Caso de irmãos superdotados da Bahia expõe
luta por atendimento adequado
“Eu não queria que
meus meninos fossem diferentes do que são. Eu queria que o Brasil fosse
diferente”. O desabafo é de Alysson Camilo Floriano da Silva, juiz de direito,
morador da cidade de Ihéus, no sul da Bahia, que há cerca de dois anos
descobriu que os dois filhos, Pedro Antônio, que atualmente tem nove anos de
idade, e Maria Rita, com sete, são superdotados. Os dois, inclusive, fazem
parte da seccional brasileira da Mensa, uma sociedade de alto QI que reúne
indivíduos com habilidades cognitivas excepcionais em todo o mundo.
O lamento de Alysson
pode destoar da forma como a superdotação é idealizada de maneira simplista por
grande parte das pessoas, no entanto, pais de crianças com altas habilidades -
como a superdotação também pode ser caracterizada-, psicólogos e advogados
especializados no assunto convergem no discurso: o Brasil trata mal essas
crianças e, sem a identificação precoce e o acompanhamento adequado, um
potencial futuro de transtornos de saúde mental os aguarda.
O juiz conta que ele e
a esposa, a promotora de Justiça Mayanna Ferreira Ribeiro Floriano, começaram a
perceber que os filhos eram diferentes quando os pequenos tinham entre três e
quatro anos. “Tinham e têm interesses por assuntos que não fazem parte do mundo
das crianças: História, Filosofia, Línguas, Física, Matemática”, explica
Alysson, que revela que os filhos aprenderam a ler sozinhos, entre os três e
quatro anos. “Não foi na escola. É impressionante, parece uma coisa de outro
mundo”, completa.
Segundo Alysson, ele e
a esposa achavam o comportamento das crianças muito interessante, porém não
imaginavam que eles eram superdotados. Quem levantou a questão foi uma médica.
“Ela conversando com os dois, chamou a atenção logo para Pedro Antônio. Ela disse:
‘seu filho tem todo o traço de criança superdotada’”, falou.
A partir daí, conta
Alysson, o passo seguinte foi buscar um psicólogo especialista em superdotação.
“Depois de conversar com muita gente, optamos por levá-los a São Paulo.
Marcamos a avaliação, e primeiro levamos Pedro Antônio, no início do ano
passado. Ele foi avaliado e comentamos de Maria Rita, e ele disse para levar
também, o que fizemos em agosto do ano passado”, conta.
O resultado: ambos
foram considerados superdotados pelo especialista. A partir daí, Alysson e a
esposa adentraram um mundo até então desconhecido.
·
Luta por atendimento de qualidade
“As pessoas acham que
o superdotado são aquelas crianças que ganham prêmio em programa de televisão.
Aquele nível que se vê na TV ocorre depois de muito estudo e treinamento. Acham
que nasce já sabendo construir um avião mas, na verdade, a característica da
superdotação é a alta capacidade de aprender. Ele não adivinha nada. O
autodidatismo também é encontrado em várias crianças superdotadas. Elas vão
procurar, estudar”, explica.
Com essa maturidade
cognitiva exacerbada, os problemas aparecem especialmente onde imaginava-se ser
o porto seguro dessas crianças: a escola. “A educação de superdotados é um
problema no Brasil”, afirma Damião Silva, psicólogo e um dos maiores especialistas
em superdotação da América Latina.
“Apesar de existir uma
política pública para atendê-los, as pessoas pouco sabem sobre o assunto, então
não existe formação adequada nos municípios, nos estados, poucos especialistas
no Brasil. Além disso, existe o mito de que as crianças vão dar conta sozinhas
do ambiente escolar, o que torna tudo muito difícil e acaba impactando na saúde
emocional dessas pessoas. Ou seja: a escola despreparada, o superdotado
querendo aprender - eles aprendem de maneira diferente, eles aprendem mais
rápido, tem uma intensidade ali nos interesses -, mas não chega ali o que eles
precisam para incentivar, para adubar essa condição”, explica.
Damião, que também é
superdotado, foi o especialista que identificou a condição nos filhos de
Alysson. Ele afirma que, sem um acompanhamento adequado, o desenvolvimento
emocional dessas pessoas é impactado sobremaneira.
“Até no
desenvolvimento de transtornos de saúde mental, como depressão, ansiedade
generalizada, síndrome do pânico… Em alguns casos, é muito comum acontecer é a
recusa escolar, a famosa fobia escolar. Eles não se adequam ao ambiente e
acabam tendo fobia dentro desse espaço, o que vai acarretar em tratamentos
psicológicos e psiquiátricos, às vezes até com medicação. Então, nossos
superdotados estão hoje sofrendo no Brasil. Em qualquer estado brasileiro, não
temos o atendimento adequado, são poucos os recursos que o Estado provê para
essas pessoas, e isso também ocorre nos equipamentos privados”, diz o
especialista.
O pai de Pedro Antônio
e Maria Rita conta que está vivenciando isso no dia a dia. “Com Pedro Antônio,
hoje, a maior dificuldade é conseguirmos mantê-lo na sala de aula”, fala
Alysson.
“O maior problema é a
falta de capacidade dos profissionais para lidar com essas crianças, e então a
escola se torna o pior lugar do mundo para elas. Já houve muitas evoluções, mas
ainda há muito o que se fazer. Nas universidades de licenciatura, pedagogia,
etc, não há disciplina ou nada que prepare os futuros profissionais para o
aluno superdotado. Para se ter uma ideia, só em 2013 foi que a legislação
brasileira passou a tratar desse assunto”, destaca.
“Ano passado, tivemos
uma espécie de encontro, congresso, em Brasília, sobre a superdotação e muitos
meninos foram lá falar. Quando você ouve os depoimentos dessas crianças na
escola, você chora. Porque as instituições não conseguem cumprir a legislação”,
completa.
Segundo o advogado e
professor universitário Denner Pereira da Silva, especialista no direito dos
superdotados, essas pessoas têm, por lei, direito a uma série de medidas para
atenuar os problemas durante o período educacional, desde o ensino infantil até
o superior.
“Destaca-se a
possibilidade de um plano educacional individualizado, com ações e estratégias
pensadas para potencializar o aprendizado desse estudante, para que ele se
sinta motivado a frequentar a instituição de ensino. Há também o direito de que
esse plano individualizado seja feito por um professor qualificado em ‘educação
especial’", explica o especialista.
Além disso, Denner
afirma que "no ensino regular, há possibilidade de elaborar uma sala de
recursos, no contraturno, para que possam ser trabalhados conteúdos mais
aprofundados que não cabem durante a aula regular".
"Por fim, existe
o direito de aceleração de série que, quando recomendado por psicólogo ou
pedagogo especializado, tende a corrigir a distorção ‘série-idade’ e respeitar
o desenvolvimento assíncrono da pessoa superdotada. Todos esses direitos têm origem
na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e se estendem a todo
território nacional, da escola pública à particular e, no caso desta última,
sem que seja cobrado valores adicionais”, destaca o advogado.
A aceleração de série,
inclusive, foi uma das medidas que Alysson conseguiu para ajudar seus filhos.
Pedro Antônio, que pela idade estaria no quarto ano, está no sexto; enquanto
Maria Rita, que normalmente estaria no segundo ano, está no quarto.
“Os dois foram
acelerados dois anos, e vamos solicitar uma nova aceleração. Nossa previsão é
de que, no caso de Pedro Antônio, ele conclua o Ensino Médio aos 14 anos",
fala Alysson.
Ele revela que a luta
para garantir um bom acompanhamento para os filhos é árdua. “Em um ano e meio,
eu envelheci uns cinco anos. Eu participei de diversas reuniões com a escola
nesse período”, afirma o juiz, que conseguiu que o filho tivesse aulas de Física
na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).
“Desde o ano passado,
ele assiste aula na universidade. Ele queria entrar na universidade desde os
oito anos. Ele tem como se fosse uma aula particular. Ele não é matriculado,
nem poderia. Os professores, uma vez por semana, se revezam para debater física
com ele, de forma voluntária e com toda boa vontade. Um menino de oito anos
conversando com pós-doutores em Física… Agora, o que uma aula regular de 6º ano
numa escola pode oferecer para uma criança assim? Nada!”, exclama.
O pai de Pedro Antônio
e Maria Rita destaca, no entanto, que houve esforços da escola dos meninos para
tentar adequar o currículo e atender às necessidades deles, mas que, ainda
assim, as ações foram insuficientes.
Ainda segundo Alysson,
os dois filhos têm consciência que são diferentes. Ele diz que o menino
verbaliza mais as insatisfações, inclusive tendo já se retirado de uma sala de
aula de um curso de inglês, aos gritos, insatisfeito com a profundidade do que
estava sendo ensinado. “Ele é muito sensível, ele explode rápido… Hoje é que
entendemos alguns dos comportamentos”, fala.
“Quanto maior o QI,
maior o distanciamento e dificuldade de socialização, e isso acontece pela não
identificação de pares cognitivos, crianças que tenham a mesma capacidade de
raciocínio. Então minha menina, por exemplo, que já foi acelerada dois anos, todas
as amigas dela, mesmo antes de ingressar na sala onde está, são mais velhas,
porque ela mesma procura. É uma dificuldade se relacionar com crianças da mesma
idade”, conta.
·
Cenário desolador
Para o psicólogo
Damião Silva, o cenário é desolador em todo o país. Há pouco conhecimento sobre
a condição, pouca quantidade de alunos identificados na rede de ensino, além de
um atendimento bastante ineficaz.
“As escolas negam os
direitos dessas pessoas. Elas têm direito a um plano de educação
individualizado, que é o básico de atendimento; direito a sala de recursos, de
atendimento especializado no contraturno, e isso não é garantido para essas
pessoas. É um direito para que isso corrobore para o desenvolvimento afetivo,
emocional, cognitivo e social de maneira adequada. O cenário é desolador, então
precisamos de políticas públicas e investimento na formação de professores,
para que se atenda de maneira adequada”, declara.
Para ele, é preciso
também olhar urgentemente para a formação dos professores. “Não tendo o
atendimento adequado, essas pessoas continuam à margem, continuam sendo
invisibilizadas, são invisíveis ao sistema educacional, à sociedade, o que
acarreta prejuízos pessoais e prejuízos também para a sociedade. Os
superdotados estando bem atendidos podem gerar melhores condições para todos -
a inteligência move a vida. Eles fazem a gente chegar em um lugar onde a gente
não está hoje”, acrescenta.
Para além da baixa
qualidade do atendimento, Damião destaca também que o processo de identificação
dessas pessoas é muito aquém do ideal e que muitos sequer sabem que são
superdotados, o que gera uma série de problemas na fase adulta
“A maioria fica
tentando resgatar uma história que poderia ter sido diferente se tivesse sido
atendido ou se tivesse sido identificado ali na infância. Como não foi, eles
estão batalhando pela própria existência hoje, no sentido de se conhecerem, de
entender quais são suas potencialidades, de fugir das cobranças por grandes
realizações, enfim, estão aí patinando”, diz.
Ainda segundo Damião,
outro fator que contribui para o terrível cenário é o fato de haver um número
extremamente baixo de profissionais especializados para a identificação dos
superdotados, tanto psicólogos, neuropsicólogos, psicopedagogos, neuropsicopedagogos
e até médicos de entrada da rede de apoio, como pediatras, neuropediatras.
“Essas pessoas não
estão sendo identificadas na primeira infância e na adolescência, e acabam
sendo identificadas de forma tardia na vida adulta, já com grande impacto, já
com um sofrimento mental mais agudo”, conclui.
O Portal A
TARDE entrou em contato com o Ministério da Educação (MEC), para saber
quais ações da pasta têm como público alvo os alunos com superdotação. Através
de nota, a assessoria de comunicação do ministério informou que “os estudantes
com superdotação/altas habilidades fazem parte do público da Educação Especial
e tem sido contemplado pelas políticas e programas do MEC voltadas à garantia
da escolarização desse público na escola comum".
Disse ainda que o MEC
dispõe de material que objetiva contribuir para a articulação entre a educação
comum e a educação especial, tendo em vista a promoção de práticas educacionais
inclusivas para alunos com altas habilidades/superdotação.
O MEC ainda destacou
que, por meio da Rede Nacional de Formação Continuada dos Profissionais do
Magistério da Educação Básica Pública (RENAFOR), são oferecidos cursos cuja
ementa prevê a discussão da temática superdotação/altas habilidades.
“Por exemplo, no ano
de 2023, foram ofertadas 650 vagas, pela Universidade Federal de Uberlândia, do
curso ‘Práticas educacionais inclusivas para estudantes com altas
habilidades/superdotação no contexto do Atendimento Educacional Especializado
(AEE)’ e 500 vagas, pela Universidade de Brasília, do curso ‘Atendimento
Educacional em Altas Habilidades/Superdotação’”, relatou a pasta.
A nota também destaca
que o MEC, por meio da Diretoria de Educação Especial na Perspectiva da
Educação Inclusiva (DIPEPI/SECADI/MEC), está em constante diálogo com
pesquisadores, representantes de organizações e as próprias pessoas com altas
habilidades/superdotação, de modo a planejar ações que possam contribuir com a
escolarização desses estudantes.
Fonte: A Tarde
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