Como a China criou seu próprio modelo
econômico
Observação
dos países latino-americanos e do leste europeu fez com que os chineses
evitassem a terapia de choque neoliberal profetizada pelo Consenso de
Washington
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A economista alemã
Isabella Weber, em seu recente livro Como a China escapou da terapia de choque, descreve como os diferentes modelos de pensamento econômico
nortearam os economistas chineses em momentos cruciais de sua história e
fizeram o país escapar da armadilha do neoliberalismo proposto pelos países
ocidentais no Consenso de Washington.
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O Consenso de
Washington foi o conjunto de medidas econômicas elaboradas por economistas de
instituições promovidas pelo Acordo de Bretton Woods com o intuito de auxiliar
as economias dos países em desenvolvimento a saírem das crises de hiperinflação
e do super endividamento. A sugestão do FMI, do Tesouro norte-americano e do
Banco Mundial era um choque de políticas, para serem colocadas em prática de
maneira rápida e imediata visando sobretudo à liberalização de preços, ao
aumento das privatizações, à liberalização do comércio e à adoção de políticas
fiscais contracionistas.
No início da década de
1980, cientes da necessidade de promover reformas econômicas que ajudassem a
China a se estabelecer como uma economia de mercado, lideranças do Partido
Comunista Chinês, pensadores, intelectuais e economistas proeminentes do país iniciaram
o debate interno com foco na liberalização dos preços. Mao havia frustrado as
expectativas de que a China se tornaria um país rico e importante no mundo.
Embora tivesse obtido progresso em algumas áreas, houve fome severa e o país
permanecia em pobreza absoluta, no campo e na cidade.
A pauta do debate
entre os reformadores era o modelo de modernização da economia, se haveria uma
espécie de ruptura abrupta com a economia planejada chinesa ou a reforma
visando o mercado ocorreria de maneira gradual.
Em função de sua
preeminência nos tempos atuais e da forma como vem consistentemente ganhando
cada vez mais mercado e força no comércio internacional, o modelo chinês tem
sido cada vez mais pesquisado e analisado por economistas contemporâneos. Na
tentativa de reconhecer traços do pensamento político ocidental na, ao que tudo
indica, futura primeira economia mundial, e decifrar o conjunto de medidas
aproveitado em cada uma das teorias, intelectuais desse campo esmiúçam e
estudam a fundo a história, a cultura e a política econômica do país.
Afinal de contas, o
raciocínio ao qual estamos condicionados considera que o sucesso do mercado
chinês precisaria estar vinculado a uma ou outra escola da teoria conhecida por
nós, estudada e disseminada em todas as faculdades de economia no mundo e não seria
fruto de um trabalho original dos economistas e pensadores chineses. O que de
fato não está errado, apenas incompleto.
Ao longo do livro,
Isabella Weber descreve magistralmente todas as nuances do pensamento econômico
chinês e descobre como foi possível permitir a entrada do mercado em uma
economia planejada.
A adoção das medidas
de ruptura do modelo de economia planejada, como preconizado no Consenso de
Washington, para um modelo neoliberal era chamada de “big bang” e precisaria
ser realizada de maneira rápida e imediata pelo país adotante. Ao fazer o
choque neoliberal, o governo chinês abriria mão do controle sobre os preços de
setores importantes de sua economia na expectativa do mercado assumir seu
equilíbrio no futuro.
O ponto fundamental do
discurso era que, após um período de recessão e inflação acelerada causadas
pelo aumento repentino da demanda agregada, o mercado finalmente equilibraria
os preços sozinho e uma economia antes fechada seria transformada numa de mercado
e moderna em um curtíssimo espaço de tempo.
Como exemplos a serem
analisados estavam países das economias do Leste Europeu, que abriram seus
mercados após a queda da União Soviética e países latino-americanos enfrentando
graves crises econômicas.
Acompanhadas das
mudanças na política econômica deveriam vir ainda medidas que modernizassem
suas instituições. Esse tipo de comprometimento foi pedido à China de maneira
ostensiva, mas não foi adotado pelas lideranças do país, que em vez disso
optaram por resolver primeiro alguns de seus principais gargalos
macroeconômicos antes de progredir para políticas de liberação de preços.
REFORMA
RURAL
Nesse sentido, a
questão agrária era uma peça fundamental a ser mexida. Embora a China fosse um
país essencialmente rural, o próprio campo precisaria ser transformado antes de
o mercado voltar a assumir alguma proporção na economia chinesa.
É impossível falar
sobre essa evolução econômica sem mencionar o que de fato aconteceu no interior
do país. Após a revolução comunista que levou Mao ao poder, houve um sério
desejo de industrialização aos moldes da União Soviética. Os comunistas
chineses acreditavam que conseguiriam trabalhar as indústrias para gerar
crescimento apenas realocando os investimentos do governo do meio rural para o
urbano.
De fato algum
crescimento foi visto inicialmente, mas à custa de aumento considerável da
pobreza e de uma fome que atingiu mais de 40 milhões de pessoas, segundo
estimativas.
Em 1953, o país,
copiando Stálin, modificou completamente o modelo de exploração do campo.
Enquanto os camponeses pré-revolução dividiam parte dos excedentes agrícolas
com os latifundiários, a partir de Mao a coletivização do campo resultou na
compra de excedentes de grãos pelo Estado chinês e, à medida que a
industrialização aumentava e com ela o número de pessoas vivendo nas cidades, a
quantidade de excedentes requerida pelo governo se tornou insustentável para a
subsistência do campo.
A fome resultou em
revolta e conflito entre governo e camponeses e isso gerou o impacto necessário
à transformação do pensamento comunista chinês em relação à sua agricultura.
Como resultado da escassez de alimentos, a coletivização deu espaço ao retorno
dos espaços privados no campo e liberou em alguma medida o mercado para os
produtores rurais. Ao mesmo tempo iniciou a importação de grãos para ajudar na
subsistência da população rural.
Em 1960, a reboque
dessa mudança temporária de posicionamento, as lideranças do país intensificam
o debate em torno do caminho de desenvolvimento que deveria ser seguido.
MERCADO VERSUS SOCIALISMO
Isabella Weber afirma
que entre 1966 e 1976 a economia enquanto teoria havia sido abolida
completamente dos estudos e dos debates acadêmicos na China. Para as lideranças
da revolução de Mao, “os princípios políticos prevaleciam sobre a investigação
econômica científica”.
Em 1976, porém a
necessidade de se pesquisar e encontrar soluções para os graves problemas do
país e para a disparidade econômica entre o campo e as cidades fez com que
investimentos fossem realizados no sentido de garantir o retorno do estudo da
matéria e a criação de institutos focados em pesquisa e debates sociais e
econômicos.
A partir dos estudos
desses institutos, as lideranças passaram a travar debates mais densos sobre o
caminho do desenvolvimento chinês. Um dos principais pontos abordados pelos
pensadores era se o mercado caberia dentro de um modelo de economia planejada.
Alguns dos principais economistas presentes na Conferência de Wuxi, um dos mais
significativos eventos na promoção do debate econômico da China em 1979,
afirmaram que o país se encontrava naquela situação de pobreza com relação ao
resto do mundo por causa da ideia de que o planejamento econômico e o mercado
seriam mutuamente excludentes, “como se não houvesse lugar para o mercado em
uma economia planejada”.
Os mesmos economistas
sugeriram que o país liberasse o mercado e os preços dentro de determinados
limites impostos pelo governo. A liberalização controlada absorveria e
resolveria alguns aspectos da economia planejada chinesa e daria fôlego
econômico ao desenvolvimento, já que mesmo a flutuação de preços é um dos
sintomas de uma economia mais saudável.
Nas palavras de Deng
Xiaoping, “é errado sustentar que a economia de mercado existe apenas na
sociedade capitalista e que existe apenas a economia capitalista de mercado.
Por que não podemos desenvolver uma economia de mercado sob o socialismo?”,
demonstrando claramente que o retorno do debate e dos estudos sobre economia
havia gerado conhecimento suficiente para compreender a necessidade de se
permitir algum mercado.
O livro da economista
alemã demonstra claramente como o pensamento econômico é complexo e as decisões
sobre quais políticas públicas adotar têm impacto direto na vida das pessoas e
no desenvolvimento do país.
O GUANZI
Isabella Weber
fundamenta muito bem as questões relacionadas ao histórico pensamento econômico
chinês e as experiências que tiveram quando houve necessidade de testar
momentos de maior e de menor abertura da economia. Textos clássicos como o
“Guanzi” e o “Debate sobre o Sal e o Ferro”, elaborados por pensadores chineses
após a queda da dinastia Zhou Ocidental, tratam de como o império ou o governo
do país se comportavam nos momentos de escassez de alimentos e como os
mecanismos de compra e venda de grãos ajudaram a regular os preços na economia.
O Guanzi, por exemplo,
avalia a importância de determinado tipo de bem através do “peso” conferido a
ele. Bens essenciais para a produção são considerados “pesados”, enquanto
mercadorias não essenciais seriam consideradas “leves”. Esse conceito de “leve”
e “pesado” trazido pelo pensamento clássico e debatido internamente à exaustão
pelos reformistas nas décadas de 1980 e 1990 foi adotado na transformação das
políticas do país quando o Partido Comunista Chinês decide por mesclar a
economia planejada com o mercado.
Em contribuição ao
debate, o livro Economia socialista da China, de Xue Muqiao, aborda
o Guanzi para enfatizar a necessidade das políticas serem estabelecidas
procurando preservar a abertura do mercado para mercadorias pesadas e
liberalizar o preço de mercadorias consideradas leves.
Segundo essa
importante contribuição, “o Estado deveria racionar e definir os preços de
alguns itens vitais de consumo, para garantir que a subsistência da população
não seja afetada pelo aumento de preços causado pela falta deles”. Em outras
palavras, o mercado teria permissão para atuar onde há excesso de oferta e a
instabilidade de preços não prejudicaria a subsistência do país e o controle do
Estado sobre bens essenciais.
Dessa forma, a
perspicácia dos reformadores chineses foi introduzir um pouco de mercado onde o
mercado era realmente necessário para equilibrar preços e oferta. A
transformação da economia chinesa em economia de mercado não viria por meio de
um “big bang” como sugeria a pressão do choque neoliberal e sim seria iniciada
pelas margens. De mercadorias mais leves para as mais pesadas e crescendo
conforme o controle estatal sugeria que fosse necessário.
O processo de “big
bang” econômico, com as medidas do Consenso de Washington, foi transformado em
um “small bang”. Quando o XIV Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês se
reuniu em 1992, optou formalmente por uma economia de mercado com “características
chinesas”. Embora a abertura econômica já houvesse sido iniciada nos debates
dos anos 1960 e dez anos antes, com a liberalização de preços de mercadorias
não essenciais, o XIV Congresso Nacional do Partido Comunista é o ponto de
inflexão na tomada de políticas públicas, pois demonstra o amadurecimento do
debate iniciado décadas antes.
Na medida em que o
processo de transformação gradual foi ganhando corpo, o “small bang” foi
liberalizando enfim todos os preços remanescentes de mercadorias essenciais,
“pesadas”, dando ao próprio mercado tempo para se adaptar, investir e ele mesmo
planejar os próximos passos, gerando um resultado inflacionário
significativamente menor do que aquilo que foi sentido pelas economias que
escolheram o “big bang” neoliberal como modelo.
A
CONTRIBUIÇÃO BRASILEIRA NO DEBATE CHINÊS
É importante na
trajetória da transformação chinesa a observação que os líderes fizeram da
realidade enfrentada por outros países na transição para economias de mercado.
Desde a década de 1980 intensificaram o estudo de casos de outros países que
adotaram medidas do Consenso de Washington e exploraram cenários que poderiam
replicar no modelo a ser desenvolvido.
Nos anos 1980, os
economistas reformadores chineses observavam com bastante interesse como os
países latino-americanos se desenvolveram e se modernizaram após a Segunda
Guerra Mundial e estavam esperançosos em replicar parte do seu progresso
internamente.
Na América Latina,
estiveram reunidos com membros dos governos da Venezuela, Chile, México e
Argentina. Havia outro aspecto da incursão nos países latino-americanos. Para
dar mais fôlego ao desenvolvimento de sua indústria, a China precisava ainda de
matérias-primas “pesadas” desses países, principalmente petróleo. No Brasil,
estiveram reunidos com Delfim Neto, e coube a este a tarefa de explicar o
“milagre brasileiro” conseguido pela ditadura militar, como resultado de uma
política econômica que preconizava baixo preço da mão de obra e aumento do
capital estrangeiro por meio de empréstimos.
Havia uma dualidade na
escolha brasileira quando optou por obter empréstimos estrangeiros para
promover seu crescimento e industrialização em vez de se preparar para receber
capital de fora por investimentos diretos. A estratégia de Delfim Neto seria
fazer o bolo crescer para depois dividir. Porém, a não divisão posterior do
“bolo” prejudicou a evolução da economia do país. Fato não mencionado por
Delfim Neto aos chineses.
Os observadores
chineses teriam se encantado com a modernidade de Brasília e o PIB per capita
brasileiro que na época era cerca de dez vezes o PIB per capita chinês. Porém,
havia uma falha no nosso modelo. A hiperinflação gerada pela demanda e pelo
capital estrangeiro e o excesso de endividamento externo, resultados mais
estudados pelos países adotantes das medidas do “big bang” neoliberal, foram
apontados como passivos fortes demais para serem enfrentado por um país grande
como a China. O medo reacendido da fome, de revoltas e da perda de controle
pode ter contribuído para desiludi-los da difícil escolha pelas políticas do
Consenso de Washington.
Também não ajudou a
encantar os chineses o posicionamento de Delfim Neto quando este esclareceu que
a inflação seria um resultado a ser enfrentado com austeridade. Políticas
monetárias contracionistas poderiam ajudar países desenvolvidos a enfrentar
momentos de crise inflacionária, mas seriam um remédio amargo para aqueles em
desenvolvimento.
O MODELO
ECONÔMICO CHINÊS
Para entender o
processo de transformação da economia chinesa precisamos entender as nuances do
pensamento econômico do país, seus aspectos culturais, as reformas importantes
que precisaram realizar e a natureza do debate interno promovido entre os reformistas.
A necessidade de
reforma do modelo econômico passou a ser evidente após a morte de milhões de
pessoas vítimas da fome extrema pelas políticas de coletivização do campo e
pela aceleração da industrialização. A política de preços que subsidiava a vida
nas áreas urbanas com recursos retirados das áreas rurais e o desastre
humanitário que se seguiu levaram as lideranças chinesas a refletir sobre a
modernização do campo e o apoio imediato aos seus cidadãos.
A modernização do país
passou pela análise de grupos de estudos formados por jovens economistas que
rodaram o mundo observando como economias em desenvolvimento se liberalizaram e
conseguiram crescimento. A observação dos países latino-americanos e do leste
europeu fez com que evitassem a terapia de choque neoliberal profetizada pelo
Consenso de Washington como a solução de problemas como desemprego e ausência
de capital. A hiperinflação não era o caminho.
Ao contrário do “big
bang” neoliberal e da tríade formada pela liberalização de preços,
privatizações e políticas fiscais contracionistas, os jovens economistas
chineses entenderam que uma reforma gradual, feita passo a passo, seria uma
solução mais inteligente. Liberalizando o mercado das margens para o centro,
coletando dados e observando a cada nova etapa da abertura econômica, a China
foi progredindo no cenário internacional ao mesmo tempo em que garantia a
subsistência e o aumento da sensação de bem-estar de sua população.
A forma progressiva e
gradual de liberalização levou décadas e tinha como foco a manutenção das
instituições e matérias-primas mais importantes nas mãos do Estado acompanhando
as reflexões do Guanzi. Atualmente, as últimas instituições “pesadas” da economia
chinesa já estão presentes no mercado e a China não pode mais ser definida como
uma economia socialista. A China hoje é uma economia de mercado, tão
capitalista quanto pode ser, mas a seu modo.
Algumas lições
importantes podem ser retiradas da trajetória chinesa em busca de seu modelo de
desenvolvimento. A condução política do país precisa estar alinhada com uma
estratégia de longo prazo e mesmo que a pauta econômica mundial aponte para uma
direção, resguardar os interesses do país antes de tomar decisões importantes
pode ser um caminho mais assertivo para garantir melhores condições
socioeconômicas para sua população no futuro. Talvez a principal mensagem do
modelo econômico chinês, inclusive quando seus economistas refletiram sobre o
crescimento brasileiro, seja a obrigação que as lideranças dos países em
desenvolvimento têm de refletir sobre os diversos modelos econômicos e entender
que a complexidade de nossa realidade exige mais do que a adoção pura e simples
de uma linha de pensamento ou de outra, e que as políticas que servem a alguns
países podem não ser tão úteis a outros.
O resultado que a
China percebe hoje e que a levará a ser a principal economia do mundo nas
próximas décadas é fruto da mistura entre economia de mercado, a economia
planejada e a competência de seus líderes em colocá-la em prática. Nesse
sentido, acredito que as nações emergentes tenham muito a aprender e a se
espelhar no caminho percorrido pelo gigante asiático. A assertividade na adoção
de modelos econômicos pode ser extremamente positiva para o futuro do país.
Fonte: Por Rafael
Cabral Maia, para o Le Monde
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