Berço político dos Brazão, Jacarepaguá tem
violência recorde em meio à guerra tráfico x milícia
O ano
de 2023 teve recordes em vários indicadores de
violência em Jacarepaguá, bairro mais populoso do Rio de Janeiro, um dos
berços da milícia no fim dos anos 90 e hoje palco de intensas disputas entre paramilitares e traficantes.
Seus sub-bairros
também são redutos políticos do clã Brazão — no domingo (24), os irmãos Chiquinho e Domingos foram presos e apontados como os mandantes do atentado contra Marielle Franco, no qual também morreu o motorista Anderson Gomes.
O g1 buscou dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de
Janeiro (ISP-RJ), e alguns indicadores de violência, inclusive o que inclui
assassinatos, bateram o recorde histórico — a sondagem começou em 2003.
Segundo o ISP-RJ, em
Jacarepaguá, nunca houve números tão altos como os do ano passado nos
seguintes indicadores:
- Extorsão - 256 casos registrados;
- Letalidade violenta (assassinatos): 250;
- Pessoas desaparecidas: 262;
- Morte por intervenção de agentes do estado (autos de
resistência): 83
Há 2 anos, os
moradores da região, que é a mais populosa da capital, de acordo com dados
do Censo 2022, com 653 mil habitantes, vivem em meio a uma guerra entre milicianos e traficantes.
Em 2018, ano em que
Marielle foi assassinada, Jacarepaguá era praticamente toda dominada pela
milícia, à exceção da Cidade de Deus, sob o tráfico do Comando Vermelho. Duas
das formas de exploração são a grilagem de terras e a expansão imobiliária —
que, para a Polícia Federal (PF), podem estar relacionadas à morte da vereadora.
A suspeita da PF é que
Marielle tenha atrapalhado um projeto de Lei na Câmara Municipal para agilizar
os loteamentos de terra em áreas de milícia, particularmente nas regiões das
Vargens (Grande e Pequena) e Itanhangá.
O autor do projeto de
lei foi justamente Chiquinho Brazão, então vereador em 2018, pouco antes do
assassinato da vereadora.
O relatório da PF
afirma que o ex-policial militar Ronnie Lessa, preso acusado de executar Marielle e seu motorista, Anderson
Gomes, apontou em sua delação "como motivo
[do crime] o fato de a vereadora Marielle Franco estar atrapalhando os
interesses dos Irmãos, em especial, sua atuação junto a comunidades em
Jacarepaguá, em sua maioria dominadas por milícias, onde se concentra relevante
parcela da base eleitoral da família Brazão".
"Ela se opunha
justamente a esse grupo que, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, queria
regularizar terras para usá-las com fins comerciais, enquanto o grupo da
vereadora queria utilizar essas terras para fins sociais, fins de moradia
popular" explicou o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, neste
domingo.
·
Com disputas, violência aumenta
Com o cenário de disputas mais intensas entre
traficantes e milicianos nos sub-bairros de Jacarepaguá a partir de 2021,
índices de violência dispararam: a letalidade violenta, por exemplo,
aumentou de 105 registros em 2021, para 250 casos em 2023. (Veja mais
números abaixo).
Segundo os dados do
Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP), esse indicador inclui:
- Homicídios dolosos (quando há a intenção de matar);
- Lesões corporais seguidas de mortes;
- Mortes por intervenções de agentes do estado;
- Latrocínios (roubo seguido de morte).
Em abril de 2023,
apenas uma rua do bairro do Anil, em Jacarepaguá, já registrava treze homicídios. As
mortes foram resultado dos confrontos na região.
Se há alguns anos as
disputas eram principalmente entre quadrilhas rivais do tráfico, agora
traficantes também passaram a invadir comunidades controladas pela milícia na
região.
Nos últimos 2
anos, pelo menos 14 favelas passaram a ser controladas pelo Comando
Vermelho (CV). O objetivo da expansão do bando na região
é fechar o que o grupo criminoso chama de "cinturão do tráfico" e
estabelecer o "Complexo de Jacarepaguá" na
Zona Oeste do Rio.
Em 2010, quando
Jacarepaguá não estava em guerra, foram registrados 73 casos de letalidade
violenta – um aumento de 340% em 13 anos. No mesmo período, a
população no bairro cresceu cerca de 14%, segundo o IBGE.
O secretário de
Segurança Pública do Rio, Victor Santos, lembrou que, nos anos 2000, grupos
milicianos passaram a atuar com mais força na região da grande Jacarepaguá e
dominar diversos territórios.
O cenário mudou
últimos anos, marcados por disputas entre traficantes e milicianos por regiões
como a Praça Seca e a Gardênia Azul.
Segundo ele, as
investigações da morte de Marielle Franco iniciaram apurações paralelas, que
resultaram em prisões de chefes de milícias importantes
na região, como em Rio das Pedras e Muzema, que também causaram reflexos em
outros pontos de Jacarepaguá e bairros vizinhos.
"Já existia
dominação de territórios, grilagem, tudo isso focado na milícia. Com esse
enfraquecimento, o Comando Vermelho viu uma possibilidade de tomar o
território", avaliou o secretário.
·
Extorsões e pessoas desaparecidas
Ainda de acordo com
dados do ISP, o número de pessoas desaparecidas na região de
Jacarepaguá também teve um aumento nos últimos 2 anos, quando os moradores
viram a guerra se intensificar.
Se, em 2021, foram
registradas 169 pessoas desaparecidas na região do 18° Batalhão da
Polícia Militar (Jacarepaguá), dois anos depois, em 2023, esse número
chegou a 262 casos: uma alta de 55%.
Nos últimos 10 anos,
de 2014 a 2023, foram 1.826 pessoas desaparecidas na região, o que dá
uma média de 182 casos por ano.
Assim como os
milicianos, os traficantes que passaram a dominar as favelas de Jacarepaguá
também abusam do crime de extorsão, quando obrigam o pagamento por
serviços como TV por assinatura, venda de gás e transporte alternativo.
Em 2003, no início da
série histórica do ISP, a região registrou apenas 30 casos de extorsão.
Vinte e um anos depois, em 2023, o ISP contabilizou 256 casos do mesmo
crime. O aumento é de 753%.
As mortes por
intervenção de agente do Estado, o antigo "autos de resistência",
também aumentaram em mais de 200% de um ano para outro na região de
Jacarepaguá: de 27 casos em 2022 para 83 em 2023.
Os roubos de rua (que
incluem roubo de aparelho celular, roubo a transeunte e roubo em coletivo), por
outro lado, diminuíram na região, nesse mesmo período: houve uma queda de
2.526 registros em 2022 para 1.835 em 2023. A diminuição foi de 27,4%.
·
Mapa do crime
Um levantamento feito
pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense
(GENI/UFF) mostrou como o mapa das favelas de Jacarepaguá mudou de
configuração.
Até 2021, apenas uma
das localidades analisadas era dominada pelo Comando Vermelho. Na ocasião, a
facção do tráfico controlava a Cidade de Deus e via os milicianos ocuparem o
restante do território.
O cenário mudou
completamente em 2024. Atualmente, só a Colônia Juliano Moreira e Rio das
Pedras ainda são dominadas pela milícia. Todas as outras localidades
analisadas estão sob as ordens do tráfico.
As comunidades
analisadas fazem parte das seguintes sub-regiões de Jacarepaguá: Vila
Valqueire, Praça Seca, Tanque, Anil, Cidade Deus, Curicica, Gardênia Azul,
Taquara, Freguesia e Pechincha.
·
Narcomilícias
Se os conflitos entre
traficantes e milicianos se tornaram mais frequentes na região, o secretário
Victor Santos lembrou da existência das chamadas narcomilícias, fundadas a
partir de alianças entre esses mesmos grupos para defender territórios e atuar
em conjunto na exploração econômica.
"O tráfico não
está mais focado em venda de drogas. Eles começaram a ver que outras receitas
têm muito mais rentabilidade: cobrar taxa de segurança, água, luz, gás,
mototáxi, van, transporte alternativo de forma geral. Hoje, o território é
disputado por conta dessa capacidade financeira, isso agregado a uma grande
população. Essa região é muito atrativa por conta disso", disse ele.
Segundo o secretário,
a maior incidência de narcomilícias é com a união de traficantes do Terceiro
Comando Puro com milicianos.
"Existe aliança
(da milícia) com o Comando Vermelho? Sim, mas é bem pontual. Em Jacarepaguá
não. TCP e Milícia continuam tendo um inimigo comum, que é o Comando Vermelho
na Região de Jacarepaguá", disse ele.
A coordenadora do
Geni, Carolina Grillo, explicou que o que motiva essas alianças entre TCP e
milícia é a lucratividade dos negócios explorados. Grillo também alertou
sobre alianças eventuais entre milicianos e traficantes do Comando Vermelho:
"O que muda é que
a milícia passa a cobrar pela proteção daqueles territórios contra a polícia.
Quem vai operar a venda de drogas e gerindo a maior parte das atividades
naqueles territórios é o TCP. Como o que está em jogo não é a ética do crime,
mas sim os negócios, essas alianças se tornam possíveis", avaliou.
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Mudanças no combate ao crime
Santos diz que é
preciso repensar o patrulhamento em Jacarepaguá por conta da alta densidade
demográfica e dos problemas no trânsito, que dificultam a passagem das viaturas
da Polícia Militar:
"A gente acredita
que o policiamento ostensivo ali tem que ser com moto. A gente tem boas
práticas no Brasil que a gente pode copiar. Tem no Ceará, em Goiás. A gente
pretende rever exatamente essa questão do policiamento ostensivo, como forma de
prevenir alguns crimes, principalmente invasões, os crimes contra o patrimônio,
que acabam impactando e trazendo mais insegurança para a população",
afirmou o secretário de Segurança.
·
Mais operações em áreas do tráfico
Enquanto mudanças na
dinâmica das ações das autoridades na região são debatidas, dados do Geni/UFF
indicam que as áreas controladas por milicianos foram menos
patrulhadas do que as comunidades do Comando Vermelho, ao longo dos
últimos 13 anos.
O levantamento mostra
que até 2021 a Cidade de Deus, favela controlada pelo tráfico, teve um
número muito maior de operações da polícia, na comparação com todas as outras
comunidades da milícia em Jacarepaguá.
No ano de 2019, antes
do início da expansão do tráfico na região, a Cidade de Deus teve 43
operações, enquanto as favelas localizadas na Praça Seca, área quase toda
controlada pela milícia na época, teve apenas 10 operações das forças de
segurança.
O mesmo acontece
quando analisamos o número de mortes durante operações policiais na região.
Ainda no ano de 2019, 28 pessoas morreram na Cidade de Deus em ações das
forças de segurança. Já na Praça Seca, foram apenas 3 mortes nessas
circunstâncias.
O padrão se repetiu de
2010 a 2021, quando a Cidade de Deus deixou de ser a favela com maior número de
operações da PM. No ano seguinte, o número de ações do estado em outras
comunidades da região cresceu.
“Isso mostra um pouco
para onde está indo o direcionamento do uso da força pelo Estado",
comentou Grillo.
Na opinião de Carolina
Grillo, a região está "hipersaturada" de grupos armados. Para
ela, a expansão das milícias na Zona Oeste criou um cenário de mais conflitos.
Isso ocorreu nos últimos anos.
"Se antes esses
territórios estavam dispersos, a expansão fez com que as fronteiras se
tocassem, com que grupos se tornassem fortes o suficiente para questionar o
poder dos vizinhos", pontuou.
A especialista
relembra o domínio de condomínios do programa "Minha Casa, Minha
Vida" como um fator de expansão do domínio da milícia, e ainda lembra da
atuação imobiliária ilegal comandada por milicianos na região de Jacarepaguá. A
existência de agentes públicos nas fileiras da milícia, segundo ela, facilita a
aprovação de empreendimentos ligados às quadrilhas:
"Na hora de
grilar terras da união, ocupar e construir em um terreno que vai gerar bastante
lucro, o fato de as milícias terem a possibilidade de impedir certas ações de
fiscalização dos órgãos públicos faz com que exista maior segurança no empreendimento
imobiliário", acrescentou a coordenadora.
"Os bairros com
atividade imobiliária mais aquecida eram justamente bairros da Zona Oeste onde
o grupo predominante eram as milícias, contando com investimentos em
infraestrutura ligados aos megaeventos e também ao programa Minha Casa, Minha
Vida", relembrou Grillo.
Fonte: g1
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