Os
tesouros da maior biblioteca de mentiras do mundo
"Conte-me
uma mentira", pedi a Earle Havens assim que começamos nossa conversa.
Ele
ficou incomodado, mas não porque se sentisse insultado. Afinal, ele é um
reconhecido especialista em falácias.
Não só
ele dá aulas sobre o tema na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos,
como também, na qualidade de curador de livros e manuscritos raros do Centro
Stern para a História do Livro da universidade, ele supervisiona a Bibliotheca
Fictiva de Falsificações Literárias e Históricas.
A
biblioteca é uma extensa, excêntrica e excepcional coleção de enganos,
falsificações e fraudes escritas que acompanharam nossa história cultural,
desde relatos mentirosos de viagens da Grécia Antiga até extraterrestres maias
inventados nos anos 1960.
A razão
do desconforto de Havens não era por pedir que ele me contasse mentiras, mas
sim por pedir apenas uma: "É como me perguntar qual é o meu filho
favorito!".
Mas,
claro, não era só uma, era uma para começar.
Que tal
a dos olhos de testemunhas da queda de Troia?
"Ah,
sim, essa é muito antiga, de Dictis Cretense e Dares Frígio."
"O
problema era que, por muito tempo, tudo o que se sabia sobre a batalha com
Troia era o que Homero contava, e as pessoas queriam saber mais sobre como foi
e o que aconteceu com aquelas pessoas que de repente desapareciam do poema.
"Houve
coisas que Homero omitiu. Então, existe esse desejo, esse impulso humano de
preencher as lacunas."
Isso é
algo, acrescenta Havens, que também foi feito para preencher vazios deixados na
Bíblia, "em particular com o Novo Testamento".
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Coisas que a Bíblia não dizia
Uma das
coisas que o Novo Testamento não conta é como era Jesus Cristo fisicamente.
"Na
Idade Média, decidiram remediar isso criando uma carta falsa de um cônsul
romano, governador da Judeia, Públio Lêntulo, ao Senado de Roma, descrevendo
Jesus."
"É
de estatura alta, mas sem excesso; garboso; (...) seus cabelos são da cor de
avelã madura e lisos, ou seja, retos, quase até as orelhas, mas a partir destas
um pouco encaracolados, (...) e soltos partidos ao meio da cabeça, segundo o
costume dos nazarenos."
"A
testa é plana e muito serena, sem a menor ruga no rosto, agraciada por um
agradável rubor. Em seu nariz e boca não há imperfeição alguma."
"Tem
a barba cheia, mas não longa, (...) os olhos cinzentos...".
Havens
lembra que foi "dessa descrição em uma falsificação medieval que provêm
incontáveis representações de Jesus, e há mais de 250 manuscritos medievais e
renascentistas que possuem cópias manuscritas dessa carta".
Outra
dessas lacunas tem a ver com o dia de descanso, comenta o especialista.
"Como
se explica que, quando os apóstolos, que eram judeus, se converteram ao
cristianismo, de repente o dia de descanso não era o sábado, mas o domingo?
"Pois
com uma carta que Jesus decidiu enviar do céu... brilhante!"
"Ele
a colocou debaixo de uma rocha com uma pequena inscrição que essencialmente
dizia: Levante-me."
"Todos
os que passavam por esta rocha na Terra Santa tentavam levantá-la em vão, até
que um menino livre de pecado conseguiu."
A
celestial carta claramente diz: Deves terminar a tua labuta todos os sábados à
tarde, às 6 em ponto, hora em que se fazem as preparações para o dia de
descanso.
Havens
conta que "é, além disso, a primeira corrente de carta que conheço na
história do mundo, pois diz que quem a reproduzir será abençoado e livre de
tempestades e doenças, mas quem a destruir será condenado e atormentado por
demônios".
Entusiasmado,
ele já nos havia contado três dos milhares de exemplos que guarda em sua
memória.
"Adoro
falar sobre este assunto, porque posso falar sobre algo que aconteceu há 3.000
anos ou há 400 anos, e posso falar sobre algo que aconteceu ontem."
Com a
Bibliotheca Fictiva, "confirmamos que estivemos marinando em falsidades
desde a origem da cultura. Isso não é apenas um resultado distópico da
tecnologia."
A
Universidade Johns Hopkins adquiriu a coleção em 2011 e, naquela época, "o
termo 'notícias falsas' nem sequer era conhecido, e tive que explicar ao decano
das bibliotecas por que precisávamos gastar uma enorme quantidade de dinheiro
em um monte de coisas falsas".
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Os porquês
Convencer
a universidade a investir em várias centenas de manuscritos, cartas, poemas,
iluminuras, documentos, anotações que afirmavam ser o que não eram foi um
desafio.
"A
principal coisa que eu disse, e mantenho hoje, foi que somos uma instituição de
pesquisa que busca a verdade, e a melhor maneira de entender o que é [a
verdade] não é apenas olhando para coisas que são absolutamente reais, mas
também compreendendo aquelas que não são: como as pessoas as concebem, como
essas ideias são absorvidas pela cultura, como podem até moldar nossas ideias,
nossas expectativas, gerar preconceitos e nos guiar em nossas vidas.
"Também
salientei que todos nós temos nossos preconceitos; ninguém é completamente
objetivo. Então, por que não ter uma coleção de pesquisa que nos ensine sobre
tudo isso e com a qual possamos ensinar?"
Os
donos da peculiar biblioteca eram Arthur e Janet Freeman, que vinham
colecionando mentiras fascinantes desde 1961, quando Arthur estudava teatro
elisabetano e se deparou com John Payne Collier, um escritor e pesquisador do
século 19.
Collier
era uma combinação venenosa de duas coisas: um respeitado erudito e editor de
William Shakespeare e um prolífico e descarado falsificador literário.
Desde
então, e durante 50 anos, os Freeman se dedicaram a adicionar fraudes à sua
coleção, mas chegou o momento em que quiseram que pertencesse a uma biblioteca
de pesquisa.
Até
então, já tinham joias como poesia supostamente escrita por Martinho Lutero,
que não se destacou precisamente por ser poeta, e relatos da Papisa Joana, uma
mulher muito culta do século 9 que, disfarçada de homem, foi eleita Papa,
apenas para ser descoberta quando deu à luz repentinamente no meio de uma
procissão em Roma.
Esse
mito só foi firmemente desacreditado no século 17.
Entre
as falsificações, destaca Havens, "o documento mais famoso é provavelmente
a Doação de Constantino, no qual o imperador Constantino (285-337 d.C.) doava
vastos territórios do Império Romano ao Papa Silvestre 1º."
"No
Palácio do Vaticano, conserva-se um afresco que a representa como um fato
real."
O
documento "foi usado para justificar as guerras nas quais César Bórgia e
outros tentaram se apoderar de partes da Romanha na Itália, e para engrandecer
a riqueza e o poder do Papa."
No
entanto, não havia sido criado no século 3, mas sim no 8.
Isso só
foi demonstrado no século 15, quando "um brilhante erudito chamado Lorenzo
Valla desacreditou totalmente o texto por muitos motivos, mas sobretudo porque
utilizava palavras que não existiam na época em que afirmava ter sido
escrito".
E aqui,
algo a destacar: a biblioteca não guarda apenas falsidades, mas também os
escritos daqueles que as revelaram como tais.
Esse
foi outro dos argumentos de que Havens se valeu para convencer a universidade:
"Eu disse ao decano que podíamos aprender muito com a forma como as
pessoas demoliram coisas falsas."
O que
ele aprendeu?
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O método mentiroso
Para
Havens, a Bibliotheca Fictiva é "um registro de uma erudição
fabulosa": não só aqueles que refutaram as mentiras, mas também muitos dos
falsificadores eram pessoas "inteligentes, criativas e até
engenhosas".
"À
medida que se estuda esta coleção, percebe-se que certos aspectos se repetem,
como se os mentirosos aprendessem uns com os outros", diz.
"Um,
por exemplo, é a economia."
"Se
você vai criar uma mentira, a primeira coisa é gerar interesse e inspirar uma
suspensão voluntária da descrença por parte do leitor. Não é necessário que ele
acredite que é verdade, você só precisa fazê-lo crer que é possível, nem sequer
provável, apenas possível", diz Havens.
"E
você não deve dar às pessoas muita informação, porque se acidentalmente der
demais, você pode se enforcar com sua própria corda."
"Outro
truque é encontrar outra voz ou outra figura que ateste sua afirmação, e
incluí-los em sua obra falsa.
"Assim,
você vai notando padrões, e também distintas categorias de falácias e notícias
falsas", assinala o especialista.
Uma
dessas categorias é a que Havens chama de "mitologia patriótica".
"Vimos
um pouco disso em todo o mundo e ao longo da história."
Um
exemplo ocorreu no Renascimento, quando os italianos eram os reis, mas, com o
ressurgimento da cultura greco-romana, havia algo que os incomodava: o fato de
terem chegado muito depois dos gregos.
"Existia
a ideia de que a cultura mais antiga era a mais sofisticada, influente e com
mais autoridade."
O frade
dominicano Giovanni Nanni, vulgo Annius de Viterbo (1437-1502), "decidiu
'descobrir' uma série de textos antigos" que corrigiam a história.
Suas
fraudes foram numerosas, variadas e, em alguns casos, extremamente elaboradas,
assinala a Universidade de Oxford.
Em uma
ocasião, organizou uma escavação arqueológica na qual desenterrou, para espanto
dos presentes, uma fantástica coleção de estátuas mitológicas, cada peça
colocada com esmero para alcançar um efeito dramático.
Tudo
para "demonstrar que os italianos possuíam a linhagem mais antiga, e não
'os gregos mentirosos, que se achavam inventores de tudo'", conta Havens.
Sua
obra mais importante, o Antiquitatum Variarum, publicada pela primeira vez em
1498, e com grande sucesso editorial nos séculos 16 e 17, contém o que ele
afirmava serem textos de autores gregos e latinos... nenhum autêntico.
No
entanto, a obra "teve uma enorme influência no pensamento dos europeus
entre 1498 e aproximadamente 1750" (Walter Stephens, 1979), e
"perverteu as primeiras histórias de todos os países da Europa"
(Anthony Grafton, 1990).
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Do claro ao escuro
Desde
que Johns Hopkins adquiriu a Bibliotheca Fictiva, "com quase 2.000
objetos, fizemos centenas de adições adicionais, tornando-a uma 'biblioteca
viva'", conta Havens.
Há
desde mentiras leves, como a de um romance que talvez você conheça, cujo título
completo é:
"A
vida e incríveis aventuras de Robinson Crusoé, de York, marinheiro, que viveu
vinte e oito anos completamente sozinho numa ilha desabitada nas costas da
América, perto da foz do grande rio Orinoco; tendo sido levado à costa após um
naufrágio, no qual todos os homens morreram, menos ele. Com uma explicação de
como, no final, ele foi incomumente libertado por piratas. Escrito por ele
mesmo."Essas últimas 4 palavras geraram um debate sobre se a obra deveria
fazer parte da biblioteca, pois é obra do escritor Daniel Defoe.
Para
Havens, "não passou de uma afetação literária".
Com as
histórias do Barão de Munchausen, em contraste, não houve discussão, pois são
baseadas em uma pessoa real, e suas ridículas aventuras foram apresentadas como
se fossem autobiográficas em vez de uma obra de ficção de Rudolph Erich Raspe.
Mas
ainda estamos nos tons de branco, e quando se trata de mentiras há toda uma
gama de cinzas, até chegar a algumas perigosamente escuras.
"Existem
alguns enganos muito perniciosos", diz.
"Provavelmente
o mais difícil de tratar é o Protocolos dos Sábios de Sião, essencialmente um
documento de teoria da conspiração profundamente antissemita que afirmava que
os judeus estavam tentando dominar o mundo."
"Foi
usado pelos nazistas para justificar o genocídio e continua sendo muito
relevante hoje em dia", afirma.
"Esse
é um exemplo de um engano horrível, realmente maligno em todos os
sentidos."
Desde
que Johns Hopkins adquiriu a coleção, Havens e outros professores têm usado
seus milhares de exemplos para ensinar aos estudantes sobre alfabetização
midiática e desinformação.
Eles
ajudam a aprender a detectar pistas e a ser mais cético e mais crítico com tudo
o que se cruza em seu caminho, mesmo que venha de uma fonte aparentemente
confiável.
Mostram
que, além de se perguntar se uma mensagem é verdadeira, também vale a pena
refletir sobre por que ela chegou às suas redes sociais, o que ela quer
incentivar, explorar, reforçar em você, a quem interessa que você consuma essa
informação.
"Recentemente,
publicamos um catálogo pela Quaritch em Londres e, além disso, todos os títulos
estão disponíveis online, então esta é possivelmente a coleção mais documentada
e acessível do mundo."
"É
absolutamente relevante."
Fonte:
BBC News Mundo

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