pelos seus ministros de Estado. Estes eram responsáveis pelo desempenho de suas atribuições. A pessoa do monarca, contudo, era inviolável e sagrada, não estando ele sujeito a responsabilidade alguma”, detalha o ministro aposentado.

Influenciada pelas Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789), a Constituição de 1824 tinha uma ampla declaração de direitos. Os projetos de lei estavam submetidos ao poder de sanção ou de veto do imperador, que tinha prazo de um mês para exercê-lo. O veto não era absoluto, tinha efeito meramente suspensivo. Passadas duas legislaturas (quatro anos cada uma), se o projeto fosse reapresentado e novamente aprovado pela Assembleia Geral, ele seria automaticamente sancionado.

“Registre-se que, sob esta Carta, e ao contrário das Constituições republicanas, estava previsto o veto tácito, caracterizado pelo decurso, in albis [sem manifestações], do prazo de um mês”, detalha Celso de Mello.

Ruptura com Portugal

Desde 1815, com a instituição do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, e após todas as transformações institucionais que resultaram da mudança da família real portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808, Brasil e Portugal submetiam-se praticamente a uma mesma ordenação política e jurídica, afirma André Rufino do Vale, professor de Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

Com a Independência, em 1822, tornou-se necessária a instituição de um ordenamento jurídico-político exclusivamente brasileiro. Uma das principais medidas adotadas por D. Pedro I para se libertar de Portugal foi a determinação de que quaisquer normas impostas pelas cortes lusitanas somente teriam aplicabilidade em território brasileiro se fossem previamente aprovadas pelo príncipe regente, aponta o docente.

Segundo Vale, a Constituição de 1824, em diversos aspectos, representou uma ruptura com as ordens jurídicas vigentes na época do Brasil colônia (como ordenações reais, Direito Comum Europeu e Direito Canônico).

“Foi o primeiro documento normativo na história brasileira a fundamentar uma ordem jurídica para um Estado unitário com contornos territoriais definidos e soberania política em relação a outras nações da época. Em segundo lugar, foi uma Constituição nitidamente liberal, que, ao estabelecer de forma inovadora a organização e divisão dos poderes estatais e proteger direitos, nos moldes das constituições modernas de seu tempo, instituiu uma ordem jurídica completamente diferenciada daquela vigente no período colonial”.

“Mesmo tendo conformado uma forma de governo monarquista, com desenhos oriundos do absolutismo prevalecente na época colonial, e assim distante do republicanismo almejado pelas principais revoltas locais da segunda metade do Século XVIII (como a Inconfidência Mineira de 1789), a Constituição de 1824 foi um documento político avançado para o seu tempo”, avalia o constitucionalista.

Como nada na história se rompe definitivamente de uma hora para a outra, a Carta Imperial tinha bastante continuidade em relação às normas portuguesas, destaca a professora da Universidade de Brasília Maria Pia Guerra, pesquisadora de História do Direito. No entanto, a Constituição de 1824 promoveu importantes mudanças.

“O Direito do Antigo Regime — como chamamos o Direito do Brasil colônia — era bastante plural e fragmentado, mais próximo do saber dos juristas do que da vontade do legislador. A Constituição de 1824, ao contrário, pretende-se um documento normativo-legislativo que, progressivamente, refaz a hierarquia das normas jurídicas. É um processo bastante longo de transformação, mas tem na Constituição de 1824 uma peça essencial”, explica.

Por outro lado, o colunista da ConJur Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, autor do livro Direito e História — uma relação equivocada (Edições Humanidades), avalia que não houve ruptura, pois os arranjos institucionais do Brasil colônia foram todos praticamente mantidos.

“O processo (civil e penal) permanece marcado pela influência dos praxistas e pelo uso de fórmulas consagradas nas Ordenações Filipinas. O Direto Penal, por exemplo, persistiu regido pelo odioso Livro V das Ordenações até a adoção do Código Penal do Império, em 1830. Persistiam as regras sobre a escravidão. O sistema tributário mantinha as linhas gerais do modelo que D. João transpôs para o Brasil, quando aqui chegou em 1808. Não há uma ruptura radical. Mantivemos — basicamente — os mesmos institutos jurídicos, o mesmo vocabulário. O modelo coimbrão de ensino foi de algum modo mantido pelos Estatutos do Visconde de Cachoeira, que é o verdadeiro organizador do ensino jurídico no Brasil”, diz Godoy.

Impacto da Constituição

Ainda que fosse produto do seu tempo, a Constituição de 1824 era atrasada em comparação às de outros países, especialmente por estabelecer o voto censitário e manter a escravidão no país, aponta o jurista Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá.

“Há coisas curiosas e paradoxais na Constituição de 1824. É uma carta de seu tempo. Inspirou-se na França e nos EUA. Mas ficou atrasada em relação a essas constituições. Mormente no que diz respeito a falta de controle de constitucionalidade pelo Judiciário. Quem (não) controlava a constitucionalidade era o poder Legislativo. Além disso, ficou uma distância enorme entre o seu texto e a realidade. Por exemplo, algo bizarro: aboliu as penas de açoites e galés, mas o Código Criminal do Império as ‘recolocou’. E, como não havia efetivo controle de constitucionalidade, ‘ficaram’ os açoites e galés. O voto censitário e a escravidão, por si só, já mancham o Direito brasileiro do século XIX”.

A Constituição de 1824, redigida pelo Marquês de Caravelas, “foi a materialização jurídica da revolução liberal que pôs fim ao antigo regime e organizou o Brasil independente”, afirma Christian Edward Cyrill Lynch, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e presidente do Instituto Brasileiro de História do Direito (IBHD).

O desenho institucional estabelecido pela Carta Imperial tentou equilibrar as exigências de autoridade, decorrentes da necessidade de construção do Estado nacional, e as de liberdade, oriundas das Revoluções Francesa e Americana. Com isso, ressalta Lynch, consagrou uma “declaração generosa de direitos fundamentais” — não por acaso, a norma só foi revogada em 1891, com a promulgação da Constituição da República.

“A estabilidade institucional brasileira adquirida a partir da década de 1840, com eleições regulares e plena liberdade de imprensa, foi essencial para criar condições para modernizar a atrasadíssima sociedade por meio de negociações legislativas, notadamente pelo fim do tráfico de escravizados e da própria escravidão. A estabilidade institucional e a liberdade de imprensa serviram de exemplo de uma cultura liberal e civilista na República, que serviu desde então de padrão. Além disso, a tradição liberal institucional contrabalançou tendências autoritárias que se manifestaram no novo regime, reduzindo a duração e o alcance dos intervalos autoritários, em comparação com outros países latino-americanos”, analisa.

A criação do poder Moderador foi uma distorção da teoria da separação dos poderes e gerou uma forte centralização de atribuições no imperador, ressalta Ingo Sarlet, professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Além disso, diz, a Constituição de 1824 foi a única da história do Brasil do tipo semirrígido. Isso porque definia em que consistia a matéria constitucional propriamente dita, sujeita a um processo mais rigoroso de alteração (mediante o estabelecimento de limites formais à reforma constitucional), ao passo que o restante do texto poderia ser alterado por meio do processo legislativo ordinário.

O artigo 178 estabelecia que “é só Constitucional o que diz respeito aos limites, e atribuições respectivas dos Poderes Políticos, e aos Direitos Políticos, e individuais dos Cidadãos. Tudo o que não é Constitucional, pode ser alterado sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordinárias”.

O controle de constitucionalidade das leis era eminentemente político, tendo sido conferido ao Legislativo. Aos juízes cabia apenas “declarar o direito”, de acordo com Sarlet.

“A Carta Imperial aderiu ao modelo constitucional francês revolucionário, extremamente cauteloso (e mesmo resistente) em relação ao poder dos juízes, que, em geral, deveriam se limitar a atuar como a ‘boca da lei’, de acordo com a visão privilegiada por Montesquieu. A posição do Judiciário no âmbito da arquitetura político-institucional era, portanto, bastante distinta daquela que vinha sendo engendrada na esfera do constitucionalismo norte-americano (especialmente quando a Suprema Corte assumiu a prerrogativa do controle de constitucionalidade das leis), situação que veio a ser superada (ainda assim de modo gradual) apenas a contar da proclamação da República”.

•        Legado da Carta      

Uma das marcas da Constituição Imperial “é o abismo entre a abstração normativa e a realidade social e institucional de então”, afirma Ingo Sarlet. Por mais que previsse um extenso elenco de direitos civis e políticos, entre os quais a garantia da isonomia, a Carta de 1824 vigeu por 67 anos — embora tenha atravessado fortes instabilidades políticas e sociais — admitindo os privilégios da nobreza, o voto censitário e o regime escravocrata.

Apesar disso, destaca Sarlet, a Constituição de 1824 foi bem-sucedida em absorver e superar as tensões entre o absolutismo e o liberalismo para se constituir no texto fundador da nacionalidade brasileira e no ponto de partida para a nossa maioridade constitucional.

O principal legado da Constituição de 1824 para o ordenamento jurídico brasileiro é a concepção de que a sociedade deve se organizar com base em uma ordem rígida, opina Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy.

“Com a República, e com a adoção da fórmula dos três poderes, restou a questão: quem é, atualmente, o poder Moderador? O Supremo? O Ministério Público? A Advocacia-Geral da União? Alguns brutos chegaram a citar o Exército. As linhas mestras de um modelo centralizador também ficaram bem-marcadas. Às províncias, deu-se pequena margem de poder, o que se refletirá mais tarde na fixação do federalismo brasileiro, que veio de cima para baixo. Há uma declaração de direitos (artigo 179) e uma interessante fórmula que dividia as normas em formalmente constitucionais e materialmente constitucionais. Essas últimas poderiam ser alteradas por leis constitucionais (hoje, emendas), aquelas primeiras, por leis ordinárias”, diz Godoy.

A Carta Imperial deixou dois grandes legados, analisa Maria Pia Guerra. O primeiro é a criação do Estado brasileiro. “Embora exista uma tradição de pensamento, sobretudo ligada a Raimundo Faoro, que argumenta existir uma tradição burocrática ibérica no Brasil, os estudos de História do Direito nos últimos anos mostraram que o aparato da burocracia e da administração (do Estado e do poder Executivo, portanto), remontam sobretudo ao período pós-independência e à Constituição de 1824”.

O segundo legado da Constituição de 1824 é a consolidação da desigualdade racial no país. “Embora a escravidão fosse anterior, foi na vigência da Constituição — e por conta do regime jurídico por estabelecido — que a escravidão assumiu sua face mais ‘industrial’, mais extensa e intensa. De fato, a palavra ‘escravidão’ não está presente no texto. Mas nem precisava: a definição de quem é o cidadão, quem pode votar e ser votado, quem pode ser proprietário etc., estruturam um regime jurídico baseado na desigualdade racial, com consequências até os dias de hoje”, afirma Maria Pia Guerra.

 

Fonte: Por Sérgio Rodas, em Consultor Jurídico

 

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