A teoria do 'útero errante' que deu origem
ao ultrapassado conceito de histeria
Um animal dentro do
corpo de outro animal. Esta era a descrição do útero feminino na antiguidade.
A frase foi atribuída
a Platão e a Aristeu da Capadócia. Mas ela demonstra a visão da época sobre
aquele órgão e as mulheres.
Especificamente, as
pessoas acreditavam que o útero seria um animal móvel que vagava pelo interior
do corpo. E a mulher não tinha nenhum controle sobre ele: era o "útero
errante".
Esta crença existiu há
mais de 2,4 mil anos, mas o paradigma sobre como o suposto "animal"
afetava o corpo da mulher e
seu modo de ser se manteve por séculos.
O órgão também acabou
vinculado a uma doença que chegou até os divãs do psiquiatra austríaco Sigmund
Freud (1856-1939): a "histeria".
É difícil definir
"histeria" sem cair em simplificações. Mas, nas diferentes correntes
médicas, o termo foi mantido para definir uma doença dos nervos, do desejo, que
rege as emoções e as exacerba.
A histeria era
caracterizada por uma grande variedade de sintomas que, conforme a época,
variavam de estados de abatimento, respiração ofegante, silêncio e até
espasmos. Uma verdadeira colcha de retalhos – e todos os sintomas seriam
provocados pelo útero, seus movimentos e alterações.
Não por acaso, a
origem da palavra "histeria" vem do termo grego "ὑστέρα" ("hystéra", que significa "útero").
·
Do Egito para a Grécia
antiga
A ideia de que o útero
viajaria pelo corpo, afetando outros órgãos, surgiu pela primeira vez no antigo
Egito.
Esta referência está
incluída nos papiros de Kahun, que são considerados os textos médicos
conhecidos mais antigos do Egito (1800 a.C.). Eles são especificamente
dedicados à ginecologia.
E também se encontra
no papiro Ebers, o maior existente,
segundo Mercedes López Pérez, da Universidade de Múrcia, na Espanha, na sua
pesquisa La Transmisión a la Edad Media de la Ciencia Médica Clásica ("A
transmissão para a Idade Média da Ciência Médica Clássica", em tradução livre).
López Pérez menciona
que estes papiros incluem, por exemplo, o caso de uma mulher que se queixa de
dor nos olhos que se estende até a nuca e que não consegue enxergar.
O diagnóstico é que
esses sintomas se devem "às substâncias uterinas que estão nos olhos"
— e o "remédio" é uma fumigação com resina e gordura na vagina.
Mas a expressão
"útero errante" ficou mais conhecida na Grécia antiga.
O eminente filósofo
grego Platão (428 a.C.-347 a.C.), fundador da Academia de Atenas, menciona este
conceito em um dos seus famosos Diálogos, intitulado Timeu.
Platão escreveu que,
nas mulheres, "a matriz e a vulva se parecem com um animal ansioso para
procriar".
E, se ficar muito
tempo sem produzir frutos, o útero (aqui, chamado de matriz) "se irrita e
se encoleriza; fica errante por todo o corpo".
As consequências são
terríveis, segundo a descrição de Platão em Timeu.
"[O útero] fecha
a passagem do ar, impede a respiração, coloca o corpo em extremos perigos e
engendra mil enfermidades; e isso só é remediado quando o homem e a mulher,
reunidos pelo desejo e pelo amor, fazem com que nasça um fruto, que é colhido
como se colhe das árvores."
Platão não retira esta
ideia diretamente dos egípcios, mas dos Tratados Hipocráticos, a
compilação de textos médicos atribuídos a Hipócrates (460 a.C.-370 a.C.), pai
da medicina ocidental, segundo o médico Thomas A. H. MacCullouch no artigo
"Theories of Hysteria" ("Teorias da histeria", em tradução
livre), de 1969, na publicação The Canadian Journal of Psychiatry.
Nos Tratados
Hipocráticos, existe uma seção específica sobre as doenças das mulheres — e
boa parte dela trata do útero e seu "deslocamento".
·
Todos os males
inexplicáveis
É preciso entender
que, embora houvesse dissecações de corpos já no antigo Egito, López Pérez
indica que este procedimento não era comum no tempo de Hipócrates.
Por isso, não se tinha
tanta certeza de como era esse órgão ao qual eram associadas partes de animais,
como ter duas bocas ou olfato. E se acreditava que o seu estado natural fosse
úmido.
A médica Carole
Reeves, do Centro de História da Medicina do University College de Londres,
também destaca na sua palestra Wandering Wombs and Wicked Water – Women's
Complaints and their Treatment ("Úteros errantes e águas malignas – as
queixas das mulheres e seu tratamento", em tradução livre) que esses
documentos precisam ser analisados levando em conta o conhecimento que se tinha
na época e não do ponto de vista contemporâneo.
Segundo os Tratados
Hipocráticos, o útero de uma mulher que não teve relações sexuais "não
tem umidade própria e possui um espaço amplo porque o ventre se esvaziou".
Por isso, ele se desloca por todo o corpo por estar "mais seco e
leve".
No interior do corpo,
o útero seco poderia se mover até o fígado, o coração, as costas ou a garganta.
O resultado era o mesmo.
Ele poderia se
deslocar para qualquer lugar devido a essa leveza. E ali, fora do lugar,
produzia uma série de sintomas.
Se o útero se
deslocasse para o fígado, por exemplo, acreditava-se que ele causaria os
seguintes sintomas: "Asfixia, a parte branca dos olhos se volta para cima,
as mulheres sentem frio e algumas chegam a ficar brancas e a ranger os dentes,
a saliva vem à boa e chegam a parecer possuídas pela doença de Héracles
[epilepsia]. Se a matriz ficar por um tempo ao lado do fígado e dos
hipocôndrios, a mulher se asfixia".
O "útero
errante" era a resposta aos diversos males inexplicáveis de que padeciam
as mulheres.
"Os antigos
gregos também culpavam o órgão feminino de tudo, desde convulsões até a
depressão", afirma Elizabeth Kissling no seu artigo "The Wandering
Uterus" ("O útero errante", em tradução livre), publicado pela
Sociedade de Pesquisa do Ciclo Menstrual, sediada nos Estados Unidos.
"O comportamento
histérico (emoções fora de controle, medos irracionais, conduta descontrolada e
exagerada) foi associado às mulheres e o útero era o epicentro da culpa",
segundo Kissling.
E havia vários
"remédios" para o útero errante.
Como se achava que o
útero teria o sentido do olfato, propunha-se aplicar um odor pestilento onde
ele estivesse mal colocado e, ao mesmo tempo, um odor agradável na vulva. A
ideia era que, atraído pelo bom aroma, ele regressaria para a sua posição
correta.
Outra solução era
irrigar a matriz com sêmen, já que se acreditava que o útero se deslocava por
estar seco e árido. Por isso, a prescrição para as mulheres viúvas era
engravidar e, às solteiras, que se casassem.
A teoria do útero
errante chegou ao célebre médico grego Galeno (129-216).
Embora ele acreditasse
que o útero não perambula pelo corpo, por parecer anatomicamente impossível,
Galeno afirmava que o órgão mudaria de posição, por exemplo, durante a
gravidez.
O médico também
manteve o conceito de histeria como a grande causa das patologias femininas e
suas variações, como a "asfixia uterina".
Os tratamentos de
Galeno para a histeria consistiam de purgas (preparações com ervas) até que a
mulher se casasse ou reprimir os estímulos que pudessem excitar as mulheres
jovens, segundo o artigo científico "Women and Hysteria in the History of
Mental Health" ("Mulheres e histeria na história da saúde
mental", em tradução livre), publicado na Biblioteca Nacional de Medicina
dos Estados Unidos.
·
A mesma história
durante séculos
A noção de que a
histeria seria um mal causado pelo útero e, consequentemente, uma doença
exclusiva das mulheres durou por muito tempo.
Durante a Idade Média,
essa doença chegou a ser chamada de "furor uterino" ou "mal de
amor", o que irá se repetir ao longo do Renascimento.
O diagnóstico de
histeria, loucura ou estados emocionais instáveis nas mulheres permaneceu, por
exemplo, na Inglaterra vitoriana (1837-1901).
Popularmente, havia a
crença de que seria possível tratar a histeria com estimulação elétrica na
vulva. Mas as teorias médicas do século 19 consideravam que os orgasmos
poderiam ser perigosos.
"Acreditava-se
que a masturbação nas mulheres causava histeria e não que as curava",
segundo a professora e pesquisadora Kate Lister, da Universidade de Leeds
Trinity, no Reino Unido, no seu livro A Curious Story of Sex ("Uma
curiosa história do sexo", em tradução livre).
Havia também
tratamentos radicais. Elizabeth Kissling explica que "se pensava que a
histerectomia — a extirpação total ou parcial do útero — curava a instabilidade
emocional, além de uma série de outros sintomas não relacionados".
·
Até que chegou Briquet
O médico e psicólogo
francês Paul Briquet (1796-1881) instaurou um novo paradigma: talvez, a
histeria não tivesse nada a ver com o útero.
"O
desenvolvimento da neurologia fez com que a concepção do paciente 'nervoso'
fosse observada com uma base mais respeitável e científica", defende
Thomas A. H. MacCullouch, "e houve uma mudança de ênfase no útero para
passar ao sistema nervoso".
No seu livro Traité
Clinique et Thérapeutique de l'Hystérie ("Tratado clínico e
terapêutico da histeria", em tradução livre), Briquet trata dessa condição
como "neurose do encéfalo", não relacionada com a atividade sexual.
O médico também
começou a refletir sobre a necessidade de alterar o nome da condição, o que só
aconteceria um século depois.
A partir dali, a
próxima mudança importante foi não só desvincular a histeria do útero, mas
eliminar a ideia de que seria uma doença essencialmente feminina.
Para isso, foi
fundamental a contribuição do neurologista francês e professor de anatomia
patológica Jean-Martin Charcot (1825-1893).
Charcot não
diferenciava as doenças neurológicas de homens e mulheres. Para ele, a histeria
seria de origem neuronal, de forma que ele se dispôs a estudá-la em pacientes
de ambos os sexos.
Até o ano da sua morte
(1893), Charcot publicou mais de 60 casos de histeria masculina atendidos por
ele. É quando chegamos ao famoso médico e psicólogo Sigmund Freud, que foi
discípulo de Charcot.
Freud dedicou maior
importância ao aspecto psicológico da doença e procurou se aprofundar em um
conceito que já havia sido adotado por Charcot: o de trauma.
Com isso, a histeria
passou a ser vista como uma doença de origem psicológica, causada por traumas —
muito frequentemente, de natureza sexual.
Segundo a psicanálise,
o sintoma histérico é a expressão da impossibilidade de realização do impulso
sexual, como mencionam Cecilia Tasca, Mariangela Rapetti, Mauro Giovanni Carta
e Bianca Fadda, autores do artigo científico intitulado "Women and Hysteria
in the History of Mental Health" ("Mulheres e histeria na história da
saúde mental", em tradução livre).
Embora já se houvesse
avançado para desvincular a histeria da mulher, Freud centralizou seu estudo
principalmente em mulheres e registrou apenas um caso masculino — que, por
sinal, passou despercebido.
·
Da histeria para o
transtorno de conversão
A palavra
"histeria", presente há dois milênios nos tratados de medicina, só
foi excluída do Manual de Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais da
Associação Americana de Psiquiatria (APA, na sigla em inglês) na metade do
século 20.
O artigo "Women
and Hysteria in the History of Mental Health" indica que o conceito de
"neurose histérica" foi eliminado em 1980 e que "os sintomas
histéricos agora são considerados uma manifestação de transtornos dissociativos".
O Dicionário da Real
Academia Espanhola (RAE) definia a histeria como uma "enfermidade nervosa,
crônica, mais frequente na mulher que no homem". A RAE alterou esta
definição em 2017.
Vale ressaltar que, em
português, o Dicionário Caldas Aulete mencionava, já na década de 1970, que a
palavra "histeria" vem do grego "hystera" (útero) porque
"se supunha que esta doença era somente feminina e tinha a sua sede no útero".
Fonte: BBC News Mundo
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