O enigma das esculturas das 'rainhas' da
Era do Gelo
É uma noite típica na
caverna Hohle Fels, perto do ano 38.000 a.C.
No lado de fora, há
uma estepe gelada e estéril — um cenário congelado, com poucas árvores, vigiado
por leões e ursos das cavernas.
Mas, no lado de
dentro, está se desenvolvendo uma acolhedora cena doméstica.
Um grupo de
caçadores-coletores descansa em uma ampla sala de estar natural, completa, com
teto que parece o de uma catedral, com cerca de 30 metros de altura. O salão é
iluminado pelo brilho trêmulo de uma fogueira.
Uma mulher acaricia
despreocupadamente um pequeno boneco de marfim pendurado no pescoço — seu
pertence mais valioso. Por perto, alguém talha ferramentas de pedra.
O som rouco e
inquietante de uma flauta de ossos de abutre permeia o ambiente, tomado pelo
cheiro de carne de mamute assada.
Esta é uma cena
plausível. Ela pode realmente ter acontecido.
Cerca de 40 mil anos
se passaram até que arqueólogos escavassem aquele mesmo local — uma caverna de
calcário que, hoje, fica no sudoeste da Alemanha — e descobrissem seis
estranhos fragmentos de marfim, enterrados sob uma camada de três metros de
sedimentos.
Os fragmentos eram
minúsculos. Eles foram colados de volta e formaram uma estatueta: uma mulher
com apenas 6 cm de altura e um anel no topo, em vez da cabeça — provavelmente,
para poder ser usada como pingente.
Trata-se da Vênus de
Hohle Fels, que se acredita ser a mais antiga representação de um ser humano já
encontrada.
A descoberta ocorreu
em 2008 e é uma das mais recentes dentre centenas de achados similares, que
começaram a ser desenterrados no século 19: as estatuetas de Vênus.
Essas pequenas
esculturas, normalmente, não têm rosto e nem mesmo cabeça. Muitas vezes, suas
características sexuais são exageradas, com seios protuberantes, grandes
nádegas, quadris largos, vulvas claramente definidas e dobras de gordura em
torno da cintura.
Elas foram encontradas
ou desenterradas em toda a Europa e na Ásia, desde o sopé verdejante dos
Pireneus, entre a França e a Espanha, até as selvagens terras onduladas da
Sibéria central, na Rússia.
Mas o mais notável
talvez seja que a imensa maioria das obras de arte — muito mais numerosas do
que qualquer outra representação da nossa espécie da Idade da Pedra que tenha
chegado até nós — ilustra mulheres.
"É muito
surpreendente... 99% delas são mulheres", afirma a professora de
pré-história da humanidade Katharina Rebay-Salisbury, da Universidade de Viena,
na Áustria.
Este é o enigma das
estatuetas de Vênus, que já dura 160 anos. Quem as terá feito e por quê?
Seriam elas deusas
"mães" em miniatura, representações tangíveis da fecundidade
feminina? Ou serão simplesmente ícones sexuais do paleolítico, as primeiras
mulheres a serem transformadas em objetos, figurativa e literalmente?
• Padrão surpreendente
Uma das primeiras
estatuetas de Vênus desenterrada pelos arqueólogos foi encontrada no vale do
Vézère, no sul da França, em 1864. A região é conhecida como o berço da
humanidade, devido à alta densidade de sítios pré-históricos.
A estatueta foi
encontrada por um marquês curioso, que estava cavando o terreno que havia
acabado de passar por uma escavação arqueológica profissional.
A esguia miniatura é
incomum, pois parece representar o tronco nu de uma jovem. Acredita-se que ela
tenha sido feita pela cultura magdaleniana, que teve uma existência
relativamente confortável e rica em produções artísticas, cerca de 11 mil a 17
mil anos atrás.
O marquês a batizou de
"Vênus impudica", aparentemente uma referência amarga às "Vênus
pudicas" da arte clássica — estátuas de mulheres tentando cobrir sua
nudez, muitas vezes sem muito sucesso.
De lá para cá, foram
descobertas mais de 200 estatuetas de Vênus, feitas de argila ou esculpidas em
uma grande variedade de materiais, como marfim, azeviche, chifres, ossos e
diversos tipos de rochas.
Algumas são simples e
mostram apenas indícios da forma feminina, mas outras foram produzidas com
grande cuidado e maestria artística.
Mas o que atrai os
pesquisadores há mais de um século e meio não são tanto as suas diferenças, mas
as similaridades.
"Eu acho que elas
são fascinantes porque são muito difundidas e [foram produzidas] em um espaço
de tempo muito grande", afirma Rebay-Salisbury. "Temos estatuetas que
parecem do ano 17.000 a.C. e de 38.000 a.C. Como é possível relacionar esse
espaço de tempo inacreditável?"
Essa diferença
corresponde a mais de quatro vezes o período entre os dias atuais e o Antigo
Egito, por exemplo. E o intervalo é ainda mais surpreendente se considerarmos
que as culturas da Idade da Pedra não tinham acesso às tecnologias modernas de
registro e transmissão de informações por períodos tão longos, como a escrita.
Um exemplo é a Vênus
de Willendorf, descoberta às margens do rio Danúbio, no nordeste da Áustria, em
agosto de 1908.
Com seios em forma de
pêndulo, acúmulo de gordura no meio do corpo e grandes nádegas, ela foi
interpretada como uma representação realista de uma mulher seriamente obesa.
Ela não tem os pés e o
rosto, mas seus braços alongados com mãos estilizadas de três dedos repousam
sobre os seios. Sua cabeça é coberta com o que alguns especialistas acreditam
que seja um chapéu detalhadamente tecido.
Quando foi descoberta,
ela ainda estava coberta com ocre vermelho, um pigmento pré-histórico que teria
dado à sua pele um tom de terracota. Mas ele foi inadvertidamente retirado em
um procedimento de limpeza excessivamente cuidadoso.
Já a Vênus de Hohle
Fels é cerca de 14 mil anos mais antiga – e, mesmo assim, tem muitas
características idênticas.
Com seios extremamente
proeminentes e uma grande quantidade de gordura corporal, como a Vênus de
Willendorf, ela foi esculpida sem os pés e o rosto. Ambas também têm umbigos
realistas e vulvas claramente marcadas.
Rebay-Salisbury
explica que estas são as características clássicas das estatuetas de Vênus:
cabeças, pés e braços reduzidos, com ênfase nas qualidades reprodutivas.
Diversas ideias
Nos 160 anos que se
passaram desde a descoberta da primeira estatueta de Vênus, não faltaram
especulações sobre o seu propósito.
A noção de que elas
fossem simplesmente objetos pornográficos, idealizados basicamente para o olhar
masculino, permanece uma explicação popular há décadas, ao lado da visão de que
as obras de arte representariam a fertilidade.
Mas existem também
ideias mais surpreendentes, como a sugestão de que as esculturas não têm cabeça
nem pés porque eram autorretratos feitos pelas próprias mulheres, que esculpiam
o que viam nelas mesmas.
Neste caso, o exagero
no tamanho dos seios, da barriga e da vulva seria puramente o resultado da
visão do olho feminino.
Rebay-Salisbury
acredita que as estatuetas de Vênus sejam um reflexo do estilo de vida das
pessoas da época. Uma ideia é que elas talvez fossem talismãs para proteção do
lar, segundo ela.
Os estudiosos
acreditam que as pessoas não costumavam formar assentamentos permanentes até o
neolítico, quando o surgimento da agricultura permitiu que as pessoas
produzissem alimento suficiente para permanecer no mesmo lugar todo o ano.
"Por isso, a
ideia é que você tenha uma figura que fique para trás em um acampamento ocupado
sazonalmente e meio que tome conta do lar", explica ela.
Esta teoria também
fornece uma explicação clara de como as estatuetas de Vênus continuaram
seguindo o mesmo padrão por dezenas de milhares de anos.
Em vez serem
transmitidas de uma pessoa para outra em uma cultura contínua que durasse por
milênios, as estatuetas de proteção permaneciam nos seus locais principais,
como as aconchegantes cavernas, e podem ter sido repetidamente descobertas
pelos novos grupos sucessivos que moraram ali, segundo Rebay-Salisbury.
Outra interpretação
envolve a busca de indicações sobre a função das esculturas nas condições
ambientais da época em que elas foram produzidas.
Como a maioria das
estatuetas, acredita-se que a Vênus de Willendorf tenha sido produzida pelo
povo gravetiano, um sofisticado grupo de caçadores-coletores que habitou a
Europa no pico da última era glacial.
Durante esse período
extremo, grande parte da Europa estava totalmente congelada ou encapsulada nas
geleiras crescentes.
O professor de
medicina renal Richard Johnson, do Campus de Medicina Anschutz da Universidade
do Colorado, nos Estados Unidos, é especialista em obesidade.
Sua ideia é que,
talvez, as estatuetas de Vênus possam ter servido de símbolos de resiliência
naquela época difícil. Existem evidências de que a população da Idade da Pedra
tenha passado fome e começado a diminuir durante esse período.
Neste contexto, o
maior percentual de gordura corporal teria sido uma importante vantagem para a
sobrevivência. Afinal, é para isso que a gordura surgiu na evolução.
Em conjunto com seus
colegas, Johnson analisou a relação entre a cintura e os quadris das estatuetas
de Vênus encontradas na Eurásia. Ele concluiu que as esculturas criadas durante
o avanço das geleiras e a queda das temperaturas normalmente exibem níveis mais
altos de obesidade do que as elaboradas durante períodos com menos dificuldades
climáticas.
"O motivo de
ilustrar as mulheres é a necessidade de que elas tenham gordura suficiente para
atravessar a gravidez", explica Johnson.
"Chegamos até a
cogitar a ideia de que algumas mulheres em uma tribo – a rainha, por exemplo –
fossem escolhidas [para tratamento especial], recebendo conscientemente
alimentos que pudessem ajudá-las a criar gordura, para garantir às demais que
elas teriam alimento suficiente", afirma ele.
Se isso for verdade,
ele aposta no consumo de iguarias com alto teor de frutose, uma antevisão
pré-histórica de um caminho comum para a obesidade hoje em dia. Mas essas
mulheres de alta posição teriam recebido alimentos de fontes naturais, como o mel.
• Visão do passado
As estatuetas de Vênus
não são misteriosas apenas devido ao que elas representam. Elas também podem
revelar detalhes fascinantes da vida diária de dezenas de milhares de anos
atrás.
A Vênus de Willendorf
foi descoberta na Áustria, mas a análise da rocha utilizada — um tipo de
calcário chamado oólito — indica que ela teria se originado na Itália,
possivelmente retirada da lateral de um vale em Sega di Ala, perto do lago de
Garda, no sul dos Alpes, perto do ano 26.000 a.C.
Esta conclusão mostra
que uma grande cadeia de montanhas separa o local da mineração da matéria-prima
e o destino da escultura, onde ela foi encontrada.
Ou um grupo de
caçadores-coletores atravessou a pé esse imenso obstáculo geográfico – uma
viagem de cerca de 930 km – ou, de alguma forma, eles encontraram um caminho
através das montanhas durante uma das idades do gelo.
Qualquer uma dessas
façanhas poderá nos fazer reformular as espécies de viagens que o povo
gravetiano era capaz de empreender.
Paralelamente, outras
estatuetas de Vênus revelaram visões surpreendentes da tecnologia disponível
entre os seres humanos durante a Idade da Pedra.
No imaginário
coletivo, as roupas daquela época eram feitas de couro e pele de animais. Mas,
na realidade, elas podem ter sido mais sofisticadas.
Algumas mulheres são
ilustradas vestindo roupas que parecem ser feitas de fibras vegetais, incluindo
saias, chapéus e tops. Muitas delas parecem ter sido criadas com técnicas
complexas de tecelagem.
Mas uma escultura traz
consigo uma visão particularmente sugestiva do passado: a impressão digital de
uma criança que viveu 25 mil anos atrás.
A Vênus de Dolní
V?stonice foi descoberta em um assentamento pré-histórico de caçadores de
mamutes no sopé do Monte Devin, hoje na República Checa. Essa estatueta de
cerâmica foi elaborada com uma mistura de ossos moídos e argila e,
aparentemente, foi manuseada por um jovem membro do grupo antes de ir ao fogo.
Talvez as próprias
crianças a tenham feito ou talvez estivessem brincando com ela como se fosse
uma boneca. De qualquer forma, embora sua cultura tenha desaparecido há muito
tempo, suas marcas permaneceram.
Quadro inconstante
Atualmente, os
pesquisadores simplesmente não detêm informações suficientes sobre as
estatuetas de Vênus para chegar a qualquer conclusão sobre o seu propósito. Por
isso, nossas interpretações podem revelar realidades constrangedoras sobre nós
mesmos.
"Elas são meio
que espelhos", afirma Katharina Rebay-Salisbury. Ela estudou como, desde a
sua descoberta, as obras de arte refletiram as preocupações e obsessões do
momento cultural de cada época.
Durante a era
colonial, a Vênus de Willendorf foi descrita como uma "mulher
esteatopígia", uma expressão racista usada para descrever o tipo de corpo
de certos grupos étnicos.
Depois, com o
surgimento do feminismo, essas estatuetas passaram a ser vistas como deusas. E,
hoje, existe a indicação de que elas estivessem relacionadas com mudanças
climáticas – embora Richard Johnson acredite que esta teoria seja sustentada
por mais evidências científicas do que a maioria.
"Talvez eu seja
muito pós-moderna a este respeito quando digo que todas as pessoas podem ler
nas esculturas o que quiserem e se sentir inspiradas por elas", diz
Rebay-Salisbury.
E, por estranho que
possa parecer, essa visão prática das estatuetas de Vênus pode ser mais fiel às
suas origens pré-históricas do que a busca por um único significado simbólico
claramente definido.
"Acho que elas
serviam a diversos propósitos no passado e continuam a fazer o mesmo."
Rebay-Salisbury
menciona o exemplo da estatueta de Vênus descoberta perto da cidade de Piatra
Neam, no vale de Bistria, na Romênia.
Ela foi esculpida há
17 mil anos – ou seja, existem 9 mil anos e 1 mil km de distância entre ela e a
Vênus de Willendorf. Ainda assim, esta escultura é surpreendentemente similar,
com uma diferença: seu desenho é completamente plano, como se o original tivesse
sido atropelado por um caminhão.
"E a única forma
de explicar isso é que as pessoas realmente devem ter descoberto [outras
estatuetas de Vênus] no passado e produzido algo similar", explica a
professora. Ela ressalta que os artistas responsáveis pelos dois objetos podem
ter tido intenções completamente diferentes ao ilustrar uma mulher.
De fato, existem
evidências de que, até em uma mesma cultura, pode ter havido vários tipos de
estatuetas de Vênus, possivelmente representando diferentes papéis femininos e
significados simbólicos.
Uma análise inicial
identificou quatro tipos distintos, diferenciados por sutilezas de postura,
encontrados em apenas dois locais arqueológicos intimamente relacionados entre
si no sudoeste da Rússia.
Naturalmente,
Rebay-Salisbury tem sua própria estatueta de Vênus: uma réplica dourada
impressa em 3D da Vênus de Willendorf, sobre sua mesa de trabalho.
"É simplesmente
muito bonito tê-la nas mãos... ela claramente foi feita para ser
manuseada", ela conta.
Cópias atuais das
esculturas são presentes populares e costumam ser vendidas online como
"deusas mães". E, a julgar pela longevidade das estatuetas originais,
o entusiasmo por essas obras de arte não irá desaparecer tão cedo.
Fonte: BBC Future
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