Conheça o distúrbio que faz homem ver
"mundo demoníaco"
O caminhoneiro Victor
Sharrah acordou um dia de novembro de 2020 que mudou sua vida: ele notou, do
nada, que os rostos das pessoas ao seu redor pareciam demoníacos. Orelhas,
narizes e bocas estavam esticados para trás, e havia sulcos em suas testas,
bochechas e queixos.
"Meu primeiro
pensamento foi que acordei em um mundo demoníaco", disse Sharrah, 59 anos,
de Clarksville, no Tennessee (EUA), à NBC News. "Você não pode imaginar
como foi assustador."
Alguém que ele
conhecia ensinava pessoas com deficiência visual e sugeriu que ele poderia ter
prosopometamorfopsia (PMO). É um distúrbio neurológico extremamente raro da
percepção que faz com que os rostos pareçam distorcidos em forma, tamanho,
textura ou cor. Sharrah achou que os sintomas coincidiam e ele foi formalmente
diagnosticado no ano passado.
As distorções aparecem
somente quando ele vê as pessoas pessoalmente — não em fotografias ou em telas
de computador.
Isso deu aos
cientistas a oportunidade de visualizar a aparência dos rostos distorcidos de
uma pessoa com PMO, algo que eles nunca haviam conseguido fazer antes. Os
pesquisadores do Dartmouth College criaram uma representação digital do que
Sharrah tem experimentado. As imagens resultantes foram publicadas na
quinta-feira (21/3) na revista The Lancet.
Para criar os recursos
visuais, os pesquisadores pediram a Sharrah que descrevesse as diferenças entre
as fotografias dos rostos das pessoas e as pessoas reais que estavam à sua
frente. Em seguida, os pesquisadores usaram um software de edição de imagens
para modificar as fotos de modo que correspondessem à descrição de Sharrah.
Os sintomas da PMO
geralmente desaparecem após alguns dias ou semanas, embora em alguns casos
possam se prolongar por anos.
O distúrbio é
extremamente raro e os cientistas estimam que há apenas 100 casos no mundo. Os
pesquisadores suspeitam que ela seja causada por uma disfunção na rede cerebral
que lida com o processamento facial, embora não entendam totalmente o que
desencadeia a condição. Alguns casos foram associados a traumatismo craniano,
derrame, epilepsia ou enxaqueca, mas outras pessoas têm PMO sem alterações
estruturais no cérebro.
Já no caso de Sharrah,
os pesquisadores ofereceram dois possíveis fatores desencadeantes. Primeiro,
ele sofreu envenenamento por monóxido de carbono quatro meses antes do início
dos sintomas de PMO. Segundo, ele sofreu um ferimento significativo na cabeça
aos 43 anos. Enquanto tentava destravar a alça de seu trailer, Sharrah caiu
para trás e bateu a cabeça no concreto.
Atualmente, Sharrah
faz tratamento em colaboração com o laboratório Dartmouth. A pesquisa duplicou
os benefícios das lentes verdes no combate aos sintomas de Sharrah e descobriu
que a manipulação das cores nas lentes também ajudou outras pessoas com PMO —
embora as cores que funcionam possam ser diferentes.
Estudo aponta que 43% da população sofre
de disfunção do sistema nervoso
O "Global Burden
of Disease Study" (GBD) é um dos maiores esforços para medir a
morbimortalidade das principais doenças ao redor do mundo, iniciado em 1991,
financiado pela Fundação Bill & Melinda Gates e sob a chancela da
Organização Mundial da Saúde. Sua última análise foi publicada no prestigiado
periódico The Lancet Neurology, em março de 2024, e apontou que o grupo das
condições neurológicas representa a maior causa de anos perdidos de vida
saudável (DALYs), seguido pelo grupo de doenças cardiovasculares. DALYs é um
dos principais indicadores para mensuração da carga global da doença, pois mede
simultaneamente o efeito da mortalidade e dos problemas de saúde que afetam a
qualidade de vida dos indivíduos. Um DALY quer dizer um ano de vida saudável
perdida, e incorpora conceitos de morte prematura e anos vividos com
incapacidade. Os resultados também mostraram que 43,1% das pessoas no mundo
sofrem de alguma disfunção neurológica, seja por uma doença neurológica
primária ou por efeito de outras condições que afetam o sistema nervoso.
A carga das disfunções
neurológicas demonstrada nos alerta para a urgência da inclusão do problema na
agenda das políticas públicas para a promoção de prevenção, identificação
precoce, tratamento e reabilitação dessas condições que devem ser encaradas como
prioritárias. Essa tarefa é de importância seminal nos países de baixa e média
renda, já que o GBD também revelou que 80% dessa carga neurológica recai sobre
esses países.
Uma das disfunções que
o GBD não conseguiria catalogar é o leve rebaixamento intelectual associado à
fome e à pobreza, reconhecida como uma epidemia neurológica silenciosa.
A pobreza é
reconhecida como um dos principais fatores que contribuem para o número de
pessoas com retardo mental ao redor o mundo. Em países desenvolvidos, a
prevalência de retardo mental situa-se em torno de 3-5 / 1000 indivíduos,
enquanto em países pobres encontramos uma prevalência que chega a ser cinco
vezes maior. A pobreza está por trás de dois dos principais fatores de risco
para o retardo mental: deficiência nutricional e de estímulo cerebral. Do ponto
de vista de saúde pública, a pobreza tem um impacto sobre o estado neurológico
muito maior que a grande maioria das doenças neurológicas com suas organizadas
sociedades médicas e seus medicamentos que movem o business da saúde.
Uma pesquisa publicada
pela revista Neurology mostra que mesmo as crianças que não desenvolvem retardo
mental chegam em idades avançadas com menor desempenho cognitivo quando crescem
em situação de pobreza. Os resultados também mostraram um envelhecimento
cerebral mais rápido entre os pobres.
Atacar de frente a
pobreza vai além da questão de humanismo e de direitos humanos. O Banco Mundial
reconhece que dentre todas as intervenções em saúde, o controle da desnutrição
pode ser considerado a que apresenta melhor custo-benefício. E os primeiros anos
de vida de uma criança são os mais vulneráveis para o cérebro, começando a
contar desde o primeiro dia da concepção, na barriga da mãe. A mãe precisa
comer bem. Todo mundo tem que comer bem. Crianças desnutridas têm menor chance
de chegar à escola, e quando chegam, têm maior chance de evasão.
*Ricardo Afonso
Teixeira é doutor em neurologia pela Unicamp, professor do curso de medicina do
Unieuro e neurologista do Instituto do Cérebro de Brasília
Fonte: Correio
Braziliense
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