África: uma nova insurgência torna-se
governo
No processo longo e
pedregoso de descolonização da África, um novo capítulo pode ter-se aberto. Na
tarde desta segunda-feira (25/3), o presidente senegalês Macki Sall admitiu que
as eleições presidenciais de domingo deram vitória ao Pastef –
os Patriotas Africanos do Senegal para o Trabalho, Ética e Fraternidade. O
partido é peculiar. Formado há apenas dez anos por membros da classe média
instruída, empolgou as maiorias jovens, que buscam um horizonte além da
pobreza, dos laços coloniais que persistem e da corrupção das elites.
Ferozmente perseguido, venceu a repressão estabelecendo em pouco tempo uma nova
cultura política, de mobilização nas ruas e formação de comunidade simbólica.
Sua tarefa será árdua. Mas ele expressa um novo cenário político em emergência
na África – onde não há sinais fortes de neofascismo e o descrédito nas
instituições, também presente, está produzindo um efeito oposto: o ressurgir de
um sentimento antieurocêntrico.
* * *
Dois personagens
emblemáticos materializam o triunfo do Pastef. O presidente eleito
é Bassirou Diomaye Faye, um auditor fiscal de 44 anos, que passou os
últimos onze meses na prisão (por “desacato a autoridades”) e deixou o cárcere
apenas dez dias antes do pleito. Além disso, foi obrigado a concorrer como
independente, porque seu partido foi colocado na ilegalidade em julho de 2023.
Superou os obstáculos. Com 90% das urnas apuradas, havia alcançado 53,8% dos
votos, o que levou todos os adversários a reconhecerem sua vitória. Chegará à
presidência sem ter nunca exercido cargos políticos. Diz-se influenciado
por Cheik Anta Diop, o
historiador senegalês que afirmou a centralidade das civilizações ancestrais da
África Negra e sua irradiação pelo mundo. Quando indagado sobre os riscos de
sua falta de experiência na vida institucional, costuma responder: “Os que conduziram o país desde 1960 [data da “independência”
em relação à França] produziram fracassos catastróficos”.
Mas por trás de
Diomaye, há Ousmane Sonko, o maior líder popular do Pastef. Também
auditor fiscal e seis anos mais velho que o presidente eleito, é deputado na
Assembleia Nacional. Conduziu o partido na trajetória arrebatadora em que
saltou de 1% dos votos (2017) para 15,6% (2019), 33% (2022) e finalmente a
vitória no domingo. Antes disso, criou o primeiro sindicato de sua categoria
(em 2005). Escreveu Petróleo e Gás no Senegal – crônica de uma
espoliação, em que denuncia o sequestro das riquezas do país pelas
transnacionais e oligarquias nacionais associadas, e Soluções por um
Novo Senegal. Seria o candidato natural, mas sua postulação foi
bloqueada pelo Judiciário. Também estava encarcerado até há dez dias. Foi capaz
de um movimento extraordinário de transferência de votos. Até há poucos meses,
Diomaye era um desconhecido do público. Mas o slogan Diomane é
Sonko [Sonko mooy Diomane”, em uolofe,
a língua predominante no país] e a empolgação popular pela possibilidade de
mudança convenceram os eleitores
O Pastef é uma das
resposta à longa crise que se abateu sobre a África a partir do início dos anos
1990. Nas décadas anteriores, as independências nacionais e a disputa entre
União Soviética e Estados Unidos por exercer influência geopolítica sobre o
continente haviam produzido algum progresso. Mas com o fim do “socialismo
real”, também Washington viu-se desinteressada. Os partidos africanos da
primeira onda independentista burocratizaram-se, envelheceram e perderam
impulso.
Mas após um período de
letargia, ressurgiu a busca de um futuro autônomo. No Senegal, isso se deu à
margem das correntes anteriores. Em seu site, o Pastef narra
a própria história de
forma curiosa. Em janeiro de 2014 – portanto, sob influência das revoltas
árabes e europeias de três anos antes – uma nova geração está convencida da
necessidade de superar a estagnação, a pobreza e a injustiça social. Lutas
esparsas alcançam vitórias isoladas, como a formação de sindicatos no setor
público. Seus líderes dão-se conta da necessidade de ampliá-las. Consideram-se
“uma dinâmica”, diz a narrativa. Rejeitam a ideia de partido político – da qual
“tinham horror”. Mas reveem a posição ao serem estimulados, por simpatizantes,
a disputar o poder. Assumem um nome (Pastef – Patriotas do Senegal) que
expressa esta ambiguidade partido-movimento. Afirmam “promover uma doutrina
pragmática, que não se confunde com nenhuma das ideologias historicamente reconhecidas:
socialismo, comunismo, liberalismo, etc”.
Porém, o vasto
programa (de 15 capítulos e 274 páginas) que
Diomaye e Sonko apresentam à sociedade senegalesa em 2024 tem claro sentido
antineoliberal e panafricano. Aponta para a luta pela soberania do país (por
meio da recuperação das riquezas nacionais, da industrialização e da
recuperação da infraestrutura); para o
combate contra a desigualdade (a ser alcançada principalmente por meio de serviços públicos universais de
qualidade); para a garantia de trabalho digno e
para uma vasta reforma política, que
estabeleça formas de controle popular sobre o poder. Entre os meios de alcançar
o projeto estão o fortalecimento do Estado (“e de seu papel primordial no
desenvolvimento econômico e social”), uma reforma agrária camponesa com
transição agroecológica (42% da população vivem no campo) a independência
monetária (propõe-se a ruptura com o franco CFA, atrelado ao euro e emitido
pela França) e a integração africana.
* * *
O domingo eleitoral
foi de festa em Dakar, a capital, e em todo o país. Os sinais da vitória do
Pastef eram tão claros que, relata o Guardian, uma população segura
do resultado tomou as ruas, cantou e dançou ao
som de tambores e vuvuzelas, assim que as urnas se fecharam. Mas os três
últimos anos foram de intensas batalhas de rua. O ascenso dos Patriotas do
Senegal nos pleitos anteriores, somado ao desgaste crescente do governo,
sugeria uma mudança política à vista.
Foi então que o
presidente Macki Sall, no poder desde 2012, recrudesceu. Festejada
internacionalmente, a “democracia” senegalesa não suportava o avanço de um
partido-movimento comprometido com mudanças estruturais na sociedade. No início
de 2021, Ousmane Sonko foi preso pela primeira vez, acusado falsamente de
estupro (mais tarde, ele foi inocentado e a acusadora reconheceu ter sido
subornada para fazer a denúncia). Eclodiram os primeiros protestos. Eles
voltaram, mais intensos, há nove meses, quando Sonko foi condenado em
definitivo (agora por “insurreição” e “complô”, para que não pudesse participar
das eleições) e o Pastef, proscrito (sob alegação insustentável de “estimular o
terrorismo”). O governo respondeu com chumbo e sangue. A polícia matou 28 pessoas,
incluindo três adolescentes. Atiradores paramilitares em trajes civis foram
flagrados ao lado das forças policiais. A internet móvel foi bloqueada e o
acesso às redes sociais e serviços de mensagens, fortemente restringido. Cerca
de mil opositores, entre eles jornalistas e centenas de ativistas dos Patriotas
do Senegal, presos sem julgamento.
As restrições
estimularam o Pastef a buscar ainda mais intensamente formas não-convencionais
de ação política. A chave foi uma capilarização radical da campanha, uma deriva
para a micropolítica, pervasiva e envolvente. Se os eventos formais estavam
proibidos, por que não transformar os atos quotidianos da vida social em
espaços para a política? Numa matéria na Rádio França
Internacional, a jornalista Léa-Lisa Westerhoff registra, surpresa, as cenas
que presenciou em Dakar. “Sonkorizar, eis uma palavra que aprece no
falar quotidiano, nas últimas semanas: ‘Sonko, sentimos sua falta’, cantada em
uolofe. Aconteceu numa partida de futebol entre amigos, num bairro da
periferia, há quatro dias. Cenário idêntico durante a partida entre as seleções
do Senegal e Argélia, há uma semana. Casamentos e shows são igualmente sonkorizados e
postados nas redes sociais”. O movimento repercutiu na diáspora senegalesa pelo
mundo — e de lá de volta para o Senegal… Em 21 de setembro, em Paris, um show
do artista senegalês Ytoussou N’Dour foi interrompido durante vários minutos,
por uma plateia que cantava: Liberez Sonko. As imagens
viralizaram em Dakar.
O processo foi além —
inclusive com episódios notáveis de ressignificação simbólica. Em março de
2023, uma onda de repressão às manifestações populares resultou na imposição de
braceletes eletrônicos a centenas de ativistas do Pastef. Surgiram rapidamente,
em resposta, os braceletes da liberdade. Eram faixas vermelhas
e verdes (as cores do partido), gravadas com o mote “Sonko 2024” e usadas
orgulhosamente por milhares de simpatizantes. Serviam para arrecadar fundos.
Eram vendidas a 1,50 euro cada uma, com parte da receita destinada a apoiar as
famílias dos presos políticos e outra parcela para sustentar as despesas de
campanha. Mas também estabeleciam cumplicidades. O correspondente do Libération, Théo
du Couëdic, registra: “Motoristas,
cozinheiras, frentistas, vendedores de recargas telefônicas… Dezenas de
milhares de jovens e de menos jovens exibem todos os dias este signo de
mobilização — ou de resistência — nos quatro cantos do país. ‘Às pessoas que o
portam, é comum um taxista oferecer uma viagem, ou um ambulante servir um café.
É um estado de espírito’, relata Saliou Cissè, membro de uma seção local do
Pastef”.
Foram este
enraizamento incomum e esta conversão de política em atitude, mais
que apenas discurso, que permitiram ao Pastef fazer Diomaye
presidente em tempo-relâmpago. O candidato foi apresentado apenas em 16 de
março, dois dias após sua libertação, num comício conduzido por
Ousmane Sonko. Nesta segunda-feira, nove dias depois, ele declarava, já na
condição de chefe de Estado eleito: “O povo senegalês optou pela ruptura. A
eleição consagra antes de tudo a vitória do povo, no combate pela defesa de sua
soberania e dos valores democráticos”.
* * *
A esquerda recuou
tanto nos últimos dez anos, na maior parte da América e da Europa, que uma
pergunta, cuja resposta antes era óbvia, agora impôs-se. Deve-se questionar e
desafiar o sistema político a partir de uma perspectiva pós-capitalista? Ou
esta atitude foi capturada sem resistências pela ultradireita, que agora posa
de anti-establishment? Às forças antes tidas como “progressistas”
restará apenas a defesa da ordem liberal — precisamente no momento em que as
maiorias mais a rejeitam?
Visto da África, o
cenário parece ser outro. Embora partidária convicta do capitalismo, a
revista Economist reconhece, num artigo recente, que “a
boina vermelha tornou-se o chapéu mais político”, em todo o continente.
Multiplicam-se os movimentos que “evocam o espírito da revolução”, diz o texto.
E cita exemplos. Na África do Sul, crescem os Guerreiros da Liberdade Econômica
[Economic Freedom Fighters],
que, ao contrário do que pode sugerir o nome, são uma dissidência
marxista-leninista do Congresso Nacional Africano — no governo desde a posse de
Nelson Mandela. Em Burkina Faso, Ibrahim Traoré, o
capitão do exército que liderou um golpe antioligárquico em 2022 (e está no
poder), diz inspirar-se em Thomas
Sankara, o presidente comunista assassinado em
1987. Em Uganda, os seguidores do cantor pop Bobi Wine estiveram
próximos de vencer uma eleição presidencial — e continuam muito ativos. A
revista admite, a contragosto: “Para muitos jovens africanos, que olham para o
continente e veem que as promessas de democracia, igualdade e dignidade não
foram cumpridas, a boina vermelha é certamente símbolo de uma revolução que não
está completa”.
Poderá a vitória do
Pastef e de Diomaye Faye, a partir de uma posição de poder, dar novo impulso a
este movimento? O desafio é enorme e a resposta, incerta. Mas algo parece
claro: vêm de novo da África, tão espoliada e tão crucial para a formação da
América Latina, ventos de rebeldia e humanidade.
Fonte: Por Antonio
Martins, para Outras Palavras
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