quarta-feira, 27 de março de 2024

Conheça o distúrbio que faz homem ver "mundo demoníaco"

O caminhoneiro Victor Sharrah acordou um dia de novembro de 2020 que mudou sua vida: ele notou, do nada, que os rostos das pessoas ao seu redor pareciam demoníacos. Orelhas, narizes e bocas estavam esticados para trás, e havia sulcos em suas testas, bochechas e queixos.

"Meu primeiro pensamento foi que acordei em um mundo demoníaco", disse Sharrah, 59 anos, de Clarksville, no Tennessee (EUA), à NBC News. "Você não pode imaginar como foi assustador."

Alguém que ele conhecia ensinava pessoas com deficiência visual e sugeriu que ele poderia ter prosopometamorfopsia (PMO). É um distúrbio neurológico extremamente raro da percepção que faz com que os rostos pareçam distorcidos em forma, tamanho, textura ou cor. Sharrah achou que os sintomas coincidiam e ele foi formalmente diagnosticado no ano passado.

As distorções aparecem somente quando ele vê as pessoas pessoalmente — não em fotografias ou em telas de computador.

Isso deu aos cientistas a oportunidade de visualizar a aparência dos rostos distorcidos de uma pessoa com PMO, algo que eles nunca haviam conseguido fazer antes. Os pesquisadores do Dartmouth College criaram uma representação digital do que Sharrah tem experimentado. As imagens resultantes foram publicadas na quinta-feira (21/3) na revista The Lancet.

Para criar os recursos visuais, os pesquisadores pediram a Sharrah que descrevesse as diferenças entre as fotografias dos rostos das pessoas e as pessoas reais que estavam à sua frente. Em seguida, os pesquisadores usaram um software de edição de imagens para modificar as fotos de modo que correspondessem à descrição de Sharrah.

Os sintomas da PMO geralmente desaparecem após alguns dias ou semanas, embora em alguns casos possam se prolongar por anos.

O distúrbio é extremamente raro e os cientistas estimam que há apenas 100 casos no mundo. Os pesquisadores suspeitam que ela seja causada por uma disfunção na rede cerebral que lida com o processamento facial, embora não entendam totalmente o que desencadeia a condição. Alguns casos foram associados a traumatismo craniano, derrame, epilepsia ou enxaqueca, mas outras pessoas têm PMO sem alterações estruturais no cérebro.

Já no caso de Sharrah, os pesquisadores ofereceram dois possíveis fatores desencadeantes. Primeiro, ele sofreu envenenamento por monóxido de carbono quatro meses antes do início dos sintomas de PMO. Segundo, ele sofreu um ferimento significativo na cabeça aos 43 anos. Enquanto tentava destravar a alça de seu trailer, Sharrah caiu para trás e bateu a cabeça no concreto.

Atualmente, Sharrah faz tratamento em colaboração com o laboratório Dartmouth. A pesquisa duplicou os benefícios das lentes verdes no combate aos sintomas de Sharrah e descobriu que a manipulação das cores nas lentes também ajudou outras pessoas com PMO — embora as cores que funcionam possam ser diferentes.

 

       Estudo aponta que 43% da população sofre de disfunção do sistema nervoso

 

O "Global Burden of Disease Study" (GBD) é um dos maiores esforços para medir a morbimortalidade das principais doenças ao redor do mundo, iniciado em 1991, financiado pela Fundação Bill & Melinda Gates e sob a chancela da Organização Mundial da Saúde. Sua última análise foi publicada no prestigiado periódico The Lancet Neurology, em março de 2024, e apontou que o grupo das condições neurológicas representa a maior causa de anos perdidos de vida saudável (DALYs), seguido pelo grupo de doenças cardiovasculares. DALYs é um dos principais indicadores para mensuração da carga global da doença, pois mede simultaneamente o efeito da mortalidade e dos problemas de saúde que afetam a qualidade de vida dos indivíduos. Um DALY quer dizer um ano de vida saudável perdida, e incorpora conceitos de morte prematura e anos vividos com incapacidade. Os resultados também mostraram que 43,1% das pessoas no mundo sofrem de alguma disfunção neurológica, seja por uma doença neurológica primária ou por efeito de outras condições que afetam o sistema nervoso.

A carga das disfunções neurológicas demonstrada nos alerta para a urgência da inclusão do problema na agenda das políticas públicas para a promoção de prevenção, identificação precoce, tratamento e reabilitação dessas condições que devem ser encaradas como prioritárias. Essa tarefa é de importância seminal nos países de baixa e média renda, já que o GBD também revelou que 80% dessa carga neurológica recai sobre esses países.

Uma das disfunções que o GBD não conseguiria catalogar é o leve rebaixamento intelectual associado à fome e à pobreza, reconhecida como uma epidemia neurológica silenciosa.

A pobreza é reconhecida como um dos principais fatores que contribuem para o número de pessoas com retardo mental ao redor o mundo. Em países desenvolvidos, a prevalência de retardo mental situa-se em torno de 3-5 / 1000 indivíduos, enquanto em países pobres encontramos uma prevalência que chega a ser cinco vezes maior. A pobreza está por trás de dois dos principais fatores de risco para o retardo mental: deficiência nutricional e de estímulo cerebral. Do ponto de vista de saúde pública, a pobreza tem um impacto sobre o estado neurológico muito maior que a grande maioria das doenças neurológicas com suas organizadas sociedades médicas e seus medicamentos que movem o business da saúde.

Uma pesquisa publicada pela revista Neurology mostra que mesmo as crianças que não desenvolvem retardo mental chegam em idades avançadas com menor desempenho cognitivo quando crescem em situação de pobreza. Os resultados também mostraram um envelhecimento cerebral mais rápido entre os pobres.

Atacar de frente a pobreza vai além da questão de humanismo e de direitos humanos. O Banco Mundial reconhece que dentre todas as intervenções em saúde, o controle da desnutrição pode ser considerado a que apresenta melhor custo-benefício. E os primeiros anos de vida de uma criança são os mais vulneráveis para o cérebro, começando a contar desde o primeiro dia da concepção, na barriga da mãe. A mãe precisa comer bem. Todo mundo tem que comer bem. Crianças desnutridas têm menor chance de chegar à escola, e quando chegam, têm maior chance de evasão.

*Ricardo Afonso Teixeira é doutor em neurologia pela Unicamp, professor do curso de medicina do Unieuro e neurologista do Instituto do Cérebro de Brasília

 

Fonte: Correio Braziliense

 

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