Ninguém é só 'evangélico': quem
instrumentaliza a fé para fazer política só ganha com essa simplificação
NO COMEÇO de março,
jornais de todo o país repetiram a mesma notícia: a queda da popularidade do
presidente Lula entre evangélicos. Quais evangélicos? Desde os anos 2010,
quando as chamadas “pautas morais” ganharam mais centralidade nas campanhas
eleitorais, os institutos de pesquisa passaram a enfatizar os dados de votação
por religião. O tema também passou a ser considerado uma variável importante
nas pesquisas de avaliação do governo federal.
Só que, no que se
tornou prática no jornalismo e entre analistas do contexto sociopolítico,
parece que apenas dois grandes blocos importam no tema “religião” no país: o
dos “católicos”, religiosidade diversa e múltipla, e o dos “evangélicos”. Essa
última inclui uma vasta gama de cristãos não identificados com o catolicismo –
que, até bem pouco tempo atrás, era considerado a religião natural dos
brasileiros, inclusive dos não religiosos, como no caso do católico não
praticante.
A noção de
“evangélicos” nasce, portanto, como uma categoria de diferenciação ao
catolicismo então dominante. Já o interesse público pelo segmento cresceu na
mesma medida em que ele passou a ocupar espaços de destaque além da política,
no qual já atuava desde os anos 1980, mas também na cultura, educação,
assistência social e mercado de bens e serviços.
Assim, embaixo desse
grande guarda-chuva chamado genericamente de “os evangélicos”, foram incluídas,
de forma homogeneizante, diversas denominações e diferentes modos de se viver.
Pesquisadores da religião, vinculados às ciências humanas e sociais, vêm, há
muito tempo, apontando para a necessidade de se considerar “os evangélicos”
como um bloco múltiplo e heterogêneo, composto por pessoas de diferentes
denominações, que seguem teologias e práticas completamente distintas.
O IBGE já
diferenciava, no Censo de 2000, igrejas evangélicas de missão, pentecostais e
outras evangélicas. Em 2010, incluiu a categoria “evangélica não-determinada”,
levando em conta fiéis que não são vinculados formalmente a uma igreja. Mas as
diferenças estão além das instituições.
O modo de ser
protestante, por exemplo, é ancorado no princípio da livre interpretação da
Bíblia – o chamado denominacionalismo. Isto proporcionou um mosaico de grupos e tendências atrelados
ao agrupamento identitário que se convencionou chamar “evangélicos”.
Hoje, diversas
expressões da religiosidade evangélica estão espalhadas Brasil afora, apesar do
destaque para as de matriz pentecostal. Várias igrejas são marcadas por homogeneizações estéticas,
rituais e discursivas, promovidas especialmente pela explosão da ocupação
evangélica nas mídias. É o caso, por exemplo, de gigantes como a Igreja
Universal do Reino de Deus, algumas vertentes da Assembleia de Deus, Renascer
em Cristo e Sara a Nossa Terra, entre outras pentecostais, uma diversidade de
grupos da corrente batista, denominações independentes criadas a partir de
divisões internas de igrejas históricas ou pentecostais, para ficar em alguns exemplos.
Outras se configuram
por vivências e práticas relacionadas com a ocupação geográfica dos grupos,
sobretudo em territórios periféricos, e nem sempre se vinculam a grandes
igrejas. Isso sem contar os evangélicos que não frequentam igrejas específicas,
mas que vivem sua fé de outras formas, isto é, assistindo pregações e orações
das rádios ao YouTube, passando pela televisão e Instagram.
É necessário
considerar a religião como um marcador social da diferença, como raça, classe,
gênero.
Não por acaso, do sul
ao norte do Brasil há evangélicos que votaram em Lula, por exemplo, e eles
estão localizados majoritariamente nos extratos mais negros e pobres da
população. Também são esses que costumam avaliar mais positivamente o atual
governo, sobretudo quando levamos em conta a dimensão de gênero. E isso não nos
impede de reconhecer que, sim, o segmento evangélico avalia, sim, o governo
Lula de forma mais negativa. Mas será que a religião explica tudo?
Para responder a essa
pergunta de forma séria, é necessário – agora, mais do que nunca – considerar a
religião como um marcador social da diferença, como raça, classe, gênero e
tantos outros que ajudam a organizar e explicar a vida social. E este é um ponto
que não pode mais ser ignorado em nossas análises.
No Brasil, ter uma
religião não é trivial. Ela ajuda a organizar redes de relação, as dinâmicas
territoriais de violência, as relações de gênero e as relações raciais, para
citar apenas alguns exemplos. Essa realidade, vale dizer, faz com que pessoas
diferentes, de origens e experiências diferentes, tenham experiências distintas
a partir de sua religiosidade evangélica. Por que, então, análises não investem
no cruzamento dos dados sobre religião com outros que compõem o universo
religioso, como gênero, renda e raça?
• Ninguém se autodenomina ‘neopentecostal’
O isolamento da
variável religião para pensar a vida social também tem gerado uma segunda
confusão muito comum. A referência aos termos “neopentecostal” e
“neopentecostalismo”, não raramente associados à uma Teologia do Domínio, para
se referir, de forma muito genérica, a igrejas que apoiam posições
fundamentalistas e extremistas, é um forte exemplo disso.
Neopentecostalismo é
uma categoria sociológica, cunhada nos anos 1990 pelo sociólogo Ricardo
Mariano, para designar um segmento do movimento pentecostal que, naquele
momento histórico, se diferenciava dos anteriores – os denominados clássicos ou
históricos por alguns pesquisadores.
Há evangélicos que
votaram em Lula. Eles estão localizados majoritariamente nos extratos mais
negros e pobres da população.
Entre as
características do “novo pentecostalismo” estavam a ocupação intensa das mídias
e a assimilação da cultura midiática em rituais e discursos, ancorados em
teologias como a da prosperidade e da guerra espiritual, e a centralidade das
práticas de cura e de exorcismo. A Igreja Universal do Reino de Deus, por
exemplo, era a maior representante dessa categoria.
Na prática,
entretanto, os membros de denominações evangélicas não atribuem sentido e não
reconhecem essas categorias sociológicas. Ninguém se autodenomina
“neopentecostal”.
O termo acaba sendo
usado apenas de forma pejorativa por aqueles que querem simplificar o debate e
enquadrar membros de igrejas – que têm
gênero, classe e raça –, e lideranças religiosas – que também têm gênero, raça
e classe – em explicações convincentes e conspiratórias de situações que não
conseguem (ou não se esforçam por) compreender.
• Simplificação oculta o papel de outras
igrejas evangélicas no alinhamento à extrema direita
Passados quase 50 anos
do surgimento das igrejas classificadas como neopentecostais, o campo religioso
mudou. É comum que muitas das práticas inicialmente atribuídas às igrejas
neopentecostais tenham se disseminado, sido incorporadas ou até mesmo ressignificadas
por outras igrejas e grupos religiosos.
Principalmente aquelas
avaliadas como produtoras de resultados positivos – como ocupação de mídias, a
participação na política institucional,
ampliação do número de membros, aumento de arrecadação financeira e de
patrimônio, por exemplo – , que movimentam poder político em espaços públicos
institucionais.
Essa simplificação do
debate – ou seja, considerar apenas os dados sobre religião ou atribuir ao
neopentecostalismo a maior adesão da população a pautas conservadoras – ajuda a
ocultar o papel das igrejas evangélicas históricas no atual alinhamento à extrema
direita. Alinhamento, vale dizer, que também ocorreu na ditadura militar.
Da mesma forma, oculta
também o papel de segmentos católicos que continuam fomentando posições
extremistas nas igrejas, nas ações de assistência, nas escolas, nas
universidades e em suas mídias – dos canais de televisão aos perfis em redes
sociais.
Além disso, as
tentativas de construção dessa imagem de um Brasil univocamente cristão serve a
grandes lideranças midiáticas e políticas dispostas a impor a minorias
políticas suas moralidades cristãs seletivas e suas ideologias intolerantes e
segregativas.
Enquanto isso, na
mídia, o imaginário construído nas últimas três décadas em torno de uma ideia
unificante – “os evangélicos” – é uma
criação que reflete tentativas de compreensão de uma expressão de fé que até
outro dia era desconhecida e considerada irrelevante – apesar de estar no país há mais de 100
anos.
É preciso qualificar
os números.
É urgente e necessário
reconhecer que tal homogeneização não só não reflete a realidade, como é nociva
ao debate público. Como indicamos aqui, ninguém é “evangélico” igual. Ninguém é
só “evangélico”.
É por isso que
pesquisadores e analistas responsáveis hoje falam em pentecostalismos, no
plural, para enfatizar um movimento religioso marcado por múltiplas vivências e
teologias.
Institutos de pesquisa
e analistas precisam levar em conta essa realidade e fazer cruzamentos com
marcadores sociais como raça, gênero e renda, para qualificar os dados sobre
religião. Esta prática ocorre nos Estados Unidos, por exemplo, e aprofunda os debates
de temas de interesse público. Diversas pesquisas acadêmicas nas Ciências
Humanas e Sociais também chamam atenção para as diferenças de comportamento de
um ou outro segmento religioso quando se leva em conta outras variáveis.
Nas análises dos dados
sobre religião na cena pública, é preciso qualificar os números. Caso
contrário, as pesquisas e os usos que se fazem dela desviarão o caminho da
reflexão. E quem instrumentaliza a fé para fazer política só ganha com esse
desvio.
Fonte: Por Lívia Reis
e Magali Cunha, em The Intercept
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