Como cientistas isolados na Antártida
desenvolveram um sotaque próprio
A despedida não
poderia ser mais gelada. Bolas de neve cruzaram o céu em direção ao RSS Ernest
Shackleton, enquanto ele se afastava do cais.
O navio começava sua
viagem pelo tempestuoso Oceano Glacial Antártico, deixando 26 almas corajosas
em uma ilha bloqueada pela neve, na ponta congelada da Península Antártica.
As pessoas que
acenavam para o navio no porto observavam sua única ligação concreta com o
resto do mundo deslizar pela água congelante. Seis meses de inverno os
esperavam, completamente ilhados no continente mais frio do planeta.
"Eles dizem que é
mais rápido colocar alguém na Estação Espacial Internacional do que evacuar
alguém da Antártida para uma emergência médica no inverno", conta Marlon
Clark.
Ele faz parte do grupo
de 26 pessoas, entre pesquisadores internacionais e pessoal de apoio, que foram
deixadas em março de 2018 na Estação de Pesquisa Rothera, do Serviço Antártico
Britânico, na ilha Adelaide — a oeste da Península Antártica.
A Antártida é o
continente menos habitado do planeta. Ali, não há população humana permanente.
Existem apenas algumas poucas bases e estações de pesquisa espalhadas pelos
seus 14 milhões de quilômetros quadrados de terras congeladas.
"Ou seja, você
está isolado", explica Clark. "Existem muitos mistérios e tradições
sobre o 'inverno na Antártida'. O sentimento mais forte foi a expectativa, além
da constatação: 'OK, isto é real, vou ficar aqui por muito, muito tempo'."
Nas 26 semanas de
clima rigoroso e escuridão quase permanente que se seguiram, Clark e seus
colegas trabalharam, comeram e se socializaram na Estação Rothera, com muito
pouco contato com suas casas. As ligações telefônicas via satélite são caras e,
por isso, escassas.
Eles contavam apenas
uns com os outros para terem companhia e um pouco de entretenimento na base.
Por isso, os "inverneiros", como são conhecidos, conversavam — muito
— entre si.
"Nós falávamos
uns com os outros enquanto trabalhávamos, nos intervalos, jogando sinuca ou nos
nossos quartos", conta Clark. Ele ajudou a coordenar a coleção de
gravações dos inverneiros.
"Nós passamos a
conhecer as histórias uns dos outros muito rapidamente. Havia muitas conversas
sobre o clima — esses ventos malucos que tínhamos, o mar congelado, os
icebergs, as nuvens. Ficamos muito confortáveis uns com os outros."
O idioma comum na base
era o inglês, salpicado de gírias características das estações de pesquisa na
Antártida, como veremos mais adiante.
E, em meio a todas
essas conversas, aconteceu algo surpreendente: seus sotaques foram se
modificando.
Clark e seus colegas
não perceberam a mudança. Tudo o que eles sabiam é que estavam participando de
um experimento incomum, acompanhando suas próprias vozes ao longo do tempo.
Isso era feito por
meio de gravações de 10 minutos a cada poucas semanas. Eles se sentavam em
frente a um microfone e repetiam as mesmas 29 palavras que apareciam na tela do
computador.
Comida. Café.
Esconder. Fluxo de ar. A maioria das palavras (em inglês) era de uso comum
durante o dia e continha sons de vogais conhecidas por soarem diferente nos
diversos sotaques da língua inglesa.
As gravações foram
encaminhadas para uma equipe de pesquisadores de fonética da Universidade
Ludwig-Maximilians, em Munique, na Alemanha. Durante a análise, eles
descobriram que a pronúncia de algumas das palavras havia se alterado muito
levemente.
Os pesquisadores
estavam observando o nascimento de um novo sotaque.
O experimento na
Antártida forneceu uma ideia sobre algo que aconteceu inúmeras vezes ao longo
da história humana. Grupos de pessoas ficaram isolados de outros, o que levou
seus sotaques, dialetos e até mesmo os idiomas a ficarem diferentes entre si.
Em escala maior, os
pesquisadores afirmam que o experimento pode fornecer indicações dos motivos
que levaram o inglês britânico e o americano a ficarem tão diferentes.
"Nós queríamos
reproduzir, ao máximo possível, o que aconteceu quando o navio Mayflower foi
para a América do Norte e as pessoas a bordo ficaram isoladas por um período de
tempo", explica o professor de fonética e processamento da fala Jonathan
Harrington, da Universidade Ludwig-Maximilians.
"Seis meses não é
muito tempo, de forma que observamos mudanças muito, muito pequenas. Mas
descobrimos que algumas das vogais haviam se alterado", prossegue o
professor.
Uma dessas mudanças
foi o som de "ou" em palavras inglesas como "flow" (fluxo)
e em "sew" (costurar), para a frente do trato vocal.
Os pesquisadores
também observaram que alguns dos inverneiros começaram a pronunciar três outras
vogais da mesma forma.
O motivo da mudança
revela um possível mecanismo básico de aquisição de sotaques ao longo da vida.
"Quando falamos
uns com os outros, nós memorizamos aquela fala", explica Harrington.
"Aquilo, então, tem influência sobre a nossa própria produção de
fala."
De fato, nós
transmitimos e infectamos uns aos outros com pronúncias sempre que interagimos
com os demais. E, ao longo do tempo, se tivermos contato regular e prolongado
com alguém, podemos começar a absorver os seus sons.
Não existem
assentamentos humanos permanentes na Antártida — apenas estações de pesquisa
que abrigam pesquisadores e funcionários visitantes.
Entre as pessoas que
vivem em comunidades isoladas — como uma aldeia em um vale remoto ou um
assentamento no outro lado do oceano — isso pode gerar mudança de sotaque, à
medida que as peculiaridades ou falsas percepções da fala ficam exageradas.
Mas isso pode levar
tempo. Afinal, os sotaques são produzidos pelo controle extremamente preciso
dos órgãos vocais para produzir as mudanças sonoras, como as vogais nasaladas
que caracterizam certos sotaques, como o inglês americano.
Durante o inverno de
2018 na Antártida, houve outro fator em jogo: a diversidade de origens dos
inverneiros.
Entre as pessoas que
ficaram na Estação Rothera naquele inverno, havia dois americanos, um mecânico
islandês, alguns alemães, escoceses e um falante de galês.
"As bases
britânicas na Antártida são bastante singulares quando o assunto é a
receptividade", explica Clark. "Por isso, você acaba tendo um
verdadeiro caldeirão cultural, com pessoas de diferentes origens." Clark
ajudou a coordenar a coleção de gravações dos inverneiros.
Harrington e seus
colegas usaram modelos de computador para prever como os inverneiros poderiam
influenciar uns aos outros nesse caldeirão cultural.
Os modelos usaram
gravações feitas antes da viagem dos inverneiros para simular o que poderia
acontecer com seus sotaques à medida que eles passavam mais tempo juntos. Suas
previsões foram inquestionavelmente precisas, mesmo quando os efeitos eram
exagerados em comparação com o que acontecia na vida real.
Os próprios
inverneiros não teriam notado o que aconteceu ao longo do tempo. Mas a análise
dos sons mostrou as mudanças das ondas acústicas.
"Foi muito sutil
— você não consegue ouvir as mudanças", segundo Harrington. Mas Clark
conta que a forma de falar de algumas das pessoas que passaram aquele inverno
na base sofreu mudanças muito mais significativas.
"Um dos meus
amigos falava galês como primeiro idioma e tinha um sotaque muito forte quando
falava inglês", ele conta. "No final do nosso período ali, o seu
sotaque tinha ficado mais parecido com o de Liverpool [na Inglaterra]."
O amigo galês não foi
incluído no estudo de idiomas. Mas o sotaque de uma mulher alemã ficou mais
parecido com um falante nativo de inglês, à medida que ela praticava com as
pessoas à sua volta, segundo Harrington e seus colegas no estudo.
• Novos sotaques em Londres e Berlim
Esta mistura de
pessoas de diferentes origens culturais, idiomas e sotaques não é apenas uma
característica das estações de pesquisa distantes. Ela também pode ser
encontrada, em escala muito maior, nas cidades modernas.
E as pesquisas indicam
que essas grandes cidades multiculturais produzem seus próprios sotaques e
dialetos, da mesma forma que no microcosmo linguístico da Antártida.
Um exemplo é o
desenvolvimento, no sudeste da Inglaterra, do Inglês Londrino Multicultural
(MLE, na sigla em inglês) — um dialeto que começou a surgir nos anos 1980 nas
áreas da capital britânica com altos níveis de imigração.
Acredita-se que ele
tenha surgido na região de Londres conhecida como East End (o chamado Cockney
do East End) e tenha se misturado, inicialmente com o patoá jamaicano e,
depois, com outros dos cerca de 300 idiomas falados na capital.
Uma das influências
foi o grande número de pessoas aprendendo inglês como segundo idioma em
Londres, segundo o professor de inglês Eivind Nessa Torgersen, da Universidade
Norueguesa de Ciência e Tecnologia. Torgersen estudou MLE com suas colegas
Jenny Cheshire e Susan Fox, na Universidade Queen Mary de Londres.
"Diversos
falantes de MLE têm outras línguas como primeiro idioma e crescem falando
inglês e um idioma natal", explica ele. "Um exemplo é o uso de
'wasn't' ['não era'] em 'eu não era, nós não era, eles não era'."
Os falantes mais
idosos de Londres e os mais jovens em outras partes do sudeste da Inglaterra
costumam usar "weren't" ("não eram/éramos"), segundo
Torgersen.
"Observamos
desenvolvimentos similares em outras cidades muito grandes da Europa com altos
níveis de migração", segundo o professor. Ele cita, como exemplos, um novo
tipo de alemão em Berlim e um novo dialeto sueco em Estocolmo.
"Esse contato
entre variedades multiculturais tem diversas características parecidas: contato
entre línguas e dialetos, aprendizado de segundo idioma, empréstimo de palavras
de outros idiomas. O que faz o MLE diferente de outras variedades multiculturais,
pelo menos até recentemente, é que não encontramos muitas palavras emprestadas
de outras línguas."
Para Torgersen, isso
pode ter ocorrido, em parte, porque grande parte da migração para Londres vem
de países da Comunidade Britânica de Nações, onde as pessoas falam uma variação
da língua inglesa.
• Como dizer 'dia bonito' na Antártida
No caso da Antártida,
os moradores das bases britânicas não estão apenas alterando sutilmente seus
sotaques. Eles também estão desenvolvendo uma espécie de gíria de pesquisa
antártica — um conjunto extravagante de palavras que têm pouco significado no
mundo exterior.
O que talvez soe
surpreendente é que algumas dessas palavras não têm nada a ver com a ciência,
nem com a Antártida.
"Existe um
vernáculo estranho e diferenciado que as pessoas desenvolvem quando vêm para
cá", conta Clark.
"Se for um dia
bonito, você tem um 'dingle day' ou, se você for pegar o lixo, você está
fazendo um 'fod plod'. Você se acostuma rapidamente e passa a ser muito
normal."
Mesmo assim, a
Antártida ainda está longe do tipo de divergência de sotaques que ocorreu após
a colonização da América do Norte, da Austrália e da Nova Zelândia, por
exemplo.
"Para que os
sotaques se desenvolvam ao ponto de poderem ser observáveis, realmente leva uma
geração", explica Harrington.
"As crianças são
ótimas imitadoras, de forma que o processo de memorização da fala de outra
pessoa é amplificado nas crianças. Se os inverneiros tivessem filhos, como os
colonizadores do Mayflower quando foram para a América, o sotaque se tornaria mais
estável."
Mas é improvável que o
Serviço Antártico Britânico incentive uma súbita onda de gestações em um dos
lugares mais inóspitos do mundo, da mesma forma que em outras bases no
continente gelado.
Mas esta possibilidade
certamente ofereceria outros assuntos para os inverneiros conversarem, além do
clima.
• Aprenda a falar como um inverneiro
Os moradores das
estações de pesquisa britânicas na Antártida desenvolveram suas próprias
expressões para designar certas atividades diárias. Algumas dessas expressões
têm origem em termos militares, enquanto outras surgiram de brincadeira ou por
acaso.
Aqui estão algumas
expressões em inglês que você pode tentar adotar:
Fod plod: pegar o
lixo. "Fod" é uma abreviação de "fragmentos de objetos
externos" ("foreign object debris", em inglês).
Dingle day: dia de céu
limpo e azul.
Gash: tarefas de
lavagem, limpeza e cuidar do lixo.
Smoko: parada para o
chá ou café.
Fid: funcionário do
Serviço Antártico Britânico que está "lá no sul".
Doo: esqui ou
bicicleta de neve.
Firkle: vasculhar
alguma coisa ou causar problemas.
Gonk: sono.
Fox hat ("chapéu
de raposa"): o cinema noturno da base.
Fonte: BBC Future
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