O trilema de Lessing na América Latina e
por que 'não se pode reduzir narcotráfico, corrupção e violência juntos’
Se um político
prometer que irá lutar contra o narcotráfico, a corrupção e a violência, uma
boa ideia é perguntar se ele poderá fazer tudo isso de uma vez.
O acadêmico chileno
Andreas Feldmann, que estuda temas relacionados à criminalidade e à violência,
acredita que a realidade latino-americana confirma
o argumento do seu colega norte-americano Benjamin Lessing. Ele defende que é
impossível atacar os três problemas simultaneamente.
Segundo este
"trilema", a repressão ao tráfico de drogas causa
aumento do preço dos subornos, o que incentiva a corrupção dos funcionários públicos. Por outro lado, se lutarmos contra a corrupção, os
narcotraficantes podem intensificar a violência para manter os seus negócios.
Feldmann é professor
de ciência política e estudos latino-americanos da Universidade de Illinois em
Chicago, nos Estados Unidos.
"Você precisa
escolher entre um e outro", explicou ele em entrevista à BBC News Mundo, o
serviço em espanhol da BBC. "E este é um grande problema."
Para ele, existe na
região "uma convergência para sociedades mais empobrecidas e mais
violentas, em que os criminosos adquiriram maior protagonismo."
Confira abaixo os
principais pontos da entrevista telefônica com Andreas Feldmann, que escreveu,
com o politólogo Juan Pablo Luna, o livro Política Criminal y
Desarrollo Fallido en la América Latina Contemporánea ("Política
criminal e desenvolvimento fracassado na América Latina contemporânea", em
tradução livre), publicado em 2023.
·
Até que ponto as
gangues do narcotráfico e do crime organizado se tornaram uma ameaça para os
Estados latino-americanos?
Andreas
Feldmann: É inquestionável que elas se tornaram um
problema muito grave, do ponto de vista da segurança, da economia informal e do
grau de penetração.
Infelizmente, observo
certa convergência, no sentido de que elas adquirem protagonismo e graus de
sofisticação cada vez maiores.
É um problema
regional. Até países que tinham níveis de segurança relativamente aceitáveis,
como o Chile, Uruguai ou Costa Rica, observaram um grande aumento dos índices
de homicídio e criminalidade.
Existe um padrão
bastante preocupante, embora haja diferentes nuances. Alguns países conseguiram
reduzir um pouco os índices de violência, mas isso não significa que o crime
propriamente dito tenha diminuído.
·
Era algo previsível ou
tomou de surpresa os países da região?
Feldmann: Acredito que seja um padrão de longa data. Uma das coisas
que tomaram a nós, pesquisadores, um pouco de surpresa foi essa dinâmica na
qual as novas democracias dos anos 1990 começaram a ser muito mais violentas do
que pensávamos.
A ideia era que,
depois do fim de tantas ditaduras que, geralmente, promoviam grandes níveis de
violência e repressão, iríamos observar um aumento considerável dos índices de
segurança e redução da violência.
Mas, muito pelo
contrário, o que presenciamos foi o aumento da violência, democracias muito
violentas. Isso, sim, nos pegou de surpresa.
Este fenômeno tem duas
décadas. E, quando observamos a trajetória de muitos países, vemos uma
convergência para sociedades mais violentas e empobrecidas, em que os
criminosos adquiriram maior protagonismo.
A capacidade
coercitiva dos Estados se deteriorou. A polícia e até o exército, depois de
destacados, não têm capacidade de controlar o problema.
É muito preocupante.
·
Seu livro alerta que a
influência da indústria do narcotráfico "é muito mais ampla do que
geralmente se pensa". Por quê?
Feldmann: Porque nós vemos a questão do narcotráfico, do crime
organizado e das indústrias ilícitas mais como um problema de desenvolvimento.
Não consideramos necessariamente que seja um problema de criminalidade.
À medida que diversas
atividades econômicas são realizadas na esfera ilícita ou informal, o Estado
não consegue adotar um modelo de desenvolvimento mais vigoroso, que incorpore
as pessoas e dê condições de maior igualdade.
·
Vocês se referem a
grandes organizações no estilo dos cartéis, gangues e grupos menores ou grupos
de microtráfico?
Feldmann: Geralmente, falamos de grandes organizações. O que acontece é
que, muitas vezes, elas delegam seu modelo de negócio a organizações menores.
O mais problemático é
que existem vias de comunicação entre as entidades e os Estados. É o que
chamamos de "política criminal", a sobreposição entre os criminosos,
os políticos e os agentes do Estado, como juízes e policiais, cada um buscando
realizar seus próprios planos e objetivos.
Na região, uma parte
da política segue esse quadro, o que representa um desvio do ideal de Max
Weber, segundo o qual os Estados agem de acordo com a lei...
BBC: E têm
"o monopólio do uso legítimo da violência", algo que também é
perdido...
Feldmann: É perdido, evidentemente. Você vê o caso do México, onde não
sabemos exatamente quem foi responsável por muitos desaparecimentos: se o
Estado, os criminosos ou até se eles são parte de uma operação conjunta.
Já vimos isso no caso
colombiano e em muitos outros.
Essa sobreposição está
aumentando cada vez mais, o que prejudica as capacidades do Estado, desmotiva
os agentes estatais e aumenta a complexidade da agenda política.
·
Qual foi a influência
da pandemia de covid-19 nessa deterioração da segurança pública da América
Latina em geral?
Feldmann: Muito grande. Observo o tema da migração e o efeito da pandemia
foi desolador.
Ela empurrou milhões
de pessoas para a informalidade e aumentou o nível de poder das organizações
sobre essa população informal: existe maior capacidade de recrutamento.
E, à medida que o
Estado se debilita, esses grupos vão aumentando seu poder.
Com a hecatombe que
vive a Venezuela, milhões de pessoas se deslocam através da América Latina. O
Trem de Aragua [facção criminosa venezuelana] vê essa situação como uma
oportunidade para desenvolver seu modelo de negócio.
E o Clã do Golfo
[organização colombiana] gerou milhões de dólares com o trânsito de pessoas da
Colômbia para o Panamá.
Geralmente, as
condições de empobrecimento e debilitação estatal trazem como consequência o
fortalecimento de muitas organizações que possuem mais capacidade de adaptação
do que os Estados.
·
Neste contexto, muitos
latino-americanos veem a mão forte de Bukele [presidente de El Salvador] e sua
guerra contra as gangues como modelo a ser copiado. E ganha força, em países da
região, a ideia de envolver os militares na luta contra o narcotráfico. Uma
pesquisa recente no Chile concluiu que 89% da população concordam em permitir
essa colaboração militar. Quais são os motivos?
Feldmann: É um reflexo do desespero das pessoas.
O caso de El Salvador
é muito expressivo. As pessoas chegaram ao ponto de apoiar essas medidas
draconianas do governo de Bukele, até quando eles próprios têm familiares
presos.
É um pouco de
"pão agora e fome amanhã", porque as mesmas pessoas que estão felizes
porque os índices de homicídio de El Salvador baixaram podem ser expostas a
outros tipos de problemas.
Tomamos conhecimento
de uma situação que está ocorrendo em El Salvador, por exemplo, de que a
própria polícia está extorquindo os cidadãos.
Ela os chama e diz:
"Vamos fazer uma batida na sua casa, mas estamos dispostos a desistir se
você nos der uma pequena quantia."
Estamos trocando um
problema pelo outro, porque a corrupção basicamente não foi erradicada na
polícia salvadorenha, mas ela recebeu total poder. Isso pode ser profundamente
perigoso.
Não existem soluções
de curto prazo e, politicamente, é muito complexo, pois as autoridades precisam
mostrar que estão fazendo alguma coisa. E esse clamor da opinião pública por
algum tipo de medida de efeito se opõe, muitas vezes, às medidas de médio e longo
prazo, que podem ser mais eficazes.
É preciso falar a
verdade aos cidadãos, dizer que este é um problema complexo que exige grandes
acordos nacionais, enorme maturidade política, concessões de todos os setores
políticos e o trabalho conjunto da polícia, do judiciário, da sociedade civil e
dos políticos.
Só o que observamos é
a culpa sendo jogada de um governo para outro, com o problema ficando muito
maior.
·
A tendência do uso dos
militares no combate ao narcotráfico também é um sinal de que os Estados
perderam o rumo na guerra contra as drogas?
Feldmann: Não necessariamente. O que os Estados estão tentando fazer é
aumentar sua capacidade coercitiva, já que o aparato policial não é suficiente.
O problema é que,
muitas vezes, os militares também não têm condição de fazê-lo, pois é um tema
de segurança, ordem e é preciso ter alto nível de inteligência.
Será que o exército
equatoriano, que não consegue sequer pagar os salários, está capacitado para
combater organizações imensamente sofisticadas? Estão colocando o exército em
uma situação insustentável.
O México é um caso
muito específico. O Estado destacou as forças armadas e não foi capaz de
resolver o problema.
Não sabemos o que
teria acontecido no México se as Forças Armadas não fossem convocadas. Mas
sabemos que essa convocação aumentou os níveis de violência.
Isso tem a ver com a
estratégia adotada. Não é algo intrinsecamente ruim. É ruim quando se faz de
forma apressada, sem planejamento e sem oferecer às Forças Armadas a capacidade
de levar a cabo um trabalho para qual elas não são treinadas.
·
O livro também
destaca, examinando estudos de outros acadêmicos, como Benjamin Lessing, que os
políticos enfrentam um "trilema" no combate à criminalidade. Como
assim?
Feldmann: O trilema é que, no fundo, os políticos precisam escolher
entre corrupção, violência e criminalidade. Não é possível eliminar estes três
elementos ao mesmo tempo.
Muitas vezes, os
políticos enfrentam grandes problemas para avançar simultaneamente nesses
campos, pois, frequentemente, um dos elementos desse triângulo não pode ser
combatido. É o que Lessing demonstrou de forma muito fidedigna. E,
politicamente falando, é muito forte.
·
Ou seja, os países da
América Latina precisam inexoravelmente optar por uma escalada da violência, do
narcotráfico ou da corrupção?
Feldmann: Exatamente, este é o argumento de Lessing e a realidade
deu razão a ele.
Você não pode eliminar
as entidades criminosas dedicadas ao narcotráfico, reduzir a corrupção e
diminuir a violência, simultaneamente. É impossível. Você precisa escolher um
ou outro. E este é um grande problema.
Estive lendo uma
reportagem da BBC News Mundo sobre as dificuldades do governo de Gustavo Petro
[presidente da Colômbia] para negociar com o Clã do Golfo. E, como menciona a
pesquisadora, os colombianos entenderam que a única forma de reduzir a
influência das organizações criminais é pela negociação.
Mas, do ponto de vista
político, isso traz uma imagem imensamente ruim e difícil de transparecer.
·
Isso também ajudaria a
explicar, por exemplo, por que a Argentina tem índices de homicídio e violência
per capita menores do que outros países da região?
Feldmann: Parece que sim.
A polícia argentina de
forma geral, exceto no caso de Rosário, mas sobretudo na região metropolitana
de Buenos Aires, teve basicamente a capacidade de regular isso de forma muito
inteligente, com grandes níveis de maleabilidade.
Basicamente, os
agentes estatais argentinos, que detêm o monopólio da coerção, negociam com os
agentes criminosos e oferecem graus de independência para fazer seus negócios,
em troca de redução dos níveis de violência.
Ocorre que este
equilíbrio é frágil e precário. Até agora, a Argentina conseguiu manter essas
condições, o que não significa que isso irá continuar no futuro.
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O livro também fala em
benefícios que os políticos podem obter com a ação do crime organizado nos seus
territórios. A que vocês se referem?
Feldmann: Se você for o prefeito de uma comunidade muito empobrecida, os
recursos que esse tipo de organização oferece são importantes, porque irão
gerar trabalho e um pouco de estabilidade.
O que as autoridades
não querem é a violência, que chame a atenção. Desde que seja algo discreto,
elas estão dispostas a olhar para o outro lado.
·
Com tudo isso, em
termos informais, alguém pode pensar em uma espécie de grande
"cambalacho" na América Latina, com a integração entre os interesses
dos políticos e dos criminosos e da economia legal com a ilegal...
Feldmann: Esta é a questão. Em todas as sociedades acontece algo
deste tipo.
O que estamos
observando na América Latina é que a proporção da economia ilegal e informal
sobre o total da economia é muito maior.
A área em que a
política criminal intervém possui envergadura muitíssimo maior. Por isso,
defendemos que este é definitivamente um problema de desenvolvimento.
·
O livro destaca que a
política antidrogas está há décadas no topo da agenda entre a América Latina e
os Estados Unidos, que "impôs sua visão específica" sobre o
narcotráfico. E recorda que, em 2020, um grupo de ex-presidentes da região
pediu mudanças da estratégia da "guerra às drogas", que era
considerada fracassada. Existe algum sinal de que essa mudança possa ocorrer?
Feldmann: Não. A
verdade é que os Estados Unidos operam com enormes níveis de inércia frente a
este assunto.
Não existe uma
estratégia clara e eles próprios enfrentam grandes dificuldades para abordar o
problema. Não vejo maiores fatores que levem a mudanças.
No livro, nós nos concentramos
no narcotráfico. Mas existem muitos outros tipos de economia ilegal presentes
na região.
Essas organizações
estão diversificando seus negócios e se tornando cada vez mais complexas e
sofisticadas, de forma que o narcotráfico é apenas um elemento.
O fato é que é preciso
observar como funcionam nossas sociedades e nossa economia. A droga é
importante porque gera grandes lucros. Mas existe uma série de outras
indústrias ilícitas. E não se pode culpar os Estados Unidos por isso.
O desmatamento da Amazônia e a
mineração ilegal no Peru são problemas domésticos. Precisamos nos olhar no
espelho e dizer que os fatores condicionantes dos nossos próprios países estão
gerando incentivos perversos para o envolvimento dessas organizações.
Fonte: BBC News Mundo
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