RS teve 40% dos decretos de situação de
emergência relacionados à chuva em 2023 no país
O Rio Grande do Sul,
que vem sendo afetado por uma sequência de eventos climáticos extremos, foi o
estado com o maior número de decretos de situação de emergência e de calamidade
pública relacionados à chuva no ano passado no Brasil.
Um levantamento
da Agência Pública feito com base em dados obtidos por meio da Lei de
Acesso à Informação (LAI) contabilizou que, ao longo do ano passado, o governo
federal reconheceu, em todo o país, decretos do tipo 1.073 vezes; 433 deles foram
em municípios gaúchos, cerca de 40% do total. No período, pelo menos 71 pessoas
morreram em decorrência dos temporais no estado.
Os números registrados
em 2023 foram os mais altos nos últimos dez anos – série histórica analisada
pela reportagem – tanto para o Brasil quanto para o Rio Grande do Sul. No país,
o recorde anterior era de 2022, quando ocorreram 883 reconhecimentos relacionados
às chuvas (146 deles em Santa Catarina, a maior fatia – 16,5% do total). O
número de 2023, portanto, foi 21,5% maior que no ano anterior. A média entre
2014 e 2022 foi de 452 reconhecimentos do tipo por ano.
No Rio Grande do Sul,
o recorde anterior era de 2017, quando o estado teve 243 reconhecimentos
relacionados às chuvas. O número de 2023 foi 78% maior que o recorde de 2017. A
média entre 2014 e 2022 foi de 101 casos do tipo. Em comparação com os 49 decretos
registrados em 2022, o crescimento foi de 783%.
No levantamento feito
pela Pública, foram considerados os reconhecimentos relacionados a “chuvas
intensas”, “enxurradas”, “granizo”, “inundações”, “vendavais”, “alagamentos”,
“deslizamentos” e “tornados”.
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Por que isso importa?
- Os eventos extremos climáticos estão se agravando, e o Rio
Grande do Sul é o estado mais afetado no Brasil
- As autoridades estão “muito aquém da realidade” e têm
parcela de responsabilidade nas tragédias, alerta pesquisador
Esses decretos são
solicitados pelos municípios e precisam ser reconhecidos pelo governo federal
para a liberação de recursos emergenciais. As declarações de situação de
emergência e calamidade pública são registradas no Sistema Integrado de
Informações sobre Desastres (S2ID), plataforma ligada à Defesa Civil, que
analisa e reconhece os pedidos de reconhecimento, e ao Ministério da Integração
e do Desenvolvimento Regional (MIDR), que fornece ajuda financeira para os
municípios afetados.
Além do acesso a
recursos monetários excepcionais para responder aos desastres, os decretos
também permitem a dispensa de licitação para contratações emergenciais. O
número de reconhecimentos de situação de emergência ou calamidade pública é
menor do que o de desastres registrados no S2ID, mas permite quantificar os que
tiveram impacto mais relevante nos municípios.
Eles também ajudam a
entender a sazonalidade dos eventos extremos e as mudanças de padrão desses
eventos, explica Liuca Yonaha, presidente em exercício do Instituto Talanoa.
Segundo ela, esses dados sinalizam “novas tendências que precisam ser
antecipadas para prevenção e também resposta rápida”.
Desde 2019, a Política
por Inteiro, iniciativa do Talanoa que faz o acompanhamento das ações do
governo federal em temas ligados às questões climáticas e socioambientais, tem
monitorado os reconhecimentos de decretos de situação de emergência por meio do Monitor de Desastres, atualizado semanalmente.
Yonaha afirma que há
uma tendência de crescimento do total de reconhecimentos nos últimos anos, mas
o que mais chama atenção são mudanças no padrão. “Situações de emergência
motivadas por tempestades, por exemplo, que antes eram mais concentradas no
primeiro trimestre, estão acontecendo bastante no quarto trimestre e também no
segundo. Isso significa que os esforços de prevenção e mobilização precisam se
ajustar. Dependendo da região, conceitos de forças-tarefa que miram o período
de chuvas de verão perdem sentido e passam a ter de ser permanentes”,
diz.
Para ela, a abordagem
do Brasil é baseada “muito na reação, pouco na preparação, menos na prevenção”
aos eventos extremos. Com uma agenda de adaptação, diz, esse foco mudaria,
passando a ter políticas que tornem os municípios de fato mais resilientes às
mudanças climáticas.
·
El Niño encontra um
planeta aquecido e despreparado
Os temporais e
ciclones extratropicais que atingiram o Rio Grande do Sul no ano passado,
provocando enchentes históricas, mortes e milhares de pessoas desalojadas ou
desabrigadas, têm relação com o El Niño. Mas não apenas. A ocorrência do
fenômeno natural, que provoca um aquecimento anormal das águas do Pacífico, o
que altera os ventos e aumenta a possibilidade de chuvas fortes no Sul do
Brasil, não é suficiente para explicar os desastres, explica o climatologista
Francisco Aquino, chefe do Departamento de Geografia da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS).
“O palco em que o El
Niño aconteceu é um planeta em que o clima e o ambiente mudaram. Acho que a
palavra mais adequada é emergência climática. As duas inundações sem
precedentes no ano de 2023 no Rio Grande do Sul ocorreram pela combinação entre
a mudança climática e o El Niño, além da topografia da região do Vale do
Taquari [onde ocorreu o principal desastre]”,
aponta o especialista. Ele destaca também a devastação dos biomas brasileiros
como fator de agravamento para os eventos climáticos extremos que atingiram o
Sul do país.
Em 2023, o planeta que
o El Niño encontrou foi o mais quente dos registros, de acordo com o Copernicus, serviço de
monitoramento das mudanças climáticas do programa espacial europeu: 1,48 ºC
acima da média do período pré-industrial (de 1850 a 1900), quando a humanidade
começou a queimar intensivamente os combustíveis fósseis, principais
responsáveis pelo aquecimento global. O número é bastante próximo do limite de
1,5 ºC que especialistas estabelecem como limiar seguro e definido como meta
pelo Acordo de Paris.
E as duas condições –
emergência climática e El Niño – encontraram um estado e municípios
despreparados para lidar com as chuvas. No ano passado, reportagem
da Pública revelou que
o governo do Rio Grande do Sul engavetou planos para lidar com mudanças
climáticas. O principal deles, o Plano de Prevenção de Desastres, foi
finalizado em 2017, mas nunca saiu do papel. Outra reportagem mostrou que
Porto Alegre, também atingida por fortes chuvas no ano passado, é uma das 17
capitais brasileiras que não têm um plano de enfrentamento às mudanças
climáticas.
Para Aquino, as
autoridades estão “muito aquém da realidade” e precisam agir em “outra escala
de tempo”. “Os alertas [de eventos extremos] estão sendo antecipados até uma
semana antes deles ocorrerem. Os tomadores de decisão não podem mais se
esconder”, aponta.
Na visão do
pesquisador, é fundamental que o Rio Grande do Sul e o país “criem mais
robustez na defesa civil”. “A sociedade não está culturalmente preparada para
receber alertas de eventos extremos. Se a gente falar em estrutura de defesa
civil, 60% dos municípios do Brasil têm uma pessoa, quando muito, encarregada
dessa área e, na maioria das vezes, não é um especialista no assunto”, aponta o
professor da UFRGS.
·
6 em cada 10
municípios gaúchos tiveram emergência por chuva em 2023
Apesar da maior parte
das mortes ter se concentrado na região do Vale do Taquari, onde a passagem de
um ciclone extratropical provocou a maior enchente em 64 anos, as chuvas
intensas e os desastres relacionados atingiram o Rio Grande do Sul de maneira
generalizada em 2023.
Ao todo, 305
municípios gaúchos decretaram situação de emergência ou calamidade pública
relacionada à chuva ao menos uma vez, o que representa 61,3% do total de 497
cidades do estado. No resto do país, 883 municípios (15,8% do total) tiveram
decretos relacionados às chuvas reconhecidos pelo governo federal.
No Rio Grande do Sul,
os municípios de Taquara, Imigrante, Harmonia e Erechim foram os que tiveram
mais decretos, com quatro ocorrências cada um. Outros 14 municípios entraram em
situação de emergência três vezes em 2023 por causa das chuvas. Como relatou a Pública no
ano passado, 41% dos municípios gaúchos têm capacidade adaptativa a eventos
climáticos do tipo baixa ou muito baixa, segundo o Adapta Brasil, plataforma do Ministério da Ciência e Tecnologia.
A maior parte das
ocorrências gaúchas em 2023 foi registrada no mês de novembro, quando 148
decretos de situação de emergência ou calamidade pública foram expedidos. Em
outubro, foram 90 ocorrências, cinco a mais do que em setembro, quando um
ciclone extratropical atingiu o estado e gerou o maior desastre natural do Rio
Grande do Sul em 40 anos.
Na semana passada,
mais de 20 municípios do Rio Grande do Sul foram novamente atingidos por fortes
chuvas e rajadas de vento. Após os temporais, a população teve que enfrentar
alagamentos, estradas foram interditadas e mais de 1 milhão de pessoas ficaram
sem energia elétrica, além de algumas centenas terem ficado desalojadas ou
desabrigadas.
Considerando os dez
anos analisados pela Pública, o Brasil teve 5.143 reconhecimentos
de situação de emergência ou calamidade pública por eventos ligados à chuva. O
Rio Grande do Sul lidera esse tipo de reconhecimento no país também nesse
período: 1.347 decretos entre 2014 e 2023, 26,2% do total nacional.
Dos 497 municípios
gaúchos, 417 decretaram situação de emergência relacionada à chuva na última
década, quase 84% do total. O município que mais teve decretos do tipo foi São
Jerônimo, na região metropolitana de Porto Alegre, com 14 ocorrências. A segunda
colocação é de Cachoeira do Sul, a cerca de 200 km da capital, com dez casos.
O número registrado
pelo Rio Grande do Sul no período é quase o dobro do segundo colocado, Santa
Catarina, que teve 692 reconhecimentos. O outro estado da região Sul, o Paraná,
teve 553 reconhecimentos no período. Somada, a região teve 2.592 decretos relacionados
à chuva nos últimos dez anos, pouco mais da metade do registrado no país. Em
2023, foram 686 reconhecimentos, 64% do total nacional. O top 5 dos últimos dez
anos tem ainda Minas Gerais (456) e Bahia (319).
·
Brasil registrou mais
de 13 mil eventos extremos na última década
Não são só as chuvas
que levam municípios a uma situação de emergência. Nos últimos dez anos, o
Brasil teve um total de 13.669 reconhecimentos de situação de emergência
espalhados por todas as unidades da Federação. Além de chuvas, estiagens,
incêndios, rompimento de barragens, doenças infecciosas e erosão costeira estão
entre os eventos que levaram cidades a decretar situação de emergência. O
recorde de registros totais para o período também foi em 2023, com 2.373
ocorrências, cerca de 12% a mais que o recorde anterior, de 2014 (2.021
registros).
Dos mais de 13 mil
reconhecimentos, 5.143 foram relacionados às chuvas, 37,6% do total. Em 2023, a
porcentagem de eventos ligados às chuvas ficou acima da média histórica, com
45,2% do total. No mesmo período, foram 8.047 ocorrências relacionadas à estiagem
ou seca, 58,8% do total de reconhecimentos na última década. Em 2023, foram
1.280 reconhecimentos desse tipo, quase 54% do total.
Novamente, quando
consideramos todos os reconhecimentos, o Rio Grande do Sul lidera, com 2.694
ocorrências, cerca de 19,7% do total nacional na última década. Em 2023, o
estado teve 771 registros ao todo, 32,5% do registrado no país. Foram
reconhecidas situações de emergência em mais de 84% dos municípios gaúchos no
ano passado.
Além de ter sido
castigado por eventos relacionados às chuvas, o estado também tem histórico de
situação de emergência ligada à estiagem ou seca. Em dez anos, foram 1.300
reconhecimentos desse tipo, 16,1% do total no Brasil, atrás apenas da Bahia,
que teve 1.577 no mesmo período. Em 2023, o Rio Grande do Sul liderou o ranking
de eventos relacionados à falta de chuva: foram 337 reconhecimentos, mais de um
quarto do total no Brasil. A maior parte ocorreu em janeiro (177) e fevereiro
(122).
Chama atenção a
recorrência de municípios que enfrentaram os dois extremos climáticos no Rio
Grande do Sul em 2023: foram 223, quase 45% do estado. Na série histórica de
dez anos analisada pela Pública, 426 municípios gaúchos registraram ao
menos um decreto de situação de emergência por causa das chuvas e outro devido
à falta delas, mais de 85% do estado.
De acordo com o
climatologista Francisco Aquino, da UFRGS, a estiagem enfrentada pelo estado no
início do ano passado e em anos anteriores também está especialmente
relacionada à emergência climática. Segundo ele, os efeitos das mudanças que o
ser humano tem provocado na Terra se combinaram com a ocorrência da La Niña,
fenômeno natural oposto ao El Niño, que provoca o resfriamento das águas do
Pacífico e diminui a quantidade de chuvas na região.
“Os três anos de La
Niña [2020-2023] foram impiedosos aqui no Cone Sul, na Argentina, Paraguai,
Uruguai e Rio Grande do Sul, com escassez hídrica extrema”, aponta o
pesquisador, que alerta para a possibilidade desse cenário se repetir a partir
do meio de 2024, com o retorno do fenômeno.
Para Aquino, a
tendência é que a ocorrência dos eventos climáticos extremos, tanto de estiagem
intensa quanto de chuvas sem precedentes, continue se agravando. “O que a
literatura técnica e científica nas últimas décadas aponta é que, se seguimos
aumentando a temperatura do planeta, mudando a ocupação e o uso do solo,
forçamos a atmosfera, o que resulta em um maior número de tempestades. Só que
essa chuva não é distribuída homogeneamente. Há padrões de estiagem em algumas
localidades e inundações e chuvas extremas em outras”, explica.
Fonte: Por Rafael
Oliveira, da Agencia Pública
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