Piauí autoriza 10 fazendas a desmatarem 4
vezes área de Paris em um ano
ENTRE 2022 E 2023, o
estado do Piauí autorizou o desmatamento de 78,6 mil hectares de vegetação
nativa. Para apenas dez propriedades, as autorizações somaram 42,9 mil
hectares, o equivalente a quatro vezes a área de Paris. Das 99 autorizações
concedidas no período, 59 foram para propriedades localizadas no Cerrado, onde
o desmatamento atingiu níveis recordes no ano passado.
“Se o Brasil quer
efetivamente diminuir as suas emissões, não podemos mais fazer essa divisão de
desmatamento legal e ilegal. Todo o desmatamento é desmatamento e está
impactando a floresta, os povos indígenas e a biodiversidade”, pontua João
Gonçalves, diretor sênior da organização Mighty Earth no Brasil. Na última
quinta (14), a ONG publicou um relatório sobre
como o desmatamento recente de quase 60 mil hectares no Cerrado e Amazônia está
ligado à produção de soja e às cadeias de fornecimento de multinacionais do
setor.
Em 2023, a perda de
vegetação nativa no bioma somou 7.828 km² (782.800 hectares), número 43%
superior ao ano anterior, segundo dados divulgados em janeiro pelo
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). No mesmo período, o
desmatamento na Amazônia teve redução de 50%. Pela primeira vez, o desmate no
Cerrado foi superior ao do bioma amazônico.
O desmatamento é a
principal contribuição brasileira para o aquecimento global. Em 2022, as
mudanças de uso da terra responderam por 48% das emissões brutas de gás
carbônico equivalente (métrica usada para comparar as emissões de diferentes
gases de efeito estufa), de acordo com cálculos do Observatório do Clima.
O Ministério do Meio
Ambiente (MMA) estima que 50% da devastação do Cerrado tenha ocorrido com autorização, mas não há um levantamento preciso dessa proporção. Devido à
falta de transparência dos estados e ao compartilhamento incompleto de
informações entre órgãos estaduais e o governo federal, nem o próprio MMA sabe,
com exatidão, qual é o total de autorizações para desmate emitidas Brasil
afora.
Em resposta à
reportagem, a SEMARH-PI (Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do
Piauí) afirmou que todos os pedidos de autorizações são analisados pelos
auditores fiscais ambientais do órgão, seguindo critérios como regularidade do
imóvel e avaliação de proposta de reposição florestal ao que se pretende
suprimir. Também afirmou que o Piauí só contribui com 0,95% do CO2 emitido pelo
Brasil e que investe na recuperação de áreas degradadas.
<<<< 7,8
mil campos de futebol desmatados
As maiores
autorizações foram emitidas para produtores de soja, milho, algodão e gado da
região de expansão agrícola conhecida como Matopiba, formada por áreas
majoritariamente de cerrado nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e
Bahia.
Na cidade de Baixa
Grande do Ribeiro, quatro autorizações permitiram o desmatamento de 22,7 mil
hectares. O município é o segundo maior do Piauí, com área
de 7,8 mil km² (ou 780 mil hectares). Projeções do Ministério da Agricultura e
Pecuária (Mapa) apontam que a produção agrícola do município deverá crescer 31,7% nos próximos 10 anos.
Localizada em Baixa
Grande do Ribeiro, a Fazenda Emaflor é detentora da maior autorização para
desmate concedida no Piauí durante os últimos dois anos. Em setembro de 2023, a
propriedade, que pertence à Emaflor Empreendimentos Rurais e Participações e é administrada
pelo Grupo AZN, obteve o sinal verde
para desmatar 7,8 mil hectares em seu interior.
O Grupo AZN tem como
sócio Alzir Pimentel Aguiar Neto, produtor de soja do Piauí e vice-presidente
da Associação
Brasileira dos Produtores de Soja no estado (Aprosoja-PI).
O próprio Alzir Neto também garantiu uma autorização para a supressão de 4,8
mil hectares de Cerrado na área ao lado da Fazenda Emaflor. O objetivo do
desmatamento, segundo relatório apresentado à SEMARH-PI, é criar uma nova propriedade, destinada à criação de
bovinos.
A Fazenda Emaflor é
fornecedora de soja da Bunge, segundo dados de notas fiscais acessados
pela Repórter Brasil. Na safra 2022/2023, o grão colhido na propriedade
foi enviado para a unidade da multinacional em Uruçuí (PI).
A companhia americana
assumiu um compromisso público de “desmatamento zero” em suas cadeias
produtivas a partir de 2025. Em resposta à reportagem, a Bunge reafirmou o seu
compromisso e disse que realiza o monitoramento dos seus fornecedores de soja
para identificar aberturas de novas áreas. “Após a data estabelecida por nossa
política, fazendas que plantarem soja em áreas recentemente abertas serão
automaticamente excluídas da cadeia de fornecimento”, afirmou. Leia o
posicionamento completo da companhia aqui.
A Repórter
Brasil também tentou contato com o produtor Alzir Neto, com o Grupo AZN e
com a Emaflor Empreendimentos Rurais e Participações, mas não obteve resposta
até o fechamento desta reportagem.
Dos silos da Bunge
espalhados pelo Matopiba, a soja brasileira alcança o mundo. Em 2023, os principais clientes da multinacional estavam localizados na França, Alemanha e Espanha. A
Espanha também é o segundo
maior importador da soja produzida no Piauí,
atrás apenas da China.
·
Nova barreira comercial não protege Cerrado
As exportações
brasileiras de soja, gado, óleo de palma, café, madeira, borracha e cacau
associadas ao desmate recente de matas nativas estão prestes a receber novas
barreiras comerciais. Em dezembro de 2024 entra em vigor na União Europeia
uma nova lei que impede a importação de produtos oriundos de áreas
desmatadas após 31 de dezembro de 2020 – sem diferenciar se o desmatamento
ocorreu de forma legal ou ilegal.
A legislação, no
entanto, não inclui áreas consideradas “não-florestais”, segundo o conceito da
Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Com
isso, 73% do Cerrado fica fora do escopo da lei, estima um estudo do Observatório do Clima.
A lei europeia faz
parte da estratégia do bloco de se tornar neutro em emissões de gases de efeito
estufa até 2050. Mas para Ana Carolina Crisostomo, especialista em Conservação
e líder da estratégia de Conversão Zero do WWF Brasil, a decisão de excluir o
Cerrado da nova lei ignora que a maior parte das emissões brasileiras
“importadas” pelo bloco estão associadas ao desmatamento e à produção de grãos
concentrados no bioma. “Excluir o Cerrado é tentar ‘dar um jeitinho’ de não
resolver o problema mais grave e mais difícil”, resume.
“Estamos em campanha
para que na revisão do regulamento, que vai acontecer este ano, sejam incluídas
essas outras áreas florestais”, ressalta João Gonçalves, da Mighty Earth. “No
Brasil, temos o Cerrado, o Pantanal, mas também temos o Chaco, o Pampa e outras
áreas no Oeste Asiático e na África que ficaram de fora do escopo”.
Para além da nova lei
europeia, outros acordos comerciais já em vigor são mais amplos em barrar a
produção associada ao desmatamento. O principal exemplo é a Moratória da Soja,
iniciativa voluntária encampada pelas maiores compradoras globais de grãos e
que prevê o boicote à soja plantada em áreas desmatadas após 2008 na Amazônia.
A expansão de um acordo similar para o Cerrado é defendida há anos por
organizações da sociedade civil, mas a ideia não avançou por falta de apoio do
setor produtivo. Há muita área passível de desmatamento autorizado no Cerrado.
Em termos de lucro, não vale a pena olhar para esse bioma. Só [começa a valer a
pena] quando chega uma legislação como a da União Europeia, que chega impondo
isso para as grandes tradings”, avalia Ana Carolina Crisostomo, do WWF-Brasil.
·
Bioma menos protegido
Enquanto que a área de
reserva legal em fazendas do bioma amazônico deve ser de 80% do total da
propriedade, segundo o Código Florestal Brasileiro,
no Cerrado esse percentual cai para 20%, com exceção das propriedades do
Cerrado localizadas em estados da Amazônia Legal. Nesse caso, o percentual é
35%.
“O Cerrado sempre foi
visto como um bioma menos relevante, inicialmente por uma falta de compreensão
da complexidade do bioma, da sua biodiversidade. Há também um senso comum de
que não tem nada ali, que é uma região que deve ser destinada à produção de commodities”,
pontua Crisostomo, do WWF-Brasil. A especialista afirma que, além da legislação
menos protetiva ao Cerrado, há um “descontrole das emissões das Autorizações de
Supressão de Vegetação”.
Fonte: Reporter Brasil
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