André Leirner: A condição judaica no século
XXI
O sionismo mobiliza um
ponto central da identidade judaica: o êxodo. Recalca o desejo de integração de
seu povo – consigo e o mundo – em pânico de perder uma posse exclusiva. E,
assim, tenta reduzir a ferro e fogo toda uma cultura ao patrimonialismo e rapinagem…
##
Esse texto não é um
trabalho acadêmico, teológico, filosófico, e tampouco procura provar uma tese.
É um ensaio livre, uma reflexão, que procura construir um encadeamento de fatos
e uma percepção de nosso tempo. Essa percepção, por sua vez, procura investigar
a questão judaica nos tempos atuais (século XXI), condição essa tensionada pela
matança indiscriminada do povo palestino promovida pelo Governo Netanyahu com a
cumplicidade dos países de entorno. Seu intento não é traçar o que é certo ou
errado, ainda que isso pudesse ser feito sem muitas sombras de dúvida, mas
discutir dilemas da condição judaica atual e, quem sabe, apontar caminhos
possíveis.
A meu ver, a condição
judaica tem como cerne dois elementos estruturantes, e conectados: a iconoclastia e o êxodo.
Comecemos pela
iconoclastia. Na religião judaica não existem santos ou quaisquer imagens
divinas. Existem espíritos, fantasmas, demônios, criaturas fantásticas, mas
santos e divindades, não. Quem representa a divindade é a própria humanidade
que testemunha o divino e escreve sua história a partir de seu embate com essa
condição.
Isso quer dizer que,
na religião judaica, qualquer um fala com D**s diretamente. Escrevo D**s pois,
pela religião judaica, seu nome não pode ser pronunciado. Mas por que isso? Por
que essa entidade é todas as coisas, e designar um signo para essa totalidade é
estabelecer um limite para o seu significado e, portanto, um enquadramento
construído pela própria linguagem. E aquilo que é tudo e também é cada coisa
individualmente não pode ser algo definido. O singular e o plural se manifestam
como unidade a cada momento de maneira sempre diferente na relação de cada um
com essa condição.
Decorre desse
princípio que a manifestação divina é algo em aberto e que se expressa de
inúmeras maneiras, muitas vezes contraditórias. E considerando que ela se
expressa na medida da compreensão de cada um, não há referencial externo comum,
e portanto, tudo é negociado. Não existe um objeto a priori, só a relação entre
objetos, que os constitui nessa condição relacional. O monoteísmo e o
messianismo são reflexos dessa condição. O primeiro, como uma manifestação de
uma unidade e o segundo como manifestação de uma esperança e de um permanente
vir a ser.
Poderia se argumentar
que o monoteísmo que determina a iconoclastia, mas podemos pensar que a
impossibilidade de expressar o divino que gerou o devir iconoclasta, e que os
próprios conceitos como monoteísmo e messianismo são armadilhas de linguagem
que fixam uma imagem daquilo que jamais poderia ser sequer imaginado, mas que
existe e se apresenta a todo momento.
O judaísmo propõe,
portanto, um sistema de linguagem em que o significado é aberto e
circunstancial. Não existe uma ordem à priori, mas uma coerência geral de
contexto, e esse o contexto, por sua vez, é objeto de interpretação de cada um
e socialmente construído.
Esse tipo de
construção pode ser encontrada no kanji, japonês e chinês. Um Kanji é um
sistema portador de significado sensível tanto aos seus elementos internos de
composição quanto ao contexto em que está inserido, podendo assumir mais de um
significado dependendo de onde é observado e das relações de contiguidade e
vizinhança que estabelece com outros elementos e outros Kanjis. Esse
significado aberto também é encontrado no Taoismo, ainda que aqui a dualidade
se coloca como algo fundamental. Tal dualidade não existe no judaísmo, só
unidade. Mesmo assim poderíamos dizer que o judaísmo é uma cultura oriental.
E isso se relaciona,
por sua vez, com o segundo elemento estruturante da cultura judaica: o êxodo. O
êxodo nasce da saída dos judeus do Egito. Essa saída se relaciona com a
iconoclastia na medida que rompe com um determinismo, no caso, o patrimonial.
O povo judeu servia à
uma economia de acumulação primitiva, agrária, no caso, em serviço ao dono da
terra. Considerando que o faraó era a expressão do divino e da fertilidade, não
havia terra fértil que não fosse a do faraó. Afirmar uma possibilidade de vida
alternativa, portanto, implicava em abrir mão da relação com a terra e em
abraçar uma relação aberta e dinâmica com o território, e por consequência, com
a própria possibilidade de expressão do divino. O êxodo se estabelece como
imperativo ideológico, portanto, como uma força de linguagem mobilizadora e
coletiva, que resulta na primeira insurreição de massa sobre o poder
constituído na história.
A construção
contextual, e social, de um sentido frente à vida, de onde nasce a
deterritorialização do êxodo, está no cerne do judaísmo, portanto. E ainda que
encontremos isso em alguns povos originários, dentre os quais alguns nômades,
há uma diferença: a desterritorialização judaica é uma contingência histórica,
resultado de uma atitude de revolta que se traduz não em conflito, mas em uma
procura de uma alternativa, de uma trajetória de procura. No caso, por uma
identidade manifesta numa terra hipotética, originária, que, no caso,
percebeu-se que não era só sua.
Isso implicou em
migrações em massa, no estabelecimento de redes comerciais, em assentamentos
precários em locais onde a propriedade da terra não era permitida, e em novas
formas de acúmulo de riqueza e de conhecimento. E também na identificação desse
povo como invasor, impuro, parasitário, uma praga que está em todo lugar, em
diversos países, e que por isso deseja, em realidade, argumentavam, dominar o
mundo. O êxodo instalou um conflito permanente com o regime patrimonial dos
povos hospedeiros, e também uma fantasia, entre os migrantes, de uma terra
própria onde pudessem manifestar sua identidade sem medo.
O Shoá (holocausto)
foi um marco, o ápice do patrimonialismo expresso como higienismo social,
atingindo tudo que não fosse branco, cristão e fizesse a menor sombra em sol
forte. Decorreu da superação dessa desgraça uma oportunidade histórica de se
estabelecer o Estado de Israel. Que estado seria esse, porém? Ora, um Estado
como qualquer outro, cuja base constituinte herdada da Inglaterra é, adivinhe,
patrimonial.
O conflito
patrimonial, constituinte da identidade judaica, que antes existia fora dela
passou a existir dentro dela, se entranhou. O judeu passou não mais a desejar
se integrar onde estivesse, a aspirar um universalismo inclusivo. Recalcou esse
desejo e o transformou em medo atávico e permanente de perder “o seu lugar”,
seja ele qual fosse.
Justamente o povo que
mostrou ser possível existir de outras maneiras e superar a escassez para além
da lógica patrimonial, hoje, em Israel, defende o patrimonialismo. O cerne
desse conflito reside, portanto, na ideia de que território e povo são correspondentes
e constituem uma identidade única e exclusiva, e a partir daí, uma relação de
posse. Só lembrando que “Um povo, uma pátria, um líder” foi, além de um bordão
nazista, uma ideologia.
Mas isso faz qualquer
sentido? Imagine só, pense bem, a avenida paulista tem uma identidade atrelada
a qual população? A que mora lá? A que trabalha lá? A que a visita como turista
ou como consumidor? Ou ainda, a que vive alhures mas que a tem como referência?
A todas elas, oras… Pois bem, parece claro que um território pertence a quem
atribui significado e valor a ele, e que uma gestão democrática permite o
convívio de diferentes identidades e pertenceres, incluindo minorias e aqueles
que lá não vivem, mas passam por lá.
Um leitor atento
percebe que estamos falando desde o início de disputa por acesso à recursos
singulares, portanto não rivais e em condições de escassez, de economia do
setor público, portanto. E que nesse contexto o espaço compartilhado tem papel
crucial para estruturação de um espaço político, viável social e
economicamente.
O Sinai tem uma
história anterior à constituição dos Estados nacionais e sempre foi rota de
passagem, lugar de riquezas e de disputa. As cruzadas são um exemplo. A quem
pertence aquele território? Pela lógica acima, a quem a ele atribui significado
e valor. Nesse contexto, pergunta-se: até que ponto é racional levar a cabo uma
disputa pela sua exclusividade de posse? Posse faz sentido? O usufruto não
viria antes? Poderia ser compartilhado? Em que medida?
Não se trata só de um
problema entre palestina e israel, portanto, mas um problema árabe israelense
como um todo. Infelizmente o povo judeu caiu numa armadilha da história,
atrelou o sionismo ao patrimonialismo e com ele, a rapinagem. O que vemos
ultimamente é só o desdobrar dessa opção.
O povo judeu deve ter
clareza que a disputa territorial é um paradigma do século XX a ser superado.
Que sim, que o povo judeu precisa ter um país, mas que seu país deve pertencer
a um território além do seu tempo, um Sinai realmente livre, inclusivo e multiétnico.
No século XXI, cabe distribuir as riquezas do usufruto de todo o Sinai
permitindo o convívio pacífico de diferentes identidades, incluindo minorias.
Como fazer isso? Estabelecendo um fundo significativo para essa finalidade,
para desenvolver todo o Sinai, para todos, o resto é rapinagem. É uma proposta
radical em resposta a uma conjuntura crítica. Essa é a melhor opção ou a opção
correta? Não sei, mas é uma opção que fala com a identidade judaica, e que
permitiria ao povo judeu sair dessa armadilha da história. Uma opção que remete
ao direito dos judeus viverem em qualquer lugar do planeta, e do mesmo modo,
compartilhar esse direito com os demais povos.
Fonte: Outras Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário