Os pastores evangélicos perseguidos pela
ditadura
"Os choques me
provocavam convulsões e gritos. A sensação era de perda total de controle sobre
minha capacidade mental, racional, e sobre os meus movimentos. Era
insuportável!"
Foi assim que Anivaldo
Padilha, líder ecumênico metodista, descreveu as torturas que sofreu durante os
21 dias em que ficou preso em São Paulo no Destacamento de Operações de
Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), uma agência de repressão
política subordinada ao Exército durante a ditadura militar iniciada em 1964.
Padilha foi um dos
líderes religiosos evangélicos perseguidos pelo regime no Brasil. Ele foi
acusado de "infiltração comunista" na Igreja Metodista, segundo seus
próprios relatos, e passou, ao todo, 11 meses detido.
Pai do atual ministro
das Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT), ele foi delatado, no
início da década de 1970, pelo pastor e pelo bispo da igreja da qual fazia
parte.
Na época, ocupava o
cargo de diretor do Departamento Nacional de Juventude da Igreja Metodista e
era editor de uma revista da igreja dirigida a esse público.
Fez parte desde a sua
juventude da Ação Popular, uma organização criada por militantes da juventude
católica que se expandiu para um caráter não confessional e defendia o
conceito-chave do “socialismo como humanismo”.
Além das suspeitas de
infiltração comunista, ele entrou na mira do regime por auxiliar na proteção de
perseguidos políticos que buscavam o exílio e informar às redes ecumênicas
internacionais sobre o que acontecia nas prisões da ditadura brasileira.
"Forçaram-me a
tirar minha roupa e me colocaram na 'cadeira do dragão'. Uma cadeira revestida
com folhas de metal conectadas por um fio a um rádio militar de campanha",
contou Padilha sobre as torturas que sofreu na prisão em depoimento realizado
para Procuradoria da República e Conselho Mundial de Igrejas (CMI) em 2011.
"Fui colocado nu
no assento com minhas mãos e pés amarrados. Exigiram que eu desse todas as
informações que eu possuía. A cada negativa, o torturador girava a manivela do
telefone para aumentar a intensidade dos choques."
Padilha foi solto e se
exilou no Uruguai, Suíça e Estados Unidos, tendo retornado ao Brasil somente
após a Lei de Anistia, em 1979. Por seu tempo fora, só conheceu o filho
Alexandre aos 8 anos.
O ministro relembrou a
experiência de sua família com a perseguição ao pai em um ato pró-democracia em
2014.
"Muito cedo tive
que aprender o que era a ditadura para entender porque eu e minha mãe mudávamos
de casa e não tínhamos residência fixa até meus 4 anos. Só falava com meu pai
por carta ou por fita cassete", contou.
Anivaldo Padilha não
foi o único integrante de uma igreja evangélica denunciado por membros da
própria comunidade.
Segundo os relatórios
elaborados pela Comissão Nacional da Verdade após anos de investigações sobre
as violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar, boa parte
das lideranças evangélicas se alinharam ao governo de exceção depois da tomada
do poder há 60 anos.
Com isso, pastores e
membros das congregações que teciam críticas à ditadura, faziam parte de
organizações de oposição ou mantinham posições consideradas nocivas para a
segurança nacional naquele momento foram perseguidos e tiveram que atuar na
clandestinidade.
Os denunciados ao
regime foram acusados de subversão, forçados ao exílio, torturados e, em alguns
casos, ficaram desaparecidos.
Muitos também sofreram
processos eclesiásticos e foram até excluídos de suas igrejas. Concílios
inteiros e unidades administrativas locais também foram dissolvidas.
Entre as vítimas
evangélicas, estavam principalmente aqueles que pregavam uma renovação nas
ideias tradicionais defendidas por esse segmento cristão desde o século 19, em
especial o fundamentalismo bíblico, o puritanismo e um isolamento das coisas
consideradas mais mundanas, como a política.
Em vez disso, essas
lideranças pregavam a responsabilidade das igrejas diante de mudanças políticas
e a luta por justiça social.
Os movimentos
ecumênico, que defende a unidade de diferentes igrejas e comunidades cristãs, e
de juventude evangélica tiveram forte papel na pressão por mudanças.
"Essa forte
aproximação com a Igreja Católica era rejeitada pelos mais conservadores",
afirma Alderi Souza, pastor presbiteriano e professor da Universidade
Presbiteriana Mackenzie.
O historiador e
teólogo explica que, ao mesmo tempo, também havia grande preocupação do comando
em relação a uma corrente que crescia: o liberalismo teológico.
"Quem apoiava
essas ideias acreditava na ênfase na teologia que já não priorizava mais a
evangelização no sentido clássico, ou a espiritualidade e a teologia no sentido
tradicional, mas sim o envolvimento político social", diz Souza.
Do mundo para as
igrejas
Não foi apenas a
pressão por mudanças internas que incomodou. A cisão interna que atingiu as
igrejas evangélicas no Brasil foi um reflexo das convulsões experimentadas pela
sociedade brasileira como um todo em meados do século 20, explica o
historiador.
O momento era de
extrema polarização, com um contexto internacional também agitado.
Enquanto o Muro de
Berlim marcava a tensão geopolítica entre a União Soviética e os Estados Unidos
e seus respectivos aliados, internamente, João Goulart sofria uma forte
resistência conservadora contra seu governo.
Antes mesmo do golpe
em 1964, as reações antagônicas aos ideais que cresciam na época e o movimento
contra a chamada "ameaça vermelha" do comunismo também tiveram
impacto nas igrejas.
Houve uma cisão de
posições ideológicas dentro das igrejas como estava acontecendo na sociedade
brasileira, diz Souza.
"Enquanto alguns
indivíduos estavam alarmados com aquilo que entendiam como a ascensão da
esquerda e o risco iminente da tomada do poder pelos comunistas, outros estavam
empolgados com as novas ideias que surgiam e defendiam até mesmo soluções mais radicais,
como a luta armada para tomada do poder."
Na cúpula da maioria
das igrejas evangélicas, predominou a primeira posição, segundo o historiador.
Dois anos após a
tomada do poder pelos militares, a Igreja Presbiteriana do Brasil elegeu o
pastor Boanerges Ribeiro, que defendia uma posição conservadora, para presidir
o Supremo Concílio, que manteria sua influência por quase 20 anos.
Movimentos semelhantes
aconteceram em outras denominações protestantes, entre elas a batista e a
metodista.
Não demorou muito para
que essas lideranças entrassem em conflito direto com os pastores e membros da
comunidade que defendiam ideias opostas àquelas pregadas pelo regime militar.
Segundo Raimundo
Barreto, pastor batista, historiador e professor da Universidade Princeton, nos
Estados Unidos, muitos integrantes foram influenciados "pelas discussões
em torno do marxismo e das promessas não cumpridas do desenvolvimento capitalista
de melhores condições de vida".
"Muito desse
movimento aconteceu às margens das igrejas protestantes, porque o mundo do
protestantismo brasileiro sempre foi conservador e influenciado por movimentos
missionários americanos mais individualistas cuja maior preocupação era a
conversão."
Em um de seus
relatórios, a Comissão da Verdade aponta como "protestantes com
engajamento social, especialmente, aqueles vinculados ao movimento ecumênico,
eram identificados pelos agentes do sistema como inimigos da nação".
O comitê aponta como
uma das provas de tal perseguição um documento elaborado pelo Serviço Nacional
de Informações (SNI), o órgão de coleta de informações e de inteligência do
regime militar, de 30 de outubro de 1980.
O texto afirma que
grupos religiosos evangélicos procuravam "influir na política
governamental nos diversos campos do poder nacional, através de educação e
doutrinação das massas, visando a consecução de seus objetivos políticos”.
O colegiado que
investigou as violações ocorridas durante os anos de autoritarismo afirma ainda
que os agentes da repressão denominavam “progressistas” tanto católicos quanto
protestantes, por conta de ações consideradas “contestação ao regime vigente e às
autoridades constituídas”.
Em 1964, ano do golpe
que deu início ao regime militar, as igrejas evangélicas passavam por um
momento de expansão.
O protestantismo
chegou ao Brasil no início dos anos 1900, mas foi apenas a partir dos anos 1960
que um crescimento substantivo pôde ser notado, especialmente com o
aparecimento das igrejas neopentecostais a partir dos anos 1970
Na década de 1960,
segundo dados do censo, cerca de 4,3% da população se declarava evangélica -
uma parcela pequena se comparada aos 23% registrados em 2010.
Em contrapartida, mais
de 90% da população se declarava católica daquele momento.
Mas, assim como as
igrejas evangélicas, as lideranças católicas também desempenharam papéis
contraditórios durante a ditadura militar no Brasil.
Por um lado, parte da
cúpula da Igreja Católica apoiou os militares. Por outro, muitas lideranças e
fiéis católicos foram personagens importantes na resistência e foram
perseguidos por isso.
Outro grupo religioso
que entrou na mira dos militares foram as Testemunhas de Jeová, por se absterem
de qualquer participação política e recusarem o alistamento militar e a
idolatria a símbolos nacionais.
• 'Pastor por conveniência'
Assim como Anivaldo
Padilha, Zwinglio Dias, pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), também
foi preso, no DOI-Codi no Rio de Janeiro, onde sofreu tortura psicológica.
Ele era membro do
Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), que promovia reuniões em
que havia a troca de informações sobre os colegas que estavam sendo
perseguidos.
Foi preso em 1971 e
contou que, embora não tenha sido submetido às torturas físicas, foi bastante
ameaçado, assistindo pessoas serem torturadas na sua frente.
Em Memórias Ecumênicas
Protestantes, livro publicado em 2014, ele afirma ter sido investigado pela
igreja por ser um "ateu por convicção, político por profissão, e pastor
por conveniência" antes mesmo de ser ordenado pastor, quando ainda era licenciado.
Já o pastor
presbiteriano Leonildo Silveira Campos foi preso em 1969 aos 21 anos, quando
ainda era seminarista da Igreja Presbiteriana Independente.
Ele foi acusado de
subversão e ficou 15 dias detido nas dependências da Operação Bandeirantes
(Oban) e no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em São Paulo.
O centro de
informações e investigações criado pelos militares e conhecido como Oban também
é lembrado por conta do pastor batista Roberto Pontuschka, capelão do Exército
que, segundo depoimentos, teria atuado também como torturador no local.
Segundo o relatório
produzido pela Comissão da Verdade, Silveira Campos ainda carrega marcas de
queimadura no polegar e no indicador da mão esquerda produzidas por descargas
elétricas nas sessões de tortura.
Ele não se esquece do
modus operandi do religioso que à noite torturava os presos e de dia visitava
celas distribuindo o Novo Testamento.
"Um dia bateram
na cela: ‘Quem é o seminarista que está aqui?'", contou Silveira Campos em
depoimento ao historiador Rodrigo Patto Sá Motta.
"De terno e
gravata, ele se apresentou como capelão e disse que trazia uma Bíblia para eu
ler para os comunistas f.d.p. e tentar converter alguém.”
O pastor batista teria
então afirmado, com uma pistola apontada debaixo do paletó, segundo Silveira
Campos: "Para os que desejam se converter, eu tenho a palavra de Deus.
Para quem não quiser, há outras alternativas".
Há relatos e registros
de outros muitos religiosos evangélicos vítimas do regime e, inclusive, de
mulheres que tinham relação próxima com a igreja.
Zenaide Machado de
Oliveira, jovem da Igreja Presbiteriana Independente, ficou presa por 3 anos e
foi torturada por 60 dias.
Ana Maria Ramos
Estevão, líder de jovens da Igreja Metodista que chegou a ser integrante da
Aliança de Libertação Nacional, foi presa três vezes e torturada por mais de 15
dias.
Heleny Guariba, também
da Igreja Metodista, foi presa e desapareceu em 1971.
Outros nomes citados
com frequência são o de Jether Ramalho, membro da Confederação Evangélica (CEB)
do Brasil nos anos 1950, Dorival Beulke, pastor da Igreja Metodista, e Weber
Fernandes Ferrer, pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil.
O escritor Rubem
Alves, que foi pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, também foi acusado,
junto com outros membros, de pecados como comunismo e desprezo pela doutrina
protestante nos tribunais da igreja.
Ele entrou para a
lista dos vigiados da ditadura e em 1965 optou pelo autoexílio com a família.
Muitos dos ativistas
do movimento ecumênico que se envolveram na organização da Conferência do
Nordeste, um evento que reuniu pastores, reverendos e fiéis de pelo menos 20
Estados em Recife em 1962 para debater a responsabilidade das igrejas diante
das mudanças políticas e sociais, também foram vítimas de perseguição anos
depois.
O pastor e sociólogo
Waldo César, falecido em 2007, foi preso pelo regime militar por uma semana em
1966 e, algum tempo depois, se exilou.
Muitos dos religiosos
expulsos de suas congregações se refugiaram em universidades para lecionar
teologia e outros campos de estudo. Outros fundaram novas igrejas.
É o caso da Igreja
Presbiteriana Unida do Brasil, no Espírito Santo, criada em 1979 por pastores
que sofreram perseguição por sua visão ecumênica, defesa do ministério feminino
e oposição ao regime.
• Resistência e documentação
Lideranças religiosas
também desempenharam um papel importante nos esforços de preservação e
recolhimento de documentos sobre os crimes cometidos nesta época no Brasil.
Entre os evangélicos,
se destaca o nome do pastor Jaime Wright, irmão de Paulo Stuart Wright,
ex-deputado estadual por Santa Catarina e dirigente nacional da Ação Popular
(AP), que desapareceu durante o regime militar, em 1973.
Chefe da Missão
Presbiteriana do Brasil Central, em São Paulo, Jaime Wright representou uma
importante força de resistência ao regime, denunciando as violações de direitos
humanos ocorridas no Brasil para colegas no exterior.
"Com a prisão do
meu tio, muitos colegas pastores presbiterianos do meu pai viraram as costas
para ele e o acusaram de ser irmão de um comunista, de um subversivo",
relata Anita Wright, filha de Jaime, à BBC News Brasil.
Segundo a presbítera
da Igreja Presbiteriana Unida, foi durante as buscas por informações sobre o
paradeiro do irmão que seu pai passou a trabalhar lado a lado com Dom Paulo
Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo, pela causa dos direitos humanos.
"Todos tinham
muito medo de que houvesse um sumiço, uma queima de arquivo, do material da
repressão. Por isso eles elaboraram uma estratégia para conseguir copiar todos
os processos de prisão e tortura", conta.
Arns, Wright e outros
ativistas alugaram uma sala com uma máquina copiadora para onde advogados
comprometidos com a causa levavam os arquivos que seriam xerocados. "Os
advogados tinha direito de retirar os processos do Superior Tribunal Militar
por algumas horas e corriam para copiá-los antes de serem devolvidos", diz
Anita Wright.
"Se meu pai teve
medo [da repressão] em algum momento, ele não demonstrou", relata.
"Ele mantinha seu trabalho de forma reservada, até como uma forma de
proteção para a família."
Os documentos reunidos
deram origem ao projeto Brasil: Nunca Mais, que resultou na publicação de um
livro que é um inventário sobre a tortura no Brasil durante os 21 anos de
ditadura.
"Só ficamos
sabendo da grandeza do projeto depois que tudo acabou."
Ao lado de Dom
Evaristo Arns e do rabino Henry Sobel, Jaime Wright também conduziu em 1975 o
culto em memória a Vladimir Herzog, jornalista assassinado pela ditadura
militar e que se tornou símbolo da luta a favor da democracia.
"Foi um momento
muito marcante porque houve uma grande mobilização dos militares para impedir
que o evento acontecesse. Me lembro que foram feitas barreiras na [Avenida] 23
de Maio e meu pai quase não conseguiu chegar a tempo da celebração", diz
Anita.
Diferente de Herzog, o
corpo do tio da presbítera, Paulo Stuart Wright, nunca foi encontrado. Há
suspeitas de que ele tenha sido morto sob tortura após ser preso no DOI-Codi de
São Paulo.
Fonte: BBC News Brasil
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