ENCONTRADO UM CNPJ PARALELO DA CAMPANHA DE
BOLSONARO CRIADO COM E-MAIL DE MAURO CID
O E-MAIL DO
EX-AJUDANTE de ordens da Presidência da República, o tenente-coronel Mauro Cid,
foi usado para criar um CNPJ extra-oficial, em nome de um laranja, para a
campanha à reeleição de Jair Bolsonaro. A empresa foi fundada em maio de 2022
em Blumenau, interior de Santa Catarina, e não foi declarada ao Tribunal
Superior Eleitoral.
A razão social
“Eleição SC 2022 Jair Messias Bolsonaro Presidente Ltda” foi registrada com o
e-mail mauro.cio@presidencia.gov.br. Seu único sócio é um homem chamado Rene
Moacir Teodoro, morador de Itajaí, também em Santa Catarina.
Teodoro morreu pouco
depois da eleição, em 18 de dezembro. No atestado de óbito, a causa é descrita
como parada respiratória por obstrução das vias aéreas. O Intercept Brasil
entrou em contato com dois familiares. Segundo eles, Teodoro faleceu durante uma
refeição, possivelmente engasgado comendo carne. “O Samu veio, mas não
conseguiu reanimar com os procedimentos”, me disse um de seus irmãos.
Segundo a família,
Teodoro tinha deficiência intelectual e nenhuma relação com o então presidente
Jair Bolsonaro ou mesmo com militantes bolsonaristas. “Ele odiava política”,
reiterou um de seus irmãos.
O e-mail
mauro.cio@presidencia.gov.br, grafado desta forma, erroneamente, é o mesmo
utilizado no CNPJ oficial usado na campanha eleitoral de Bolsonaro.
O CNPJ paralelo ficou
ativo por três meses, de 12 de maio até 11 de agosto de 2022. A empresa foi
fechada exatamente um dia depois do CNPJ oficial ser validado pelo Tribunal
Superior Eleitoral.
A Receita Federal
determina que todos os candidatos e partidos políticos devem ter um CNPJ. É
pelo cadastro que é feita a abertura de conta bancária com a finalidade de
receber doações e recursos próprios. O CNPJ também é necessário para receber os
recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha.
Só após a apresentação
do registro de candidatura à Justiça Eleitoral é que a Receita atribui, de
forma automática, um número de CNPJ ao candidato.
No caso de Bolsonaro,
o CNPJ oficial da campanha foi registrado em 10 agosto de 2022 em Brasília. Os
dados utilizados no cadastro são os mesmos informados pelo candidato à Justiça
Eleitoral. Lá consta o e-mail mauro.cio@presidencia.gov.br.
Um dos advogados de
Bolsonaro, Paulo da Cunha Bueno, respondeu ao contato do Intercept sobre o
assunto. Por meio de mensagem, afirmou simplesmente: “Desconheço essa
história”. Depois, disse que iria “tentar apurar”. Mas não retornou. Outro
assessor do ex-presidente, Fábio Wajngarten, visualizou uma mensagem enviada
pela reportagem, mas não respondeu. O advogado de Mauro Cid, Cézar Bittencourt,
não respondeu aos questionamentos.
• Laranja foi agredido por agiota e vivia
com benefícios do governo
Nos dados da Receita
Federal, Rene Moacir Teodoro aparece como único dono de seis empresas – a maior
parte, comércios atacadistas. Mas, nos endereços cadastrados, em cidades do
interior de Santa Catarina, não existem atividades comerciais.
Teodoro sobrevivia com
benefícios do governo federal. Segundo a família, desde 2015, seu nome era
usado por golpistas para criação de empresas fictícias. “Em 2015, ele entrou no
INSS e, de lá pra cá, começaram a aparecer empresas e dívidas”, disse um irmão.
O vazamento de dados
do INSS é comum no Brasil. Em fevereiro, o órgão chegou a ser condenado pela
Autoridade Nacional de Proteção de Dados por não comunicar vazamento de CPFs,
dados bancários e data de nascimento de pensionistas, informações que podem ser
usadas em fraudes e em roubo de identidade.
Segundo seus
familiares, Teodoro também estava envolvido com dívidas. “Meses antes de
morrer, um agiota agrediu ele. E feio. Essa gente está envolvida nessa
falcatrua, com certeza”, me disse um dos seus irmãos.
Uma consulta feita à
base de dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional demonstra que, somente
em dívidas tributárias com a União, Teodoro tinha débitos superiores a R$ 1,4
milhão – o que demonstra a dimensão das atividades financeiras da quadrilha que
estava usando ilegalmente seus dados.
• Dados de cadastro são informados pelos
sócios e administradores, diz prefeitura
O Intercept consultou
a Prefeitura de Blumenau para verificar se a administração municipal checa a
autenticidade dos e-mails informados para a abertura de empresas no município.
Por meio de uma resposta por e-mail, a gestão respondeu simplesmente que “não”.
Dois contadores
consultados pelo Intercept confirmaram que as informações de contato são de
responsabilidade dos sócios e administradores.
“Você pode informar
qualquer e-mail e telefone no cadastro. No entanto, é bastante recomendável que
seja criado um e-mail próprio para a empresa. Se não optar por criar, a prática
correta é informar o e-mail de um dos sócios ou do contador se ele autorizar”,
disse um contador após a reportagem apresentar o caso.
Uma servidora da Praça
do Empreender, divisão da prefeitura que atua no tema, disse, por meio de uma
ligação telefônica, que empresas como a de Teodoro devem ser abertas por meio
de um contador com registro profissional.
Na Junta Comercial de
Santa Catarina, o nome fantasia que consta na inscrição estadual da empresa com
o nome da campanha de Bolsonaro – e que não aparece na base de dados federal –
é Líderes Despachantes.
No dia 29 de agosto de
2022, um contador chamado Paulo Ricardo de Andrade Silva criou uma outra
empresa com o nome fantasia de Líderes Despachantes também em Blumenau. Mas não
conseguimos contato com nenhuma dessas empresas.
• ‘Fatos são gravíssimos e precisam de
apuração urgente’
O Intercept apresentou
os documentos e informações ao advogado Martim de Assis Arantes, que tem ampla
experiência com Direito Eleitoral, tendo atuado em diversas campanhas nos
últimos anos. Segundo ele, os fatos são “absolutamente estranhos” e “é urgente
que sejam esclarecidos e que haja uma investigação aprofundada pelos órgãos
competentes”.
“Há uma série de
situações equivocadas, irregulares e ilegais que podem ter ocorrido. O primeiro
passo é entender quem usou a empresa, e se a pessoa estava ligada ao então
presidente, ao seu partido ou à sua equipe. Ou, então, se foi utilizada por um
terceiro agindo de má-fé em nome do presidente para obter recursos – o que
também configura como um crime, só que não ligado a Bolsonaro. Mas, caso tenha
sido utilizado para fazer arrecadação irregular, há um problema grave”, afirmou
Arantes.
O advogado apontou que
“as campanhas têm prazo para fazer a captação de doações e o fechamento da
empresa se deu antes do início do prazo”. Mais que isso, de acordo com Arantes,
“toda arrecadação precisa ser feita por meio de conta oficial para que seja usada
exclusivamente na campanha. Mesmo que estivesse no prazo, se a doação é feita
em outra conta, é ilegal”.
• E-mail funcional usado para registrar
CNPJ eleitoral é violação
Em setembro de 2022,
revelei que o e-mail funcional mauro.cio@presidencia.gov.br foi usado para o
registro do CNPJ da campanha de Bolsonaro. Na época, Cid era ajudante de ordens
da Presidência da República e, segundo têm demonstrado as investigações da Polícia
Federal, era o principal assessor do então chefe do Executivo.
Na ocasião, advogados
e especialistas em Direito Eleitoral me disseram que o fato demonstra que
servidores e serviços custeados pelo governo não estavam sendo usados com a
finalidade prevista nas normas dos órgãos a que pertenciam.
“Naturalmente, o CNPJ
da campanha deve estar vinculado ao candidato ou ao seu partido. Não me parece
minimamente aceitável que ele esteja cadastrado em um e-mail institucional da
Presidência”, afirmou Fernando Neisser, fundador da Academia Brasileira de Direito
Eleitoral.
O site da
Procuradoria-Geral Eleitoral, do Ministério Público Federal, aponta uma série
de condutas vedadas pela legislação eleitoral que podem se enquadrar no caso.
Entre as proibições, está o uso de “materiais ou serviços, custeados pelo
governo, que não sejam para finalidade prevista nas normas dos órgãos a que
pertençam”.
Outras condutas
proibidas são a utilização de “servidor ou empregado do governo, de qualquer
esfera, para trabalhar em comitês de campanha durante o expediente, exceto se o
funcionário estiver licenciado” e “fazer propaganda para candidato com
distribuição gratuita de bens ou serviços custeados pelo poder público”.
• Mauro Cid não deixou rastros em seu
e-mail
O endereço de e-mail
utilizado por Mauro Cid no governo era, de fato, mauro.cid@presidencia.gov.br,
e não mauro.cio@presidencia.gov.br. Não fica claro, no entanto, por que o CNPJ
usado na campanha oficial de Bolsonaro traz a conta com a grafia errada. Muito
menos porque o mesmo e-mail foi utilizado para criar o CNPJ paralelo.
Em julho do ano
passado, o Intercept revelou que Mauro Cid esvaziou sua caixa de e-mail
institucional antes de deixar o Palácio do Planalto.
Alvo de pedido de
quebra de sigilo telemático pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do 8
de Janeiro, Mauro Cid não deixou rastros na conta mauro.cid@presidencia.gov.br
– pelo menos no período entre a derrota de Bolsonaro nas urnas, em outubro de 2022,
e a posse de Lula, em janeiro de 2023.
A informação foi
obtida por meio da Lei de Acesso à Informação, depois que registramos diversas
solicitações à Presidência da República para acessar os dados do e-mail de Cid.
Uma das respostas do Planalto revelou que o ex-ajudante de ordens pode ter apagado
os registros de sua comunicação pela conta de e-mail institucional.
Em agosto do ano
passado, uma planilha entregue à CPI do 8 de janeiro pela Casa Civil mostrou
que Cid tentou acessar seu e-mail funcional 99 vezes mesmo após o governo Lula
bloquear seu login, em 15 de março de 2023. Antes de ser bloqueado, Cid acessou
seu e-mail cerca de 500 vezes já durante o novo governo.
Segundo um documento
enviado pela Casa Civil, depois de 31 de dezembro do ano passado, “constam
registros de validação das credenciais do agente público mencionado na
requisição [Mauro Cid], realizadas por meio dos servidores de rede que
disponibilizam o acesso via internet ao serviço de correio eletrônico”.
Fonte: Por Paulo
Motoryn, em The Intercept
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