quinta-feira, 28 de março de 2024

Caso de irmãos superdotados da Bahia expõe luta por atendimento adequado

“Eu não queria que meus meninos fossem diferentes do que são. Eu queria que o Brasil fosse diferente”. O desabafo é de Alysson Camilo Floriano da Silva, juiz de direito, morador da cidade de Ihéus, no sul da Bahia, que há cerca de dois anos descobriu que os dois filhos, Pedro Antônio, que atualmente tem nove anos de idade, e Maria Rita, com sete, são superdotados. Os dois, inclusive, fazem parte da seccional brasileira da Mensa, uma sociedade de alto QI que reúne indivíduos com habilidades cognitivas excepcionais em todo o mundo.

O lamento de Alysson pode destoar da forma como a superdotação é idealizada de maneira simplista por grande parte das pessoas, no entanto, pais de crianças com altas habilidades - como a superdotação também pode ser caracterizada-, psicólogos e advogados especializados no assunto convergem no discurso: o Brasil trata mal essas crianças e, sem a identificação precoce e o acompanhamento adequado, um potencial futuro de transtornos de saúde mental os aguarda.

O juiz conta que ele e a esposa, a promotora de Justiça Mayanna Ferreira Ribeiro Floriano, começaram a perceber que os filhos eram diferentes quando os pequenos tinham entre três e quatro anos. “Tinham e têm interesses por assuntos que não fazem parte do mundo das crianças: História, Filosofia, Línguas, Física, Matemática”, explica Alysson, que revela que os filhos aprenderam a ler sozinhos, entre os três e quatro anos. “Não foi na escola. É impressionante, parece uma coisa de outro mundo”, completa.

Segundo Alysson, ele e a esposa achavam o comportamento das crianças muito interessante, porém não imaginavam que eles eram superdotados. Quem levantou a questão foi uma médica. “Ela conversando com os dois, chamou a atenção logo para Pedro Antônio. Ela disse: ‘seu filho tem todo o traço de criança superdotada’”, falou.

A partir daí, conta Alysson, o passo seguinte foi buscar um psicólogo especialista em superdotação. “Depois de conversar com muita gente, optamos por levá-los a São Paulo. Marcamos a avaliação, e primeiro levamos Pedro Antônio, no início do ano passado. Ele foi avaliado e comentamos de Maria Rita, e ele disse para levar também, o que fizemos em agosto do ano passado”, conta.

O resultado: ambos foram considerados superdotados pelo especialista. A partir daí, Alysson e a esposa adentraram um mundo até então desconhecido.

·        Luta por atendimento de qualidade

“As pessoas acham que o superdotado são aquelas crianças que ganham prêmio em programa de televisão. Aquele nível que se vê na TV ocorre depois de muito estudo e treinamento. Acham que nasce já sabendo construir um avião mas, na verdade, a característica da superdotação é a alta capacidade de aprender. Ele não adivinha nada. O autodidatismo também é encontrado em várias crianças superdotadas. Elas vão procurar, estudar”, explica.

Com essa maturidade cognitiva exacerbada, os problemas aparecem especialmente onde imaginava-se ser o porto seguro dessas crianças: a escola. “A educação de superdotados é um problema no Brasil”, afirma Damião Silva, psicólogo e um dos maiores especialistas em superdotação da América Latina.

“Apesar de existir uma política pública para atendê-los, as pessoas pouco sabem sobre o assunto, então não existe formação adequada nos municípios, nos estados, poucos especialistas no Brasil. Além disso, existe o mito de que as crianças vão dar conta sozinhas do ambiente escolar, o que torna tudo muito difícil e acaba impactando na saúde emocional dessas pessoas. Ou seja: a escola despreparada, o superdotado querendo aprender - eles aprendem de maneira diferente, eles aprendem mais rápido, tem uma intensidade ali nos interesses -, mas não chega ali o que eles precisam para incentivar, para adubar essa condição”, explica.

Damião, que também é superdotado, foi o especialista que identificou a condição nos filhos de Alysson. Ele afirma que, sem um acompanhamento adequado, o desenvolvimento emocional dessas pessoas é impactado sobremaneira.

“Até no desenvolvimento de transtornos de saúde mental, como depressão, ansiedade generalizada, síndrome do pânico… Em alguns casos, é muito comum acontecer é a recusa escolar, a famosa fobia escolar. Eles não se adequam ao ambiente e acabam tendo fobia dentro desse espaço, o que vai acarretar em tratamentos psicológicos e psiquiátricos, às vezes até com medicação. Então, nossos superdotados estão hoje sofrendo no Brasil. Em qualquer estado brasileiro, não temos o atendimento adequado, são poucos os recursos que o Estado provê para essas pessoas, e isso também ocorre nos equipamentos privados”, diz o especialista.

O pai de Pedro Antônio e Maria Rita conta que está vivenciando isso no dia a dia. “Com Pedro Antônio, hoje, a maior dificuldade é conseguirmos mantê-lo na sala de aula”, fala Alysson.

“O maior problema é a falta de capacidade dos profissionais para lidar com essas crianças, e então a escola se torna o pior lugar do mundo para elas. Já houve muitas evoluções, mas ainda há muito o que se fazer. Nas universidades de licenciatura, pedagogia, etc, não há disciplina ou nada que prepare os futuros profissionais para o aluno superdotado. Para se ter uma ideia, só em 2013 foi que a legislação brasileira passou a tratar desse assunto”, destaca.

“Ano passado, tivemos uma espécie de encontro, congresso, em Brasília, sobre a superdotação e muitos meninos foram lá falar. Quando você ouve os depoimentos dessas crianças na escola, você chora. Porque as instituições não conseguem cumprir a legislação”, completa.

Segundo o advogado e professor universitário Denner Pereira da Silva, especialista no direito dos superdotados, essas pessoas têm, por lei, direito a uma série de medidas para atenuar os problemas durante o período educacional, desde o ensino infantil até o superior.

“Destaca-se a possibilidade de um plano educacional individualizado, com ações e estratégias pensadas para potencializar o aprendizado desse estudante, para que ele se sinta motivado a frequentar a instituição de ensino. Há também o direito de que esse plano individualizado seja feito por um professor qualificado em ‘educação especial’", explica o especialista. 

Além disso, Denner afirma que "no ensino regular, há possibilidade de elaborar uma sala de recursos, no contraturno, para que possam ser trabalhados conteúdos mais aprofundados que não cabem durante a aula regular".

"Por fim, existe o direito de aceleração de série que, quando recomendado por psicólogo ou pedagogo especializado, tende a corrigir a distorção ‘série-idade’ e respeitar o desenvolvimento assíncrono da pessoa superdotada. Todos esses direitos têm origem na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e se estendem a todo território nacional, da escola pública à particular e, no caso desta última, sem que seja cobrado valores adicionais”, destaca o advogado.

A aceleração de série, inclusive, foi uma das medidas que Alysson conseguiu para ajudar seus filhos. Pedro Antônio, que pela idade estaria no quarto ano, está no sexto; enquanto Maria Rita, que normalmente estaria no segundo ano, está no quarto.

“Os dois foram acelerados dois anos, e vamos solicitar uma nova aceleração. Nossa previsão é de que, no caso de Pedro Antônio, ele conclua o Ensino Médio aos 14 anos", fala Alysson.

Ele revela que a luta para garantir um bom acompanhamento para os filhos é árdua. “Em um ano e meio, eu envelheci uns cinco anos. Eu participei de diversas reuniões com a escola nesse período”, afirma o juiz, que conseguiu que o filho tivesse aulas de Física na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).

“Desde o ano passado, ele assiste aula na universidade. Ele queria entrar na universidade desde os oito anos. Ele tem como se fosse uma aula particular. Ele não é matriculado, nem poderia. Os professores, uma vez por semana, se revezam para debater física com ele, de forma voluntária e com toda boa vontade. Um menino de oito anos conversando com pós-doutores em Física… Agora, o que uma aula regular de 6º ano numa escola pode oferecer para uma criança assim? Nada!”, exclama.

O pai de Pedro Antônio e Maria Rita destaca, no entanto, que houve esforços da escola dos meninos para tentar adequar o currículo e atender às necessidades deles, mas que, ainda assim, as ações foram insuficientes.

Ainda segundo Alysson, os dois filhos têm consciência que são diferentes. Ele diz que o menino verbaliza mais as insatisfações, inclusive tendo já se retirado de uma sala de aula de um curso de inglês, aos gritos, insatisfeito com a profundidade do que estava sendo ensinado. “Ele é muito sensível, ele explode rápido… Hoje é que entendemos alguns dos comportamentos”, fala.

“Quanto maior o QI, maior o distanciamento e dificuldade de socialização, e isso acontece pela não identificação de pares cognitivos, crianças que tenham a mesma capacidade de raciocínio. Então minha menina, por exemplo, que já foi acelerada dois anos, todas as amigas dela, mesmo antes de ingressar na sala onde está, são mais velhas, porque ela mesma procura. É uma dificuldade se relacionar com crianças da mesma idade”, conta.

·        Cenário desolador

Para o psicólogo Damião Silva, o cenário é desolador em todo o país. Há pouco conhecimento sobre a condição, pouca quantidade de alunos identificados na rede de ensino, além de um atendimento bastante ineficaz.

“As escolas negam os direitos dessas pessoas. Elas têm direito a um plano de educação individualizado, que é o básico de atendimento; direito a sala de recursos, de atendimento especializado no contraturno, e isso não é garantido para essas pessoas. É um direito para que isso corrobore para o desenvolvimento afetivo, emocional, cognitivo e social de maneira adequada. O cenário é desolador, então precisamos de políticas públicas e investimento na formação de professores, para que se atenda de maneira adequada”, declara.

Para ele, é preciso também olhar urgentemente para a formação dos professores. “Não tendo o atendimento adequado, essas pessoas continuam à margem, continuam sendo invisibilizadas, são invisíveis ao sistema educacional, à sociedade, o que acarreta prejuízos pessoais e prejuízos também para a sociedade. Os superdotados estando bem atendidos podem gerar melhores condições para todos - a inteligência move a vida. Eles fazem a gente chegar em um lugar onde a gente não está hoje”, acrescenta.

Para além da baixa qualidade do atendimento, Damião destaca também que o processo de identificação dessas pessoas é muito aquém do ideal e que muitos sequer sabem que são superdotados, o que gera uma série de problemas na fase adulta

“A maioria fica tentando resgatar uma história que poderia ter sido diferente se tivesse sido atendido ou se tivesse sido identificado ali na infância. Como não foi, eles estão batalhando pela própria existência hoje, no sentido de se conhecerem, de entender quais são suas potencialidades, de fugir das cobranças por grandes realizações, enfim, estão aí patinando”, diz.

Ainda segundo Damião, outro fator que contribui para o terrível cenário é o fato de haver um número extremamente baixo de profissionais especializados para a identificação dos superdotados, tanto psicólogos, neuropsicólogos, psicopedagogos, neuropsicopedagogos e até médicos de entrada da rede de apoio, como pediatras, neuropediatras.

“Essas pessoas não estão sendo identificadas na primeira infância e na adolescência, e acabam sendo identificadas de forma tardia na vida adulta, já com grande impacto, já com um sofrimento mental mais agudo”, conclui.

O Portal A TARDE entrou em contato com o Ministério da Educação (MEC), para saber quais ações da pasta têm como público alvo os alunos com superdotação. Através de nota, a assessoria de comunicação do ministério informou que “os estudantes com superdotação/altas habilidades fazem parte do público da Educação Especial e tem sido contemplado pelas políticas e programas do MEC voltadas à garantia da escolarização desse público na escola comum".

Disse ainda que o MEC dispõe de material que objetiva contribuir para a articulação entre a educação comum e a educação especial, tendo em vista a promoção de práticas educacionais inclusivas para alunos com altas habilidades/superdotação.

O MEC ainda destacou que, por meio da Rede Nacional de Formação Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica Pública (RENAFOR), são oferecidos cursos cuja ementa prevê a discussão da temática superdotação/altas habilidades.

“Por exemplo, no ano de 2023, foram ofertadas 650 vagas, pela Universidade Federal de Uberlândia, do curso ‘Práticas educacionais inclusivas para estudantes com altas habilidades/superdotação no contexto do Atendimento Educacional Especializado (AEE)’ e 500 vagas, pela Universidade de Brasília, do curso ‘Atendimento Educacional em Altas Habilidades/Superdotação’”, relatou a pasta.

A nota também destaca que o MEC, por meio da Diretoria de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (DIPEPI/SECADI/MEC), está em constante diálogo com pesquisadores, representantes de organizações e as próprias pessoas com altas habilidades/superdotação, de modo a planejar ações que possam contribuir com a escolarização desses estudantes.

 

Fonte: A Tarde

 

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